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Procurando responder à pergunta, «De que forma a performance-arte foi importante na luta pela emancipação e defesa da igualdade de direitos, liberdades e justiça das mulheres portuguesas na revolução de abril de 1974?», o projeto CORPO MANIFESTAÇÃO apresenta, na revista WONGWRONG, um conjunto de casos da performance-arte constitutivos da conquista da democracia em Portugal. Pensados a partir de diferentes materiais visuais e de comunicação social, a maioria reabilitados a partir do acervo do crítico de arte Egídio Álvaro, alguns exemplos aqui apresentados, refletem um novo campo de experimentação artístico e de manifestação política e cultural.
O espólio de Egídio Álvaro (Coimbra, 1937 – Montrouge, 2020), promotor cultural especialmente dedicado às artes de performance e ao estabelecimento de pontes entre artistas portugueses e internacionais (a maioria residente em Paris), foi recuperado pelo Performing the Archive, em Paris, em Agosto de 2021. E é a partir da ativação deste acervo de materiais visuais e culturais dedicados à performance-arte, através de inúmeros projectos que temos desenvolvido com diferentes investigadores e artistas, que revertemos a invisibilidade a que foram condenadas estas formas de expressão e manifestação públicas.
Até ao momento foram organizadas quatro exposições: Lembrar o Futuro: Arquivo de Performances, (RAMPA, Porto, 21.04. –11.06.2022); Performances, Projecções, Debates e Redações, (RAMPA, Porto, 26.07. – 14.09.2024); ANDOR! Encontros, Manifestações de rua e Espaços Vivos (nas ruas e Biblioteca do Diana Bar, Póvoa de Varzim, 2–4.08.2024); Corpo Manifestação: Transmissões da Performance-Artes nos Feminismos em Portugal, (no espaço do Performing the Archive, Porto, 22.09. – 21.10.2024). Entre sessões de visualização de fotografias e vídeos em formato analógico e digital, escuta de registos sonoros, apresentação de performances originais ao vivo e recriações de performances documentadas no espólio, criação de novas obras de artistas plásticos realizadas propositadamente para estes programas, oficinas gráficas de cartazes, organização de conversas informais e gravação de entrevistas com artistas performers, produção de obras históricas, conversas públicas, empréstimo de materiais e obras, acolhimento de residências artísticas, organização de encontros e laboratórios de investigação e construção do website www.performingthearchive.com[1].
Reconhecer, celebrar e activar o espólio documental deste crítico de arte e promotor da performance-arte, abrindo-o a uma comunidade de artistas, historiadores e outros interessados na história da performance-arte, tem permitido debater e renovar a abordagem cultural sobre materiais e acções efémeras que, com o passar do tempo, necessitam ser activados por novas gerações, encontrar novos espaços e meios de exposição. A concretização desta rede de trabalhos, tem engendrado múltiplas oportunidades para pensar e participar activamente na presente condição das artes em Portugal. Com o tempo, tornou-se claro que mais do que inscrever, o importante tem sido questionar a construção histórica do passado artístico, e disponibilizar a sua mediatização enquanto ferramenta para a memória futura.
A desmaterialização da obra de arte, que conduziu à efemeridade dos eventos culturais, produziu novos encontros e novas colisões entre artistas e audiência, num novo terreno comum e partilhado de recepção pública. Era este contexto, entre a sublevação e a revolta francesa de maio de 1968, e a revolução portuguesa de 1974 – no qual circulava o promotor cultural Egídio Álvaro – que direccionou os artistas para a rua e para o contacto directo com públicos muito mais vastos que as audiências de museus e galerias. Apesar dos grandes desfasamentos sócio-culturais das populações, que reflectiam um alheamento imposto pelo regime autoritário, estes novos lugares de partilha evidenciavam a extrema disponibilidade para o estabelecimento de intensas ligações afectivas entre diferentes grupos. Celebrava-se um futuro desconhecido, não sem que a abertura instituída pelo libertador slogan «proibido proibir» deixasse de gerar confrontos sócio-culturais, parte dos quais provocados por aproveitamentos políticos, e outros enraizados em moralismos de fundamento religioso. Mas a vontade de um futuro mais partilhado era manifesta nas lutas transversais pelos direitos e pela liberdade. E estas conquistas políticas foram essenciais para defender transformações, direitos e liberdades. A grande manifestação desta liberdade, que expandiu a experiência e tornou a expressão da subjectividade mais plural, foi a revolução corporal. Indissociável da vida, a arte passou a incorporar a reivindicação da igualdade de género e activou de forma manifestamente libertadora o corpo feminino na performance, abrindo simultaneamente caminhos para formas de representação não binárias.
Egídio Álvaro acompanhou o interesse pela performance de uma série de artistas femininas, em que o corpo se manifesta enquanto expressão da existência e transformação. São exemplo, entre outras artistas: Barbara Heinisch, Laurence Hardy, Gaël, Ilse Wegman-Hacker, Monique Hebré, Natascha Fiala, Suzanne Krist, Catherine Meziat, Chantal Guyot, o colectivo Rupture/ Enfermement – onde se incluíam Colette Deblé, Danièle Boone, Claudette Brun, Françoise Eliet, Monique Fryman, Christina Mauric e Michèle Henry Marcelle –, Van Bemmel, Tara Babel, Lydia Schouten, Nil Yalter, Ção Pestana, Clara Menéres, Elisabeth Morcellet, ORLAN, Lidia Martinez, Eugenia Balcells, Gretta Sarfaty, Marie Kawazu, Lidia Martinez, Elisabete Mileu, Manuela Fortuna, Shirley Cameron, Ria Pacque, Sara Wiame, Túlia Saldanha, Flore Bury, Gina Pane, Silvia Kirchoff, Zoé Léonard, etc, etc…, muitas das quais passaram por Portugal e performaram com artistas portugueses por diversos territórios.
A performance, e paralelamente alguns meios de comunicação como a fotografia, o vídeo e a televisão, permitiram aos artistas explorar o tempo e o espaço contemporâneos, sem obrigatoriedade de subserviência aos discursos patriarcais ou à necessidade do reconhecimento cultural imposto a qualquer «obra de arte original e consagrada», selecionada e exposta no ambiente controlado dos museus. Dada a efemeridade da performance-arte, foram estes novos meios de comunicação, os que melhor viabilizaram as transformações vividas em tempo real, simultaneamente captando e transmitindo novas experiências. Fotojornalistas e o público em geral registaram e presenciaram situações inéditas e para as quais ainda não possuíam ferramentas de leitura. Essas fotografias, embora dispersas e maioritariamente desaparecidas, ampliam a memória de momentos que aparentemente não afectaram o público, mas que efectivamente captaram, sem piedade, a inaptidão social para aceitar a liberdade, aparentemente reivindicada por e para todos.
Os textos que Egídio Álvaro foi publicando ao longo da sua vida, e os registos visuais e sonoros – provas de contacto, slides, negativos, ampliações em papel, imagens impressas em publicações, entrevistas áudio e vídeos –, muitos dos quais desconhecidos dos performers em questão e da História da Arte portuguesa, evidenciam o percurso performático destas artistas e abrem diante de nós um longo percurso de trabalho de investigação e pensamento a realizar sobre a performance arte, a explorar, nos próximos três meses, a partir de Paris, para a revista Wrong Wrong.
Ainda antes da revolução de 25 de abril de 1974, os artistas britânicos Shirley Cameron e Roland Miller criaram «esculturas cénicas» nas ruas do Porto, a convite do crítico de arte Egídio Álvaro e do galerista Jaime Isidoro, durante o ciclo internacional PERSPECTIVA 74, organizado pelo grupo Alvarez. Como atesta a capa da revista Artes Plásticas (Nº5, setembro de 1974), Shirley Cameron foi muito provavelmente uma das primeiras mulheres a intervir publicamente no espaço urbano, escolhendo a Avenida dos Aliados, frente à Câmara Municipal do Porto, para se aproximar de um público não especializado das artes.
Aluna de escultura da St. Martin´s School entre 1962 e 1966 (aí tendo como professores Antony Caro e Phillip King e onde, também nesse tempo, estudavam Gilbert & George), Shirley Cameron começou em 1970 a criar ações com o seu companheiro Roland Miller, onde misturavam as formas geométricas e coloridas das suas esculturas com acções teatrais non-sense, inspiradas na recetividade e participação popular dos «puppet shows» de rua, conhecidos em Portugal como «fantoches» ou «robertos».
Parte integrante da celebração dos 20 anos da Galeria Dominguez Alvarez (inaugurada por Jaime Isidoro em 1954), o Ciclo Internacional PERSPECTIVA 74, organizado entre 16 de Fevereiro e 1 de Maio de 1974, foi dedicado à arte de processo e à intervenção no espaço urbano, servindo de ensaio para a programação dos futuros Encontros Internacionais de Arte em Portugal. Tendo coincidido com o 25 de Abril de 1974, o ciclo Perspectiva 74, e semanas mais tarde, a organização dos I Encontros Internacionais de Arte em Portugal (Valadares), atraíram artistas estrangeiros ao nosso país e como consequências, despoletaram convites a artistas portugueses, para expor fora de portas. Receber artistas internacionais permitiu construir um campo de experiências e trabalho, comum.
Dominado por artistas masculinos (13 artistas de seis países), esse primeiro ciclo internacional contou todavia com uma presença feminina, Shirley Cameron, que juntamente com o seu companheiro Roland Miller criaram criou várias performances/ instalações, como por exemplo Pink & Black, dentro da galeria Alvarez[3] e pelo menos outra acção na Avenida dos Aliados, frente à Câmara Municipal do Porto, entre os dias 9 e 16 de Março de 1974[4]. Os artistas ingleses contactaram directamente com uma população anónima, indo ao seu encontro no centro da cidade. A propósito desta última performance, lê-se no Diário Popular[5]:
«O insólito e o pitoresco do espectáculo e da arte saíram para a rua ao encontro do público. Foi o que aconteceu, por intermédio dos artistas ingleses Shirley Cameron e Roland Miller (...)...
Ela com elegante vestido negro, de renda, comprido até aos pés (figura dos anos vinte), meias-luas enormes sob a sola dos sapatos pretos, arranjo floral (de carqueja) na cabeça, e preso por um fio a acompanhá-la no seu passeio rítmico, caricatural de fases da vida, um carrinho em forma de coração, com milho para os pombos e para os pardais. Ele vestia fato cor-de-rosa, exibia vários adereços, fitas também cor-de-rosa, e “embalava-se” no tocar de uma sineta de igreja.
Nunca se tinha visto semelhante espectáculo no centro da cidade. E os artistas, envolvidos pelo público que não lhes deixava espaço livre para se movimentarem, transmitiram como puderam, com as naturais dificuldades, a sua mensagem que talvez ninguém tivesse compreendido. Mas a presença de Shirley e Miller em plena praça pública resultou em cheio como espectáculo e comunicação com o público, embora a garotada gritasse “olha para eles, andam a fazer propaganda ao circo”.
Mas a actuação dos artistas ingleses nada tinha de palhaçada. (...) »[6]
Segundo os artistas, identificados no mesmo artigo como «esculturas cénicas», as suas intervenções, pretendiam «dar à imaginação uma vida física dentro do corpo humano». Sem acesso à língua portuguesa, o corpo destes artistas reivindicava uma vida a ser liberta pela via da imaginação. Para isso deslocaram-se ao centro da cidade, indo ao encontro de um público desprevenido, que deixando-se conduzir pela curiosidade, «não lhes deixava espaço livre para se movimentarem». A notícia do Diário Popular na rubrica o Porto por telex, descreve a passagem dos artistas, sem direito a espaço impresso para uma única imagem, e a cor, tão expressamente presente nas suas performances, tardaria ainda a chegar à imprensa diária. Apesar dos galeristas se socorrerem de fotojornalistas para documentar estas ações, não havia ainda consciência social sobre a iliteracia visual e a sua relação com a ditadura. Mesmo sem recurso à linguagem verbal, os seus corpos destacavam-se e expressavam-se livremente. Apesar da proximidade do anúncio com outros títulos como «Inaugurada ontem na Quadrum a exposição de Vasarely», a ausência de imagens acalmava a curiosidade, cancelando qualquer possibilidade de comparação visual entre diferentes formas de expressão artística.
São, contudo, as sempre excelentes imagens do fotojornalista do Jornal de Notícias, António Pereira de Sousa, que embora a preto e branco, ainda hoje nos dão acesso a este imaginário da performance, que apenas naquele espaço e tempo, se tornava real. Apesar do impacto que os artistas possam ter provocado, sem o acesso a estas imagens, é como se não tivessem existido testemunhos. Mas o público olha para a performance e a câmara fotográfica olha de volta para eles, fixa-os na qualidade de agentes do seu tempo. Ainda sem léxico para descrever as ações, Jaime Ferreira, jornalista do Comércio do Porto que reportava frequentemente as actividades da galeria Alvarez, assina uma notícia com o título «Dois Plastífices Ingleses fazem Escultura Cénica»:
«(…) os escultores (...) Não vieram de Londres ao Porto modelar ou esculpir, mas apenas para darem a sua comparticipação, exibindo-se com requintes de sensibilidade e original coreografia (...), fazendo escultura cénica que é cantada (surda embora) ao amor e à vida que a pedra ou a madeira não conseguem transmitir, por lhe faltarem a força comunicativa do calor humano que Miller e Cameron irradiam. (...)
Durante toda a semana os dois escultores das margens do Tamisa darão mostras do seu talento, em espectáculos talvez não acessíveis a todas as inteligências nem totalmente agradável a todos os olhos e a todas as sensibilidades, (...) sem que o público necessite pagar bilhete ou munir-se de convite[2] (...)
Nos intervalos, os artistas conversam com o público. Os problemas de arte em geral (do campo da pintura e da escultura) são postos em equação perante as coordenadas informadoras da arte exibida por Shirley e Roland. (...)
(...) e quando um professor da Escola Superior de Belas Artes insinuou que ´aquilo´ nada [tinha] de comum com a pintura e a escultura, (...) o pintor Jorge Martins traduziu para o público: “Embora efémeras, as nossas poses não correspondem a esculturas?” e acrescentou: “À cor e à cenografia-ambiente, apenas falta a moldura para ser um quadro de pintor realista.”»[7]
Numa declaração, sob o título «Landscape and living spaces» (Grantham, 28.01.1974), os artistas escrevem:
«(…) Acreditamos que o contacto directo, pessoal, entre artistas e observadores cria uma possibilidade adicional – maior liberdade para a percepção e imaginação da sociedade. (...) As reservas imaginativas, místicas, mágico/religiosas são inesgotáveis, mas podem, contudo, ficar encerradas dentro das pessoas pelos constrangimentos da “civilização”. A nossa particular forma de arte expressa o nosso desejo de libertar estas reservas e dar-lhes expressão activa. Temos um papel definido, mas através da expressão corporal as nossas experiências abrem-se à participação dos outros, temos uma forma pessoal de expressão dentro de uma actividade comunitária. Inevitavelmente, o nosso trabalho é out of step, em relação à sociedade, mas aceitamos isto como uma condição formal, a dimensão dentro da qual a nossa imagem está situada. A única e importante aspiração da “Performance/art” é dar à imaginação uma vida física dentro do corpo humano.»[8]
Shirley Cameron e Roland Miller voltaram várias vezes a Portugal, performando em contextos sócio-culturais descentralizados, como a Póvoa de Varzim (1976) e as Caldas da Rainha (1977), e acompanharam o crítico Egídio Álvaro noutros festivais internacionais de performance em diferentes geografias. Durante o período pós-revolucionário português, deram os seus corpos à imaginação, mas como escreveu a escritora britânica Angela Carter (1940-1992), que os acompanhou em 1977 nas Caldas da Rainha, numa nova democracia onde as possibilidades de desejar, imaginar e sonhar podem parecer ferir a realidade dos seus habitantes, é preciso distribuir a liberdade com cuidado.
Footnotes