Ano erótico porquê? A célebre canção de Serge Gainsbourg com Jane Birkin ofereceu-lhe um travo de subversão em tempos que já eram de ressaca revolucionária. As expectativas do ano anterior não haviam sido concretizadas e os anos 60 fechavam com uma chamada a realidades menos utópicas, a uma política do imediato, a que nem o peso simbólico da chegada do Homem à Lua podia retirar o predomínio. A materialização das mudanças libertárias numa sociedade alternativa ficou adiada. Mas a força criadora com que 1969 resume a sua década iria perdurar — até hoje.
Senão, vejamos: cinquenta anos depois, podemos lembrar momentos-chave que abriram novos horizontes. A Apolo 11 e o pequeno passo de Neil Armstrong, uma sonda soviética em Vénus, o primeiro coração artificial, as mensagens ARPANET entre computadores, precursoras da Internet; os «actos da linguagem» de J. R. Searle, o conflito das interpretações de Ricoeur, a conversa infinita de Blanchot; enquanto Beckett recebia o Nobel, a literatura afrontava a vergonha e a culpa (Philip Roth), a dissociação de corpo e ego (Margaret Atwood), o fracasso pessoal (Naipaul) e colectivo (Vargas Llosa); com «Três Estudos Sobre Lucian Freud», Francis Bacon renovava o espanto da figuração, enquanto a arte, cada vez mais conceptual, multiplicava as suas direcções, entre as quais as da Arte Povera e da Land Art; os grandes espaços eram também para a música, através de festivais como Woodstock; o novo e a vanguarda conduziam a música popular (psicadelismo, Bowie, Beatles, Led Zeppelin, Doors) e contemporânea, e também o teatro (das ruas ao clássico instantâneo «Oh! Calcutta!»); Hollywood mudava, com filmes inclassificáveis («O Cowboy da Meia-Noite», «Bob & Carol & Ted & Alice», «Easy Rider»), e por toda a parte se praticava um cinema (na continuação da Nouvelle Vague e de vários movimentos de renovação, do Brasil à Alemanha Ocidental e ao Japão) que rompia com os padrões e linguagens estabelecidos, enquanto autores veteranos como Buñuel, Bresson e Bergman estreavam obras de assinalável invenção e liberdade; e o vídeo, por sua vez, conhecia as suas primeiras exposições colectivas de relevo.
Os limites do progresso e da consciência humana expunham-se nas guerras do Biafra e do Vietname. Ditaduras de extrema-direita mergulhavam a América Latina nos seus anos de chumbo. Protestantes e católicos confrontavam-se na Irlanda do Norte. A Leste os regimes optavam pelo apaziguamento, comprando tempo. A África dividia-se entre eleições e golpes de estado, Israel enfrentava os vizinhos árabes e o Japão vivia forte agitação social. Começava também a ser impossível a qualquer estado negar os problemas que a sociedade industrial e o seu modelo de prosperidade tinham vindo a agravar sem grande (auto)questionamento. As batalhas pelo meio ambiente tornavam-se mais visíveis e a mediatização dos grandes conflitos evidenciava o estrago real (o agente laranja e o napalm no Vietname) e potencial que a humanidade orientada para o conflito podia infligir ao planeta.
Em Portugal, a julgar por Alexandre O'Neill, nada parecia mover-se: «Tão sem jeito é esta videirunha à portuguesa / que às vezes me soergo no meu leito / e vejo entrar quarta invasão francesa». Quando no ano anterior Salazar tombara da cadeira, o regime, embora o não soubesse, seguira-o. Marcello Caetano não pôde ou quis aproveitar para efectuar uma verdadeira transição política. O país, no entanto, mexia-se: a guerra colonial e a emigração, a televisão e a universidade, activismos quotidianos em todas as áreas, faziam-no ir mudando a consciência de si mesmo e do mundo, e sentir a gravidade da época.
Essa atmosfera de encerramento de um ciclo, de pressentimento da mudança, de angústia da sua realização, seria propícia a uma erotização da cultura social. No Ocidente, mas também no Leste e no Terceiro Mundo, confluíam energias para a descoberta do corpo, do prazer feminino, das orientações sexuais diferentes, divergentes, por muito tempo ainda invisíveis e oprimidas. «Cunnilingus» e «fellatio», designações que se simultaneizam na imagem de complementaridade yin yang da posição 69, tornam-se ousadia e inconformismo. A precariedade, que por vezes aviva o hedonismo, e as energias sexuais libertas na cultura popular prometem uma descompressão do espírito e do corpo, do seu espaço físico e político, politizado. A consciência dessa relação do indivíduo com o social, na qual a dimensão erótica é reconhecida e procura aprofundar-se, marca uma evolução decisiva da consciência colectiva, o suficiente para nela se ter integrado a ideia do sexo como revolta possível: make love, not war.
Sandra Vieira Jürgens