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e
v
e
s
quando a ponta da minha língua se aproximava do ecrã
sentia o arrepio semelhante ao burburinho de vespas pequenas
a seguir o cheiro invadia narinas e cérebro
com o seu espesso, instável e metálico hálito
o som do toque delicado
do músculo molhado e frouxo
ansioso por lamber o vidro feito de vídeo
ficou marcado como um gatilho erótico
chegando mais perto, com o braço estendido
o meu pêlo fino, de súbito atraído
entesava-se todo para ele
qual juba em chamas que para sempre oscila
isto acontecia com este televisor, só
pequeno e cinzento com bordas curvas pretas
lembro-me do teu cheiro, do teu sabor e do teu efeito
qualquer que fosse o programa que emitias
O realizador britânico Alan Clarke (1935-1990) desenvolveu um corpo de trabalho altamente empenhado para televisão, abordando as questões políticas do seu tempo com uma atenção incansável aos impactos sistémicos do poder institucional. O que torna o seu trabalho tão singular, hoje em dia, é o facto de o ter realizado no âmbito da televisão pública nacional – a BBC – ao longo de mais de duas décadas. Do meu ponto de vista, conseguiu exprimir o arriscado equilíbrio entre a codependência e a autonomia – ou, por outras palavras, explorou o próprio tecido da sociedade.
Depois de cumprir o serviço militar em Hong Kong, Clarke emigrou para o Canadá em 1957, onde trabalhou no sector mineiro. Na sequência de um acidente, acabou por estudar rádio e televisão no Ryerson Institute of Technology de Toronto. Quando regressou ao Reino Unido, trabalhou para a ATV e para a Rediffusion, aperfeiçoando as suas capacidades de direcção de equipas e de actores. Simultaneamente, colaborava com uma companhia de teatro amador como ator e encenador. No final da década de 1960, começou a trabalhar para a BBC, onde viria a passar toda a sua carreira. Trabalhar para uma grande rede nacional de televisão foi, sem dúvida, a razão pela qual fez tantos filmes (perto de 60), tendo apenas 3 sido distribuídos em cinema – um dos quais foi um remake de SCUM, depois de a sua versão original para televisão ter sido censurada.
A sua formação em teatro fomentou uma relação profunda com o fluxo da interpretação. A estrutura da BBC proporcionou-lhe uma equipa sólida de argumentistas e técnicos. Os orçamentos relativamente baixos e os prazos apertados (devido às exigências da transmissão televisiva, por oposição à indústria cinematográfica) são aspectos relevantes da sua carreira, pois tiveram um impacto profundo nos seus hábitos de trabalho.
Tal como a dos seus pares, Stephen Frears e Ken Loach, a obra de Clarke é intensamente política e enraizada no realismo social. Apesar de ter experimentado diferentes géneros – drama, fantasia, comédia, distopia –, o seu léxico foi sempre enquadrado no território do Reino Unido e no fiasco político do seu tempo. Levantando questões como o racismo, o colapso da assistência social, o desemprego, os fracassos da inclusão, os abusos sexuais e a toxicodependência. O seu trabalho foca as disfunções das instituições e o seu papel na amplificação da violência na sociedade. E fá-lo a partir de uma instituição de grande dimensão, a BBC.
Se é possível identificar rapidamente o espectro de interesses de Alan Clarke, o seu estilo formal tornou-o imediatamente reconhecível a partir do momento em que começou a trabalhar com a Steadicam. Quase como numa inversão de polaridades, transformou a performatividade do discurso e da montagem numa forma de performatividade escópica, a que vou chamar aqui «drone». Com o tempo, os blocos substanciais de texto converteram-se em planos longos e mudos de caminhantes à deriva em subúrbios amargos.
Nestes passeios, o olhar é esticado a um nível mecânico – olho aberto sem pálpebra que o feche. Nunca pestaneja, apenas se mantém. O que o distingue das filmagens com Steadicam ou com drones hoje em dia mais comuns – vistas como omniscientes e sem corpo – é o seu envolvimento sensível. Este tipo de filmagem requer um forte trabalho de equipa, de sincronização e de concentração inabalável. É um trabalho de atenção aguda, em que máquinas e corpos funcionam como um único órgão, confrontando o fluxo inexorável dos acontecimentos. Nunca visou planos intangíveis, privilegiando, pelo contrário, uma relação de um para um. Sente-se que existe um grupo a trabalhar para captar esta visão, o que faz dela uma visão bastante corporizada.
Assim, quando me refiro à utilização da Steadicam como um «drone», faço-o por analogia com a música, o que passo a explicar.
Um drone é um som contínuo de baixa frequência. Alguns instrumentos, como as gaitas de foles, as tamburas, as taças tibetanas ou os didgeridoos, podem produzir drones rigorosos. Basicamente, resultam da ênfase e sustentação de sons, notas ou tons. Apresentam pouca variação harmónica e são ritmicamente estáveis ou muito lentos. Estão presentes na música tradicional de muitas partes do mundo, mas na música ocidental foram particularmente explorados nos anos 60 por compositores minimalistas e espectrais como La Monte Young e Marian Zazeela ou Éliane Radigue. O desenvolvimento de instrumentos electrónicos, como os sintetizadores, sustentou significativamente a sua utilização. Rapidamente, foram incorporados em vários géneros, como o rock, a música ambiental, a experimental, o metal, o noise e a música eletrónica. Mas que efeito produz um drone?
Devido à quase ausência de variação harmónica e de ritmo, o drone tende a colocar o ouvinte num estado imersivo, quase meditativo. Enquanto a música pop pode ser pensada como uma sucessão de acidentes e padrões, o drone consiste em modulações suspensas. Funciona um pouco como um zoom num som específico que é sustentado ou repetido num fade contínuo. Em resultado, o tempo parece esticado até aos seus limites, sublinhando o momento presente e, por conseguinte, perturbando o seu fluxo. É uma experiência de perceptibilidade. Para citar a investigadora e jornalista Manon Schaefle[1] a propósito da conferência da filósofa Catherine Guesde (especialista em música radical) intitulada Excesso e imersão na música: naufrágio com ouvinte :
«O drone exige que o público se coloque numa posição de observação. [...] Temos de nos libertar das nossas expectativas prévias, cessar toda a atividade e colocarmo-nos num presente puro. [...] O som contínuo exige que estejamos atentos a todas as percepções auditivas, como as texturas, as frequências e a potência, e aos efeitos que têm sobre nós. [...] Como um organismo vivo, o drone desenvolve-se por si próprio, dependendo da forma como o ambiente externo interage com ele. É uma filosofia de laissez-vivre.»
Passei anos a tentar descobrir exactamente o que me fazia cócegas nas entranhas nos filmes de Alan Clarke. Penso que é algo que pode ser encontrado na sua equivalência no campo do sonoro. Como uma intervenção mínima que permite que o próprio material e os seus componentes se desenvolvam e se expandam. Na minha prática artística, também tenho tendência para trabalhar com materiais que têm propensão para se excederem a si próprios. Posiciono-me na sequência de acontecimentos, dando espaço a outros elementos para manifestarem os seus estados prévios e futuros. O que tem a ver com uma certa perspetiva sobre a liberdade que contamina, assim se espera, o espectador/ouvinte, reconhecendo as suas próprias habilidades.
A própria transmissão prolonga esta ideia de sustentabilidade, embora só no início dos anos 90 os canais tenham começado a emitir 24 horas por dia. A televisão e a rádio traziam a promessa de uma ligação constante e as frequências atingiam diretamente a intimidade do público. Por defeito, costumavam ocorrer num momento de tempo partilhado. Cada telespectador estava instantaneamente imerso numa comunidade informal de co-espectadores.
Em 1964, o filósofo canadiano Marshall McLuhan publicou a sua teoria mais conhecida sobre os meios de comunicação social, Understanding Media: the extension of man, na qual afirma que «os meios de comunicação são a mensagem». Ele descreveria o «conteúdo» de um meio de comunicação «como um suculento pedaço de carne levado pelo ladrão para distrair o cão de guarda da mente». O que significa que teríamos tendência para nos concentrarmos na informação transmitida através de uma comunicação, esquecendo que a forma como ela é veiculada é altamente significativa, se não for mesmo mais.
Matar o mensageiro?
Ainda no Reino Unido, as décadas de 70 e 80 são marcadas pela produção dos artistas experimentais e subversivos Cosey Fanni Tutti, Genesis P-Orrige, Alex Fergusson, Chris Carter, Peter Christopherson e John Balance. Trabalharam juntos em várias combinações, formando múltiplos grupos que esbateram as linhas entre música, imagem, filme e performance. Curiosamente, os nomes dos seus projectos referiam-se frequentemente a emissões, frequências ou vibrações: COUM Transmission, Throbbing Gristle, Alternative TV, Psychic TV e Coil. Abordavam a música como uma colagem sonora. Cosey Fanni Tutti mencionou o seu uso da guitarra como um gerador de som, que ela podia manipular com unidades de efeitos. Começaram a usar o sequenciador Roland TR-808 (alguns anos antes do aparecimento do acid nos EUA), injectando elementos electrónicos na sua música industrial nascente. Todas as ferramentas eram úteis para elaborar cross-mixed performances e concertos que lidavam grandemente com a pornografia e reflectiam a sociedade ainda muito coerciva em que viviam. Tutti descreve os anos 60 como liberais e os anos 70 como uma era de dois pesos e duas medidas: a indústria do sexo estava em plena expansão, mas os consumidores estavam a ser perseguidos e encarcerados[2]. Em 1976, na exposição Pornography, do COUM Transmissions no ICA, que durou uma semana, o discurso do diretor do museu foi substituído por uma performance de strippers, e o vinho foi substituído por cerveja. A exposição incluía objectos ensanguentados, frascos de vaselina, facas enferrujadas, colagens fotográficas, performances com atividade sexual explícita e a apresentação oficial dos Throbbing Gristle com o seu terceiro concerto. O trabalho de Cosey Fanni Tutti no seio da indústria pornográfica foi descrito por Gallien Déjean[3] como paradoxal «revelando os arquétipos e a normatividade das fantasias patriarcais produzidas pela indústria capitalista e, como um espelho, virando o olhar desejante contra si próprio». A exposição provocou uma enorme agitação mediática e levou mesmo a um debate no Parlamento sobre o futuro da «Arte Contemporânea» na Grã-Bretanha. Foram apelidados «os destruidores da civilização», ao que Tutti responderia nestes termos:
«Os meus projectos são apresentados sem alterações, de uma forma muito clínica, como qualquer outro projeto COUM. A única diferença é que os meus projectos envolvem o ritual muito emocional de fazer amor. Para fazer uma ação, tenho de sentir que a ação sou eu e mais ninguém, sem influências, apenas eu. É aqui que entram as fotografias e o filme... As minhas acções são eu própria e não uma personagem projectada para o entretenimento das pessoas. Quando eu me for embora, elas serão vossas.»[4]
Embodied to the bone. Os meados dos anos 70 no Reino Unido foram marcados por uma necessidade urgente de descarregar todo o tipo de energia, tanto individual como colectiva. O conflito social estava atiçado pela ascensão da Frente Nacional e pela radicalização do discurso conservador.
Em 1984, Stars of the Roller State Disco de Alan Clarke retrata um grupo de adolescentes a patinar dentro do huis clos de uma discoteca. Quase como uma redundância, os movimentos da câmara acompanham a sua circunvolução em torno da pista, numa estranha valsa. Esta obra distópica, escrita por Michael Hastings, coloca os jovens num ringue de patinagem, que se revela ser um centro de emprego. Para saírem, terão de aceitar uma das oportunidades mal remuneradas que os assistentes sociais lhes propõem, por detrás das espessas janelas de vidro dos balcões dispostos em volta da pista. No epicentro da pista estão instalados beliches triplos, enquanto a área circundante está cheia de máquinas de venda automática, oficinas e casas de banho. Seguimos um jovem em particular, cuja namorada tenta convencê-lo a aceitar qualquer coisa para finalmente seguirem as suas vidas. O rapaz agarra-se à ilusão de que o governo lhe proporcionará o trabalho perfeito. A música e os robôs de luz não param até ao toque de recolher, todos os dias.
Cada vez que acordo
Cada vez que digo
O lento e gradual começo
Mais um dia inquieto
A dúvida e a indecisão
Empurram-me pelo caminho
O lento e gradual começo
Mais um dia inquieto
Domingo de supermercado
Rostos frios e cinzentos
Sem pão, sem leite, sem chá
Sem energia para brincar
O medo é o carcereiro
Que tranca o meu amor
O rapaz na caixa
Diz: «Tenha um dia inquieto»
Quem tem a coragem
De sonhar, criar e matar?
Enquanto parece que o todo se move
Cada parte permanece parada
Então não há nada, sim, não há nada
Tudo me faz mal
Enquanto parece que o todo se move
Cada parte permanece parada
Cada parte permanece parada
A ver televisão à tarde
Desperdiçando a minha vida
Tudo o que querem mostrar-me é
O que está debaixo do relógio hoje
Mas até os ratos numa gaiola
São propensos a perder-se[5]
A carreira de Clarke foi abreviada com a sua morte aos 55 anos. Ao longo dos anos, retratou uma vasta gama de personagens – adolescentes, inadaptados, idosos, assistentes sociais, criminosos, deficientes, místicos, racistas, desempregados, toxicodependentes e hooligans do futebol – com o mesmo empenho. O seu penúltimo filme, Elephant, exibido em 1989, foi-lhe encomendado para refletir sobre os crimes ocorridos em Belfast. Tornou-se, juntamente com Christine[6], uma das suas obras mais radicais, provocadoras e quase conceptuais. Um filme de 38 minutos feito de 18 planos com Steadicam, cada um mostrando uma ou duas pessoas chegando a um local, cometendo um homicídio e fugindo. Um objeto totalmente descontextualizado que mostra mortes objectivas.
Perante as objecções ao seu tratamento da violência no ecrã, respondeu salientando a necessidade de ser honesto em relação à violência, mostrando a violência como violência, sem a tentar diminuir ou a explorar com close ups ou música que a tornasse de alguma forma passível de ser admirada.
A terra está agora cheia de fantasmas
Fantasmas que suam e fantasmas que choram
Em vez de paz, apenas parar e cessar
Um fim definitivo, um doce alívio
Do naufrágio à costa
Do cliente à prostituta
Da sombra ao sol
Da bala à arma
A terra está agora cheia de fantasmas
Fantasmas que suam e fantasmas que choram
Em vez de paz, apenas parar e cessar
Um fim definitivo, um doce alívio[7]
Hoje em dia, os canais continuam a lutar por frequências, embora as ligações através de cabos de fibra óptica e satélites estejam a competir com os sistemas hertzianos tradicionais. Para além dos anúncios políticos e dos acontecimentos desportivos, a difusão em tempo real está a enfraquecer, enquanto as opções à la carte tendem a ser privilegiadas. Simultaneamente, os numerosos canais de notícias que funcionam 24 horas por dia, 7 dias por semana, fazem circular o fluxo de informação à velocidade da imprecisão que conhecemos demasiado bem.
Tudo sobre o COUM é verdadeiro. Tudo sobre o COUM é falso[8]
O verdadeiro é um momento do falso[9]; a nossa sede de captar a autenticidade através da representação nunca vai parar, a não ser que nos saciemos com as notícias filtradas por um qualquer algoritmo... até à disenteria.
Desilusão garantida.[10]
Footnotes