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No seu mais recente projecto curatorial «THEM OR US! Um Projecto de Ficção Científica Social e Política», a decorrer na Galeria Municipal do Porto, Paulo Mendes prossegue a sua reflexão plural sobre os desenvolvimentos históricos e a situação presente da nossa sociedade. No centro da proposta encontra-se a figura conceptual do invasor, fio condutor e pano de fundo de múltiplas abordagens que articulam as dimensões militar, política, territorial, mental, antropológica, ecológica, económica e social do mundo contemporâneo.
A exposição é constituída por núcleos orgânicos e temáticas que vão expondo um retrato multifacetado, do esquematismo falsamente simples das narrativas e posições ideológicas da Guerra Fria à volatilidade e ambiguidade que caracterizam a rede de poderes na geopolítica actual. Digitalização da sociedade, crise económica, cultura do medo, massificação do turismo, crises dos refugiados, nacionalismos, europeísmo, democracia, autoritarismo: os temas, contaminando-se reciprocamente, circulam como sintomas de uma realidade já só a custo abarcável, na qual a ficção possível que o título evoca encerra a única possibilidade de ordenar o caos.
Muito ampla, tanto na área de espaço ocupado como na selecção de obras e de temáticas convocadas, as cento e cinquenta obras e setenta objectos da exposição surgem repartidos pelos dois andares da galeria em sequências ou núcleos orgânicos, sem delimitação muito definida no espaço. A proposta é materializada principalmente com soluções cenográficas que rompem a ideia de um percurso linear, confortável, através de uma organização pontuada com barreiras e muros: velhos cacifos, pneus, paletes de madeira, armários, mesas, vitrines, andaimes, cuja instalação sugere os labirintos de um universo complexo. Sobretudo na fase inicial do percurso expositivo, após a entrada – que nos situa perante o humano e o natural com obras de Lawrence Weiner («Lost & Found & Lost Again», 2006), Hugo Canoilas («Rambo Rimbaud», 2015) e Erwin Wurm («The Artist Who Swallowed the World», 2006) e as duas salas escuras que confrontam os mundos analógico e o digital, onde um chão adesivo («Lodo», intervenção de Fernando Brízio) gera estranheza e prepara o espectador para o que se há-de seguir: trabalhos sobre a paisagem humana (Axel Stockburger, Andres Serrano, Jorge Molder, André Cepeda, Hans-Peter Feldmann, Nuno Ramalho, Arlindo Silva, Francisco Queirós), arquitectónica (António Júlio Duarte, Rui Manuel Vieira, Ângela Ferreira, Leonor Antunes, Christian Andersson), pública e urbana (Hugo de Almeida Pinho, Tiago Alexandre, Norman Mclaren), peças alusivas às condições de sobrevivência dos refugiados (Rodrigo Oliveira, Igor Jesus, Alexandra Moura, Estelita Mendonça, Didier Fiúza Faustino), ao corpo e à condição humana (Didier Fiúza Faustino, Julião Sarmento, Von Calhau, Lara Torres), à tecnologia (Eduardo Batarda, Miguel Palma, João Onofre, Horácio Frutuoso, Christopher Williams, Filipa César, Miguel Soares) e à sua obsolescência (Taryn Simon, Rui Toscano, Cory Arcangel), à situação europeia (Antoni Muntadas, Christian Boltanski, Fernando J. Ribeiro, Fernando José Pereira, John Baldessari, João Ferro Martins, Stephan Brüggemann), à resistência e possibilidade de acção e pensamento críticos (João Pina, Mafalda Santos, Maria Trabulo, André Alves, António Caramelo), de reflexões ecológicas (Nikolai Nekh, Jérémy Pajeanc, Paulo T. Silva, Ignasi Aballí) ou sobre o colonialismo (Daniel Barroca, Hugo Canoilas) e pós-colonialismo (Yonamime, Manuel Santos Maia).
Ainda em relação ao tratamento cenográfico do espaço, pode-se destacar o efeito de infinitude da instalação de Fernando Brito, o acesso feito por uma estrutura de andaimes ao primeiro andar (intervenção de Nuno Pimenta), onde a presença de uma tenda militar usada como sala de projecção nos conduz à obscuridade da última sala, espaço fantasmático onde encontramos obras de Renato Ferrão e Eduardo Matos, entre outros.
Longe da síntese, o que nesta proposta se impõe são o tom e a audácia especulativa, pela apresentação de obras que respondem concretamente ou mais indirectamente às temáticas enunciadas, estabelecendo um jogo de variação, de ecos e associações que favorece a ideia de reunião da multiplicidade, de desordem organizada: them or us, nós ou o caos. SVJ
Os filmes de Jesper Just, embebidos em telas, ou plasmados, como sombras, sobre paredes, parecem feitos da mesma matéria dos sonhos e das memórias. Na sua qualidade quase translúcida e imaterial, mesclam-se, suspensos, em várias áreas da sala oval do MAAT, e tendem a «dançar», bruxulear frente ao visitante.
Um longo percurso feito de plataformas metálicas e andaimes vai ditando o liame que o visitante é obrigado a percorrer. Mas não se pense que esse caminho é facilitado. Muito pelo contrário. É dificultado dadas as estruturas que o sujeitam a subir e descer escadas, até chegar à fruição plena e privilegiada dos filmes. Um caminho de base instável, leva-o também a reflectir para que lado deverá conduzir o seu corpo. Toma consciência da vulnerabilidade da estrutura, que se agita aos seus pés. Obrigando-o a dar passos cautelosos, e olhar, com maior compaixão, para os personagens dos filmes, que se vão desvelando, e revelando as suas fragilidades, e dores. O visitante torna-se assim em algo mais do que um mero observador, confortavelmente conduído na tristeza alheia. Sim, porque a esmagadora maioria dos espectadores gosta de ver acontecimentos nas telas, em segurança, numa experiência de emoção off-line, mas, com toda a certeza, não gostará de os vivenciar na sua vida real.
Os sentimentos são a matéria prima de Jesper Just, e trabalha-os em «várias camadas», como ele diz. A solidão e a saudade são os sentimentos que mais interessam ao artista.
Stanley Cavell, filósofo do cinema, chegou a questionar-se sobre o que levava o espectador a envolver-se com a história de um filme, ou a identificar-se com uma cena dramática. Para ele não bastava a beleza dos actores, ou a sua imagem ideal, brilhante de glamour para justificar o envolvimento do espectador. Tinha que haver algo mais. Claro que estes atributos dos actores poderiam contribuir para nos sentirmos atraídos pela história, mas tal razão parece, segundo Cavell, um argumento pouco sustentável para justificar, na realidade, o motivo porque nos detemos e nos conduímos na história que é contada, através destes personagens. Então, o que nos faz deter e demorar o olhar sobre um filme em que a personagem, sozinha, num cenário moderno, e num edifício amplo, com vista sobre uma grande cidade, estabelece um longo diálogo consigo própria?, fazendo-nos perceber a grande solidão em que se encontra e o questionamento que articula sobre a sua existência? A imagem perfeita de jovem mulher é desmentida pelo extenso e melancólico diálogo que estabelece consigo mesma. Lá está o glamour cinematográfico, no feminino, a questionar-se, e a ter oportunidade de contar a sua história. Jesper Just dá voz ao feminino, tantas vezes silenciado, pelo cinema «holliwoodesco», dos anos 50.
O que para o autor Cavell parece ser um argumento forte para nos determos numa determinada história e nos emocionarmos com ela é o simples facto de nos identificarmos com o tema em si. Um tema com o qual nos preocupamos genuinamente.
Solidão e saudade são dois sentimentos que Jesper Just explora nos seus filmes e a que todos afectam. Quem ainda não foi assombrado pela solidão? Ou pelo menos pelo sentimento de perda e consequente vazio que esse estado acarreta? E é somente a sugestão aos temas que fazem o espectador deter-se sobre eles, pensar sobre eles, imaginá-los. Para Cavell um simples pensamento, pode desencadear uma reacção, um trejeito no rosto, ou até lágrimas. Pensar e imaginar a emoção aproxima-o do estado emocional dos personagens, tornando-o sensível aos seus dilemas, solidário com as suas dores e dúvidas. Mas não sem se sentir, ele mesmo, vulnerável a um piso que treme debaixo dos seus próprios pés, provocado pelos andaímes, quando caminha.
À medida que o visitante vai palmilhando o percurso que o artista traçou para nós, vai percebendo a melodia melancólica, tocada ao piano por uma criança, em grande plano, num dos filmes que compõem a exposição «Servitudes/Circuits (Interpassivities)». A melodia perpassa o lugar oblongo, característico da sala ovalóide do MAAT, e une os vários elementos dos diferentes filmes. Já em outros momentos Just recorreu à «música para vários fins». Como em outras exposições do artista, a música nesta exposição é «a estrutura que une as várias camadas». Cria um fio conductor, um elo entre os filmes, e os personagens que vagueiam nessas mesmas histórias.
Christian Lehmann[1], algures, numa entrevista a Just, perguntou-lhe sobre a forma como o artista utilizava a música. Just respondeu que o que lhe interessava na música era: «a forma como cria determinados ambientes, expectativas e conotações que parecem ainda mais intensos porque não são articulados verbalmente. Em vez de experienciar de uma forma lógica aquilo que vê, o espectador pode acabar por vivenciá-lo emocionalmente. Isso acontece precisamente por causa da quase completa indoutrinação ao nível das nossas reacções perante determinadas paisagens sonoras. Por outras palavras, a música e as suas referências ao cinema e aos videoclips, oferecem uma oportunidade para manipular e jogar com essas expectativas».
Just aplica, nos seus filmes, a música num modo como Douglas Sirk já parecia fazer, com os seus melodramas nos anos 50[2]. Melodrama é um género dramático que significa «música + drama», e que remonta aos clássicos gregos, como Sófocles, segundo o filósofo de cinema. Os filmes mudos trouxeram esta dimensão agregadora, unificadora e enfatizadora do som[3].
Os vários filmes de Just ligam-se por meio das teclas do piano, enquanto os nossos passos sucedem-se hesitantes. Após vários andaimes percorridos entramos, por fim, num salão exíguo, de planta rectangular.
Antes de nos quedarmos na riqueza das imagens do video Circuits, que revelam um corpo de bailarinos momentaneamente estáticos, em diferentes posições, as teclas de um piano tocam, de modo mecânico, aquilo que parece ser uma melodia fragmentada, e corrompida, de uma partitura tradicional. As notas que, como estalidos, fracassam no decorrer da área tocada, sucedem-se segundo uma ordem mais ou menos melódica. A pouco e pouco, vão-se tornando cada vez mais espaçadas e imprevisíveis, não havendo lugar para uma sequência coerente. O longo silêncio é, por fim, interrompido, e as teclas irrompem, de seguida, em estímulos cacofónicos, de batida seca, com pouco alcance de reverberação.
O sentido que desperta é o de um desgoverno e descontinuidade, de algo que já foi uma organização de sons, do ponto de vista organizacional de uma cultura ocidental, tradicional, que, com dificuldade, permite o inesperado, o fora de controlo.
Sabe-se que, e do ponto de vista antropológico, som e gesto sempre surgem em ligação, ora pela forma como o músico, com o seu movimento, toca os instrumentos, ora no modo como esse gesto está associado à dança e simultaneamente ao som. Como nos povos indígenas, cuja música, mais padronizada, obedece a uma estrutura rítmica bem pronunciada.
As peças do piano desmembrado, que emitem sons caóticos, imprevisíveis, e surpreendentes, aparecem conectados com os gestos mecânicos subtis dos bailarinos no filme, reforçando a ligação estreita que sempre existiu entre corpo e música.
Estes sons que se desvelam num fragmento do que foi outrora um piano, e pelo modo como assim despontam, deixam revelar o que antes foi uma melodia, estruturada. As notas saem timidas, quebradas. Eclodem em desnorte, para, no momento seguinte, desaparecerem repentinamente sem aviso. Provocam no ouvinte um efeito de sharawadji, de desordem e estranheza. Ritmos descontínuos, sons disruptivos, culminando numa confusão perceptiva. Em tudo divergentes dos canones de beleza sonora ocidental. As irregularidades, incongruências e distorções do piano fragmentado acabam por causar deleite e prazer aos ouvidos, e como diria Cage: geram novas formas de vida. Porque o corpo sonoro formado pelas notas concomitantes e palpitantes provocam um efeito de surpresa, do novo. Perdem o seu corpo semântico original, para dar lugar a novos caminhos perceptivos.
Footnotes
No Museu das Artes de Sintra (MU.SA) residem duas exposições de fotografia, no âmbito do «LEFFFEST 2018», que decorre entre 16 e 25 deste mês, em Lisboa e Sintra.
Uma das exposições, «Small Stories», mostra 55 imagens realizadas por David Lynch, que é homenageado nesta edição do festival, a 12ª. Lynch utiliza a fotomontagem de imagens recortadas, sobrepostas e recompostas, de modo a criar ambiências que misturam dimensões oníricas com outras que talvez possam ser interpretadas como o real. As suas obsessões, que de diferentes formas são inscritas nos seus filmes, reaparecem nas imagens, impondo-se aos olhos do espectador através da decantação de figuras e objectos fetiche, transportados de imagem para imagem sem um propósito evidente, bem à maneira lynchiana.
A exposição de Sandro Miller, «Psychogenic Fugue», por sua vez, é composta por fotografias que interpretam o universo fantasmático de David Lynch de um modo bastante expressivo.
O primeiro núcleo inclui oito fotografias de David Lynch muito impressivas e de contornos dissociativos, sendo o segundo composto por uma série de fotografias (umas a cores e outras num preto e branco luminoso) em que surge o actor John Malkovich reencarnando e recriando personagens icónicas de várias obras de David Lynch, desde a incontornável série «Twin Peaks», até «Veludo Azul», passando por «O Homem Elefante» ou ainda «Eraserhead».
As duas exposições, autónomas, estão espacialmente separadas, mas comunicam uma com a outra através de uma sala onde é projectada uma curta-metragem de Miller; este espaço pode ser entendido como um túnel ou um quarto escuro onde os fantasmas ganham vida e movimento.
Small Stories, de David Lynch, foi co-organizada pela Maison Européenne de la Photographie e a Item Gallery (Paris).
No dia em que a Wrong Wrong visitou as exposições, na casa ao lado, o Centro Cultural Olga Cadaval, foram apresentadas curtas-metragens e videoclips resultantes da colaboração entre David Lynch e Chrysta Bell, o primeiro na qualidade de cineasta, produtor, guionista, compositor... enfim, autor multifacetado, enquanto Chrysta, esplendorosa, se assume como intérprete, actriz, compositora e performer. Esta mostra de filmes repete na sala 1 do Cinema Medeia Monumental no dia 23 às 19h00.
As exposições no MU.SA podem ser visitadas até ao próximo dia 30 de Dezembro, da terça a sexta-feira das 10h00 às 20h00, sábados e domingos das 14h00 às 20h00. MM
Estão abertas as inscrições, com entrada gratuita, para a Conferência Internacional The Museum Reader: «Is the Museum a Battlefield?» que decorre no Museu do Neo-Realismo nos próximos dia 29 e 30 de novembro.
Partindo do enunciado da obra e ensaio de Hito Steyerl (2013), a segunda edição da conferência The Museum Reader incidirá sobre o lugar do Museu enquanto palco de confronto pelo domínio político e económico, sob a influência de diversas forças sociais. Pretendemos, assim, fomentar a discussão sobre a autonomia artística dos Museus, quando muitas instituições se veem confrontadas entre o financiamento privado e uma política cultural pública, acessível e democrática nos seus principais pressupostos. Poderão estas duas conjunturas conviver? O recente episódio no Museu de Serralves, em que poderes económicos e políticos foram acusados de interferir com o programa da exposição de Robert Mapplethorpe, reafirma a complexa e difícil convivência entre a gestão institucional e a liberdade artística.
Outra questão em debate será o papel das instituições, ou dos projetos artísticos, que assumem um posicionamento alternativo às práticas museológicas generalistas, trabalhando para públicos específicos ou assumindo, de forma engagé, uma posição programática de reflexão crítica e forte pendor político, contrária às diretivas das grandes instituições museológicas, rendidas à lógica financeira de associar lucro a uma certa expectativa do gosto do público.
Através de um painel nacional e internacional de diretores, artistas, curadores e programadores, procuraremos encontrar respostas que se traduzam em práticas alternativas de entendimento do Museu, dando ênfase construtiva às tensões e conflitos inerentes à sua natureza.
A conferência conta com a participação de Anna Viola Hallberg, Jean François Rettig, Delfim Sardo, Tiago Baptista, Liliana Coutinho, José Alberto Ferreira, Raquel Henriques da Silva, Nuno Faria, Andreia Magalhães, Pedro Boléo Rodrigues e Pedro Soares, Ana Anacleto e Maria do Mar Fazenda.
A comissão organizadora desta iniciativa é composta por Sandra Vieira Jürgens, Emília Tavares e Paula Loura Batista.
Programa disponível aqui
Todas as inscrições individuais e institucionais (incluindo nome completo, instituição, profissão e/ou cargo) submetidas via e-mail até 27 de Novembro serão registadas: themuseumreader@gmail.com
Organização
Câmara Municipal de Vila Franca de Xira/Museu do Neo-Realismo
Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa
A Zaratan e a Wrong Wrong têm o prazer de apresentar a conferência «O Que Fazem os Mortos», do realizador Artur Aristakissian, presente em Lisboa para a edição deste ano do LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival.
O evento, apresentado em Russo com tradução inglesa, terá lugar na Zaratan, no próximo Domingo 25 de Novembro, às 18h, e além do realizador contará com a presença de Aleksei Artamonov, Denis Ruzaiev e Ines Branco López, os curadores do ciclo temático «O Desejo Chamado Utopia».
O Que Fazem os Mortos
Conferência de Artur Aristakissian
«O que é bom no cinema é que ficamos presos nele. Esperamos uma coisa e acontece outra. É como a errância da alma ou dos pensamentos de uma pessoa após a morte descrita no «Bardo Thodol», onde a alma é posta à prova pela reacção da sociedade e por estereótipos culturais. Tudo aquilo a que em vida se agarrou a pessoa revela-se uma armadilha traiçoeira. Os entes queridos são atormentados por demónios. A mãe e o pai já não parecem os que conhecemos. O conhecimento parece o contrário do que sabíamos dele.
O público é mais que uma função social e cultural que produz e consome emoções. Na arte, os espectadores são os protagonistas e o principal objecto de experimentação. Não enquanto personalidades, mas como receptores culturais e censores íntimos. Será que as pessoas podem aceitar o que está ausente na sua cultura mais próxima, ou deixam que os seus censores íntimos os conduzam noutra direcção? Grande parte da obra artística é a percepção dos espectadores, que não é visível. Como notou o apóstolo Filipe num evangelho apócrifo, «tornamo-nos o que contemplamos». Aqui também pode acontecer o contrário».
Artur Aristakissian é um realizador, director de fotografia e argumentista singular, pelo seu documentário ficcionado «Um Lugar no Mundo» (2001) e pelo documentário «Palmas» (1993) que será projectado a 23 de Novembro como parte do LEFFEST’2018, na programação especial «O Desejo Chamado Utopia». Na Rússia ele é conhecido também pelo trabalho ensaístico e pelas suas aulas provocatórias na Escola de Cinema Novo de Moscovo. Tal como nos seus filmes, todas as aparições de Aristakissian visam o mesmo — vencer, com a ajuda das imagens, as convenções sociais que nos reprimem e escravizam a percepção. Ele conduzirá o público por uma nova gramática e nova visão partilhadas por alguns filmes e fotografias que captam o espaço liminar entre a vida e a morte — como Santa Luzia a oferecer os seus olhos numa bandeja dourada.
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Zaratan and Wrong Wrong are pleased to present the lecture «What Dead People Do», by the director Artur Aristakisyan, present in Lisbon for this year’s LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival.
The event, which will be presented in Russian with English translation, will take place at Zaratan, next Sunday 25, at 6 pm. Besides the director, it will include Aleksey Artamonov, Denis Ruzaev and Ines Branco López, curators of the thematic programme «The Desire Called Utopia».
What Dead People Do
Lecture by Artur Aristakisyan
«The good thing about cinema is that you are trapped in it. You expect one thing and get another. It is like the wanderings of the soul or the thoughts of a person after death described in the «Bardo Thodol», where the soul is put to test by social reactions and cultural stereotypes. All that the person has clung to in life turns out to be a treacherous trap. Loved ones are plagued by demons. The mother and the father appear to be different people from those you’ve known. Knowledge appears to be the opposite of what we’ve thought of it.
The audience is more than just a social and cultural function that produces and consumes emotions. Spectators are the principal character in art and the principal object of experiment. Not as personalities, but as their cultural receptors and inner censors. Can people take in what is absent in their nearest culture, or do their inner censors make them turn in some other direction? Spectators’ perception is the major part of artwork, but it remains unseen. As the apostle Philip said in an apocryphal gospel, «you become what you see». The reverse can also take place here».
Artur Aristakisyan is a unique director, cinematographer and writer known for his documentary fiction film «A Place in the World» (2001) and documentary «Palms» (1993) which will be screened on Nov. 23rd as a part of LEFFEST’2018 special program «The Desire Called Utopia». In Russia, he is also known as an essayist and provocative lecturer teaching at the Moscow School of New Cinema. As with his films all Aristakisyan’s performances aim for the same thing — to overcome with the help of images the social conventions that enslave and subdue our perception. He will lead the audience through the new grammar and new vision offered by some specific films and photographs that capture liminal space in between live and death — like St. Lucy offering her eyes on a golden plate.
A exposição «Postais», de André Ruivo, em exibição até ao dia 28 de Novembro, na Casa da Cultura, em Setúbal, reúne um grupo de desenhos realizados nos últimos dois anos pelo autor. Começaram primeiro por ser «posts» no Facebook e resultaram da vontade em comunicar para um grupo de amigos.
José Teófilo Duarte, em conversa com André Ruivo, chegou à conclusão que havia trabalho suficiente para uma exposição, e foi assim que os postais chegaram até à Casa da Cultura de Setúbal. Além dos desenhos expostos, ainda foram feitas edições físicas dos postais, disponibilizadas, aos visitantes, dentro de um envelope. As pessoas podem, assim, escrever uma mensagem na parte de trás do postal, colocar um selo e enviar a um amigo. Revitalizando, desse modo, a forma antiga de as pessoas se corresponderem. André Ruivo explica: «É bastante divertido porque as imagens passam a ter um texto que as acompanha, tornando-se ilustrações!». Os postais de André Ruivo evidenciam por isso o encontro subjectivo entre palavra e imagem.
Na situação particular dos postais a imagem surge primeiro para dar lugar depois à palavra. As duas faces, próprias deste género de suporte, revelam essa relação de jogo e dualidade entre imagem e texto, mas nunca a sua coexistência. Uma poderá existir mas só na ausência da outra. Neste caso a imagem desperta a empatia do observador, ou fruidor, por meio de uma emoção ou sentimento, com o qual se identifica, e por esse motivo, dá origem a uma relação de palavras escritas, no outro lado do postal. A imagem deixa de ter a mera propriedade reprodutora das ideias do texto, para passar, ela própria, a ser potenciadora do conhecimento, da imaginação e da criatividade. É ela que conduz à palavra escrita.
William Blake, nas suas águas-fortes, desenhava e construía um pensamento visual, e um imaginário extraordinário e mágico, que, só pelo desenho se poderia compor. André Ruivo, consciente desta realidade, intraduzível do desenho, desperta ambientes e sensações que já não se subscrevem na ilustração de textos, mas que, antes, substanciam esses mesmos textos.
Sobre os postais de André Ruivo inscrevem-se personagens que, ao olhar as estrelas, ou tocar notas vagas sobre um piano imaginário, fundem-se em planos de cores lisas e distintas. Os fundos coloridos parecem chamar o observador para o interior do desenho. Na realidade o poder da cor, a sua vibração, transfigura essa «planeidade» do desenho em volume, conduzindo-nos a um outro espaço. A um espaço onde personagens parecem pairar sem gravidade. As cores ocupam o desenho até às margens, evocando o conceito «pictórico moderno da imagem que parece sair da tela». Observador e imagem passam a habitar o mesmo espaço. A cor faz com que o plano do desenho escape do suporte bidimensional e se transforme em «presença real», habitando um «espaço próprio».
«A imagem não transmite uma presença, ela é a presença real», diz-nos José Gil. Um «mundo sem objecto», de sensações produzidas através de manchas de cor, que se estendem até ao observador. Os «poderes da pintura permitem irradiar e transformar o espaço e o tempo para lá da imagem plana». Porque não existe um «espaço pictural plano». A pintura projecta invariavelmente linhas e formas no ar, para cá e para lá do quadro – «Uma cor cria logo um volume que sai do fundo branco». Formando um plano «flutuante, que foge à superfície bidimensional».
Carla Carbone