dancing words
águas tortas
ONE MORE TIME – BOWFINGER REVISITED
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.a performatividade de atos e artefactos políticos: alguns exemplos do que vaza e varia enquanto permanece por aqui.
As manifestações, ocupações e protestos são infra-estruturas sociais, políticas e culturais. Têm uma qualidade sincrónica instruída por uma enunciação coletiva em dado momento específico; e uma qualidade diacrónica passível de transportar e resignificar a enunciação através de outros contextos, no dia-a-dia, em movimentos culturais e/ou práticas artísticas. A partir destes dois princípios organizo aqui um pequeno mashup de atos e artefactos para pensar nas contaminações entre manifestações políticas e práticas artísticas, uma negação da estanqueidade[1] ou a performatividade do que vaza e se (con) funde enquanto varia.
.de alguns atos
No livro The Art of the Protest, Culture and Activism from the Civil Rights Movement to the Present (University of Minnesota Press, 2019), T. V. Reed esclarece que «as fronteiras entre o político, o social, o económico e o cultural» bem como o que se pode entender como «subculturas», «formações» ou «movimentos culturais», são na prática «frequentemente fluidos» (Reed, 2019: 398). É na participação-observação próxima das partes (para que melhor se compreenda o todo) que acedemos às continuidades culturais e políticas: a uma performatividade entre contextos e campos que previamente distintos, de algum modo se confundem. Por essa razão, Reed refere o impacto que o movimento político Ocuppy Wall Street teve na revitalização das práticas artísticas em Nova Iorque. Em concreto, a ocupação e a produção de espaço social, incluindo a crítica institucional, foram-se progressivamente centralizando nas práticas artísticas nova-iorquinas com artistas/teóricos críticos que experienciaram a ocupação de Zacotti Park (Reed, 2019: 325-370). Ao longo da sua reflexão, Reed levanta alguns modos e relações sociais enquanto prática artística/política, e atos e artefactos para a resistência e lutas em curso que foram instruídos pela experiência de ocupação-manifestação na praça.
Também aqui em Portugal, a agudização das desigualdades sociais a partir da crise financeira global de 2008, e em particular da crise da dívida portuguesa, precipitou, na segunda década do século XXI, um movimento popular de manifestações políticas e ocupações de espaço público[2]. Neste sentido, desde o avanço da TROIKA em território português (2011) até aos dias de hoje, o coletivismo e o ativismo político foram re-catalisados[3] como uma tecnologia social que encontrou expressão na proliferação de assembleias populares, na organização de comuns, derivas urbanas, jogos, cursos e escolas autónomas, grupos de leitura, conferências e/ou publicações independentes como práticas artísticas. A atravessar estes modos, distingue-se também a reorganização pelos direitos laborais no sector das artes e da cultura. Será a partir desta cadeia de relações, e da fluidez entre contextos apontada por Reed, que aqui levanto um pequeno recorte de casos focados em Lisboa dado que, por um lado experienciei uns quantos, e por outro lado, o panorama é tão proliferante como heterogéneo noutros territórios do país (e o mashup tem limites para a análise que suporta). Com outro índice, este recorte de atos é circunscrito às derivações da crítica enquanto prática nos estudos performativos até 2022.
Aponto daqui para trás a Acampada no Rossio (2011): uma ocupação à praça do Rossio que durante uma semana e meia assentou uma infra-estrutura de assembleias e grupos de trabalho para uma nova arquitetura da praça pública: uma cozinha popular, uma zona para crianças, uma zona de estudo e biblioteca, outra para dormir em segurança, um fórum aberto à participação para debates políticos e ações culturais (lembro-me). A Acampada reivindicou-se como uma prática de democracia participativa através da sua auto-governança: hiper-visibilizando os seus princípios constituintes, a sua logística e mecanismos de decisão nas assembleias abertas, na arquitetura da nova praça do Rossio, e nas plataformas online de comunicação. Apresentou um Manifesto[4] escrito como um protesto popular às medidas da austeridade impostas pela Troika e contra a ordem mundial financeira; como um apelo à participação na ação; e como uma declaração do próprio Manifesto como um processo aberto, em curso, tal como a própria Acampada, «Isto é só o início. As ruas são nossas». Em 2014, antes de escrever a sua tese/ livro Contesting Austerity – Social Movements and the Left in Portugal and Spain (2008-2015), o investigador e participante na acampada Tiago Carvalho avança no blogue L´Obéissance Est Mort:
«O ressurgimento da rua enquanto factor político em 2011 foi uma carta nova no panorama da esquerda autóctone. A sua capacidade mobilizadora foi-se esgotando mas serão no entanto as realidades produzidas nessas ruas que irão marcar a agenda nos próximos anos, porque foram fundamentalmente essas experiências a formar subjectividades militantes e não os anteriores enquadramentos institucionais.» (Carvalho, 2014, disponível em: https://obeissancemorte.wordpress.com/2014/03/02/sobre-a-passagem-de-alguns-milhares-de-pessoas-por-uma-praca-a-2-de-marco-de-2013/ )
Para além da clara referência à Declaration (2012) de António Negri e Michael Hardt – um pequeno não-manifesto escrito a propósito das ocupações que ocorreram nas praças de inúmeros países, e que enuncia as novas subjetividades políticas da crise financeira de 2008 –, Tiago Carvalho sublinha o impacto duracional da formação destas subjetividades nas agendas políticas que surgirão após a acampada. Esta dedução abrange naturalmente a cultura e as práticas artísticas que também se constituem com estas novas militâncias, as subjetividades das crises recentes, e que convocando de novo a fluidez entre contextos, as entornam na crítica, no comentário político ou no protesto. De facto, e fazendo uma relação mais direta, o grupo de trabalho da cultura[5] na Acampada do Rossio foi constituído por uma série de profissionais da arte, cultura e investigação que até hoje permanecem no pensar-fazer atos de resistência e de luta pela auto-determinação, ação coletiva e transformação social.
Parte deste grupo de pessoas reverbera na Salganhada[6] (2012-2018) um grupo informal pós-Acampada, entre as quais destaco figuras (fundamentais) das artes e dos estudos performativos em Portugal, Sofia Neuparth, Sílvia Pinto Coelho, Miguel Castro Caldas e Ana Bigotte Vieira (A Ana participou na ocupação de Zacotti Park, juntou-se a este grupo pós-acampada) que, em conjunto com outras pessoas continuaram a reunir como grupo de leitura crítica, para a tradução coletiva de textos fundamentais para as lutas políticas, e com debates estético-políticos. A mobilização descentrou-se, a «rua é nossa» vazou de e para outros modos de fazer coletivo, e foi explícita nas ações de escolas populares e autónomas como a UNIPOP, com (entre outras pessoas) Elisa Lopes da Silva, Bruno Peixe Dias, Fernando Ramalho, Miguel Cardoso, José Neves; ou o Curso de Pensamento Crítico (2015) organizado pelo Museu da Crise (2015); a conferência-performance Secalharidade (2012) de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio – «Não há espectadores; não há artistas, somos todos (quer assumamos a responsabilidade ou não) artesãos do nosso próprio convívio» que dobrou um livro (https://ghost.pt/Secalharidade-1) e um artigo a duas mãos, «Secalharidade como ética e como modo de vida: o projeto AND_Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos» (2012, disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/3191). Com a mesma meada, atravesso ainda o curso experimental desenhado por Ana Bigotte Vieira, Paula Caspão, Joana Braga e Ricardo Seiça Salgado: Tomar posição, o político e o lugar (2014), a constituição do Baldio-Estudos de performance (2013- ) com Ana Pais, Ana Bigotte Vieira, Paula Caspão, Joana Braga, Ricardo Seiça Salgado, Ana Mira, Sílvia Pinto Coelho, Miguel Castro Caldas que em conjunto foram mantendo a possibilidade da crítica e dos modos coletivos enquanto prática social através dos Estudos Performativos e de certo modo, da performance (outra discussão).
Retornando a um ano e poucos meses após a Acampada, dia 13 de Outubro de 2012 foi uma data histórica para o sector da cultura: A organização do Que se lixe a Troika – Manifestação Cultural contou com 23 manifestações simultâneas por diversas cidades do país com o objetivo de sensibilizar o grande público para a importância (o direito à fruição da cultura previsto na constituição portuguesa) da cultura; e de protestar contra os cortes do orçamento ao sector da Cultura. Em Lisboa à Praça de Espanha foi montado um palco para uma programação em modo Maratona Cultural que contou com inúmeras performances-manifestos de artistas de música (entre muitos, Zé Pedro, Naifa, Deolinda, Vitorino, Coro Acordai), artes visuais (Margarida Gil, Bruno Cabral), das artes performativas (lembro-me da Sofia Neuparth com o Centro em Movimento, da Vera Mantero), e claro, de extrema importância, com a participação no protesto das equipas técnicas e de produção. A luta específica do sector cultural articulada com o movimento Que Se Lixe a Troika tornou evidente as possibilidades políticas das práticas artísticas na própria organização do evento/manifestação: 23 maratonas culturais abertas ao público, por sua vez distribuídas por 23 cidades do país. No período da Salganhada e do Que se lixe a Troika – Manifestação Cultural, já estes grupos informais se articulavam com outras organizações do sector, como a REDE – Associação para a Dança Contemporânea; e já dialogava com partidos e sindicatos para o interesse comum – a autonomia partidária foi e continuou a ser um ponto de ordem nestes grupos de profissionais –.
A indistinção entre protesto e performance como uma característica das lutas laborais e políticas (genéricas) do sector artístico e cultural, tem-se valido em cada necessidade histórica, como agora testemunhámos durante a pandemia COVID-19 (2020-22). O confinamento obrigatório suspendeu todas as atividades públicas, incluindo as culturais, o Governo português e as instituições debateram-se com as maiores dificuldades para aplicar um plano consistente que pudesse resolver as condições extremas do setor. Foi neste contexto que surgiram uma série de grupos de profissionais das artes e da cultura (ex.: União Negra das Artes: UNA; Trabalhadores da Casa da Música; Arte e Educadores de Serralves, etc.), entre os quais surgiu a Ação Cooperativista, «Grupo informal, com uma metodologia de trabalho colaborativa não hierárquica. Procura unir, valorizando a diversidade, profissionais das artes e da cultura» (Disponível em: https://www.facebook.com/acao.coperativista/).
Este núcleo mónada iniciado por Carlota Lagido sustentou ações de agitação (difusão, afetação, sensibilização) política assentes em atos performativos que fizeram coincidir a luta social com atos de criação, uma coreopolítica efetiva no campo dos afetos e dos efeitos[7]. A Ação Cooperativista foi um eixo fundamental para a união entre grupos formais, informais e sindicatos, que acabou por se constituir num inter-coletivo de pressão e negociação para o Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura (com todas as questões que possa levantar, esta foi uma vitória da luta coletiva), bem como para os apoios de emergência e medidas sociais específicas à condição dos profissionais da área (com todas as questões que também levantou).
A performatividade artística das ações de protesto – ou a performatividade política das práticas artísticas, foi evidente na ação online e viral de protesto/performance #unidospelopresenteefuturodacultura na qual artistas e profissionais da cultura prestaram depoimento enquanto expunham as suas condições e reivindicavam a causa comum; ou ainda com a convocação de candidaturas falsas [ficções burocratas] tendo como fim um boicote burocrático às candidaturas da Direção Geral da Artes (DGArtes) – motivado por um orçamento insuficiente e modos de atribuição desadequados à realidade do tecido profissional. Estes são dois exemplos do índice performativo da luta durante o período da pandemia, mas reunimos muitos mais no grupo de trabalho Práticas Artísticas Confinadas: Resistência e Coletivismo na Pandemia COVID-19 em Portugal (Disponível em: https://institutodehistoriadaarte.com/research/seed-projects/praticas-artisticas-confinadas/).
Pela mesma altura, a investigadora/coreógrafa Sílvia Pinto Coelho desenvolvia o seu projeto de investigação artística Escola de Procrastinação (2020-2022) (Disponível em: https://procrastinationschool.fcsh.unl.pt/). Este contou, entre outras atividades durante este período, com um Grupo de Leitura (2020) crítica (lembro-me) constituído uma vez mais com vários profissionais das artes, cultura e investigação; e uma Maratona da Procrastinação (2021) no Jardim Botânico de Lisboa durante a qual uma série de artistas foram convidadas a procrastinar como modo de produzir espaço público-crítico.
Em relação ao Grupo de Leitura como uma prática da Escola da Procrastinação, Sílvia Pinto Coelho escreve:
«De repente, a Covid19 veio alimentar o projeto dando-lhe novas potências. Estávamos num estado de espera colectiva e tudo tinha sido adiado de alguma forma. Em 2020, durante o primeiro confinamento Covid19, em Lisboa, um Grupo de Leitura online dedicou-se a pensar, em conjunto, sobre abrandar, procrastinar, sabotar, a preguiça, modos de produção e, claro, sobre o confinamento e a pandemia. Por ter sido um dos primeiros grupos de leitura online, familiarizados com o que estava a acontecer no trabalho, na vida e no movimento da vida quotidiana, operou-se um desvio político bastante interessante no tema proposto – falávamos do presente, a partir de nossas casas com a mente desperta pelo susto.» (Coelho, S.P., disponível em: https://www.icnova.fcsh.unl.pt/projetos/escola-da-procrastinacao/)
Este «desvio político» conecta-se com a fluidez cultural e política perante a qual estou, sim (!) a inscrever grupos de leitura, neste caso o da procrastinação que se viu situado pelas condições materiais da pandemia Covid-19. Outros ocorreram num período próximo e coincidente à Escola da Procrastinação, como o ciclo Expanded Practices All Over coordenado por Paula Caspão[8] que contou, entre outras atividades, com duas oficinas no Centro em Movimento (2022): uma com o investigador/poeta Fred Moten – «addressing issues from the history of jazz such as the emergence of black experimental music in intersection with issues of freedom theory and queer theory»; outra com a professora Shannon Jackson – Pandemic Aesthetics and «Post» Pandemic Infrastructures, sobre a performatividade das lutas laborais e crítica institucional nas artes performativas. Por sua vez, o espaço onde estas oficinas tiveram lugar, é um espaço único em Lisboa pelas suas atividades de investigação e performance: o Centro em Movimento (c.e.m.). Com a coordenação de Sofia Neuparth, acolhe e apresenta ao público figuras do pensamento e da ação autónoma e situada, como as recentes conversas/debates com Franco Bifo Berardi, Amador Fernández-Savater e Maria Galindo – esta vinda com a cooperação de Sirigaita, Fabiana Miranda, Paulo Raposo (presente na Acampada do Rossio), o coletivo de cinema e ativistas Left Hand Rotation, as Damas. O CEM é um espaço ímpar de articulação e circulação de pessoas entre núcleos distintos de pensamento/ação em Lisboa, congregando nas mesmas atividades instituições de arte e/ou investigação, com espaços de associativismo e ativismo como a Sirigaita, RDA69 ou Zona Franca. Este imenso trabalho invisível de fazer redes e ir mantendo o que vaza e varia, a permanência e persistência de Sofia Neuparth[9], Margarida Agostinho e de Cristina Vilhena.
Já em relação à Maratona de Procrastinação é a própria Si lvia Pinto Coelho e Carlos Oliveira que assinalam a Maratona como um modo de coletivismo, ativismo e transmissão (memória) no artigo em Retornos de Sísifo, a Exaustão da RE.AL e Outras Danças, jornal COREIA #1 (2019). Como não situar a Maratona da Procrastinação com a Maratona Cultural (2012) que ocorreu durante a crise da Troika? Como não situar a Maratona Cultural com a Maratona para a Dança (1993) (organização de Mónica Lapa e Cristina Santos) que teve lugar no Teatro Maria Matos enquanto protesto pela falta de condições e políticas culturais do Estado na altura. Ou como não situar a Maratona para a Dança com a Maratona de 12 horas Para a Mónica (7 de Abril de 2002, Teatro Maria Matos), em homenagem à coreógrafa e curadora Mónica Lapa, então recentemente falecida (Coelho, Sílvia P. /Oliveira, Carlos M, 2019). Mais ainda acrescento, a Maratona como um modo social de transmissão (memória) e de protesto persiste no tempo[10]. Veja-se a recente Maratona de homenagem a Gil Mendo (1946- 2022), Para o Gil na Culturgest, na qual a memória do programador foi levantada com conversas sobre política cultural, educação, programação e internacionalização, colmatando no último dia com uma maratona de performances durante 12 horas.
Por fim, este formato esteve implícito na Des| ocupação do Atelier RE.AL a Junho de 2019. O fim do Atelier RE.AL foi precipitado pela não-renovação do contrato por parte dos proprietários. Assumindo a situação da interinidade crítica do despejo como uma força histórica, João Fiadeiro organizou uma programação artística aberta ao público que durante uma semana (15-22 Julho 2019) constou como a Des| ocupação do espaço, ou a ocupação de um despejo. A maratona foi trazendo ao longo da semana as novíssimas performances (e corpos/as) do presente[11] com outras performances gravitativas da história e relações da Re.AL. O espaço teve uma sala dedicada à performance expositiva Para uma Timeline a Haver (de Ana Bigotte Vieira, Ana Dinger, João dos Santos Martins, e Carlos Oliveira), sobre as histórias da dança em Portugal, e nesta ocasião com um particular foco na RE.AL; a maratona é ainda acentuada com as materialidades fixas – posters, publicações, folhas de sala da RE.AL disponíveis para quem estivesse presente (!)[12] e as quisesse levar, e guardar em casa. No dia 28 de Julho, João Fiadeiro faz a última despedida presencial no espaço com uma improvisação de sete horas ao som de Vexations de Eric Satie tocado pela pianista Joana Gama, durante a qual o público foi convidado a entrar, permanecer e a sair do espaço mediante a sua vontade (Vi na Des|ocupação uma faixa de protesto da Manifestação Que Se Lixe a Troika que tinha visto pela primeira vez no livro da editora GHOST Ma Vie Va Changer). O documentário de Maria João Guardão sobre a Des| ocupação, Nada Pode Ficar (2020), redimensiona a ocupação-protesto com uma nova dobra através deste suporte documental que prevê a continuidade da transmissão do «fim» para outros princípios – sociais, poéticos e consequentemente políticos. A Maratona foi aqui claramente expandida com outras possibilidades através da integração das materialidades fixas da memória, ecoando com Sílvia Pinto Coelho e Carlos Oliveira a uma «definição de performance enquanto algo que existe como um sistema de enunciados, dos quais todos os registos fazem parte, e com os quais o passado informa o presente» (Idem, 2019).
.de alguns artefactos
Falando de materialidades fixas… o derrame cultural das manifestações é muito evidente nos artefactos que as compõem. A investigadora de comunicação e media Zara Pinto- Coelho escreveu sobre a «Vida Social dos Cartazes de Protesto» (Disponível em: https://www.passeio.pt/galeria/a-vida-social-dos-cartazes-de-protesto/), que entre outras dimensões de análise, fala-nos da relevância destes cartazes como objetos visuais, e na sua agência de difusão dos enunciados políticos online e offline. Parte da rota offline é precisamente um circuito cultural e artístico multi-espacial, entre «as ruas e os ateliers, museus ou centros artísticos, bibliotecas, livros de arte e curadorias ativistas» (Zara Pinto-Coelho, 2020). O que me interessa nesta circulação é uma vez mais a força popular, uma qualidade doméstica que Zara Pinto-Coelho também sublinha na produção dos cartazes de protesto, quer na sua manufactura como nas palavras de ordem, colagens, cores, poemas que contêm. Esta força íntima e de pequena escala traduz-se num cartaz para cada corpo nas manifestações para as quais são feitos. Mais ainda, a sua circulação agencia novas possibilidades entre escalas políticas, entre a íntima-individual e a coletiva; entre a domesticidade da manufactura, a difusão e institucionalização em museus e espaços culturais, abrindo outras relações sociais com o objeto político.
Um coletivo português que tem sido prolífero no recurso e citação a estes objetos políticos é a Estrela Decadente, um grupo informal que se reagrupa com diferentes elementos a cada situação artística específica, como já tive oportunidade de escrever, «as suas coordenadas são espaços-bunkers e o seu léxico é bélico e comunitário». As ações e mostras de trabalho «circulam em espaços específicos de associativismo cultural e político» e sinalizam o território por onde derivam com uma prática de intervenção no espaço público marcada com bandeiras, faixas, bombing e palavras de ordem escritas nas paredes, na rua. A publicação é uma mediação e organização relevante para uma atividade artística intencionalmente dispersa e inter-medial. A revista Decadente «documenta e reflete as práticas artísticas do coletivo» com «rubricas de comentário artístico e culturais na cidade» enquanto «exerce o comentário político, a denúncia e a chamada à ação» para organização, protesto ou manifestação política[13]. A conexão do coletivo às manifestações públicas e desejo de transformação social é tão presente que o seu mais recente projeto se designa por Manifestos e Manifestações (Disponível em: https://farra.pt/portfolio-item/estrela-decadente/)
A chamada à ação, organização e agitação política (difusão, reflexão, crítica) através de práticas artísticas ganha corpo de modos diferentes. A vida cultural das manifestações é um dos eixos expressivos do livro Ma Vie Va Changer (2015) da editora GHOST. A editora foi fundada em 2011 por Patrícia Almeida e David-Alexandre Guéniot durante o contexto social da crise económica de 2008, e das políticas de austeridade impostas pelo governo de Pedro Passos Coelho em 2012, de novo, a TROIKA. Em 2015 publicam o livro icónico Ma Vie Va Changer (2015) (Disponível em: https://ghost.pt/Ma-Vie-Va-Changer-2015-1) no qual interpelam as condições materiais da austeridade a partir do quotidiano familiar. Com um formato de álbum de família, o livro constitui-se com a montagem crítica entre recortes de jornais e revistas sobre a(s) crise(s) com os retratos da vida familiar. O processo de manufactura é significado e hiper-visibilizado na plasticidade do cut-up e das colagens, no recurso a manuscritos e a post-its, no comentário político e poético. Tal como o cartaz manufacturado em casa que avança para a Manifestação, também o livro agencia uma domesticidade pública como protesto. As imagens da crise através do quotidiano documentam a família nas manifestações, e, por sua vez, os cartazes na casa da família, evidenciando as transferências e transmissões entre a intimidade e o espaço público do protesto[14].
Não foi com o Ma Vie va Changer a primeira vez que a GHOST colocou em jogo estes artefactos políticos. Em 2012 já haviam publicado o I Fear Nothing (2012) uma série de retratos a cartazes que sobraram no espaço público após a manifestação «15 de Outubro, a Democracia sai à rua!» organizada a partir do movimento espanhol, «Os Indignados». Após alguns meses, produziram o poster Souvenir com a imagem de uma fisga de madeira com a palavra Portugal gravada no objeto. Este foi distribuído e colado pela GHOST na zona de São Bento, por ocasião da visita oficial da Chanceler Angela Merkel a Portugal em Novembro de 2012. Anos mais tarde, o desejo desta souvenir fez parte de uma exposição coletiva na qual a GHOST participou, Souvenirs from Europe (2016), e que circulou por uma rede de espaços de arte/culturais europeus. Não é que o ato fotográfico e a imagem não sejam importantes – fundamentais (!) para os livros editados pela GHOST, no entanto, para o que discuto aqui, entusiasma-me a possibilidade da performatividade política das imagens com as práticas de edição expandidas através deste jogo de citação-repetição-recombinação que ocorreu em contextos sociais e dispositivos artísticos distintos. Encontra-se com o mesmo jogo-montagem que, por exemplo, levanta a zona crítica e relacional entre retratos e recortes no Ma Vie Va Changer: a edição passa a ter uma performatividade não só no livro em si mesmo, mas entre livros, situações, espaços, e outros artefactos como posters e cartazes na rua.
São os cartazes nas mãos de milhares de pessoas que capturam a atenção no documentário RUA (2021) do coletivo de cinema e ativismo Left Hand Rotation («A Rua é nossa!» terminava assim o Manifesto da Acampada do Rossio). A partir da sua própria militância, o coletivo filmou entre 2019-2020 a Manifestação pelo direito à habitação organizada pelos coletivos Stop Despejos e Habita (Setembro de 2019); a Manifestação Feminista de 8 de Março; a Greve Climática; e o protesto Black Lives Matter em Lisboa (Disponível em: https://vimeo.com/lefthandrotation/videos/page:2/sort:date ). O cinema de Left Hand Rotation acorda-se com a urgência da documentação e transmissão da sua própria militância e outras aliadas. Distribuem e mostram os filmes principalmente em espaços de ativismo e de apoio-mútuo espalhados por diversas geografias, e assinam o regime radical da cultura livre de lucro e acessível ao público: toda a sua produção artística está disponível online, nas redes sociais e nos eventos que organizam. Tal como o livro, o filme-documento aparece com Left Hand Rotation como um artefacto de retro-ação para as novas militâncias em luta presente e futura. No documentário (e livro) A Volta ao Mundo em 80 Catástrofes (2021; 2024), o coletivo de cinema e ativistas Left Hand Rotation discutem os monumentos que instauram a memória coletiva com catástrofes humanas e mais-do-que-humanas. As estátuas e monumentos tendem para a fixidez e verticalidade material, enquanto a memória, se entendida como uma performatividade cultural, tende para a horizontalidade dinâmica – para o que vaza e varia enquanto permanece por aqui – organizada pelos corpos de quem experienciou a catástrofe:
«A definição de catástrofe depende de muitos fatores locais e globais e camadas de relações de poder. Raramente é fornecida pela comunidade vítima de catástrofes, que também não tem uma palavra a dizer na gestão de catástrofes a curto ou longo prazo. (…) As catástrofes redefinem a memória coletiva e a experiência das comunidades. As existências são provocadas, desestabilizadas, agitadas, e as vidas humanas são suspendidas na durabilidade do seu efeito. Embora as catástrofes ocorram durante um determinado momento, existe uma temporalidade que as transcende, marcando diversos debates sociais e políticos. (…) A vida e a morte estão organizadas em torno do risco assumido das dinâmicas predatórias do capitalismo e da necropolítica. Complexas relações entre capitalismo, colonialismo, desigualdades sociais e geno-eco-cídios.» (Left Hand Rotation, 2021: 6-8, disponível em: https://www.lefthandrotation.com/avoltaaomundoem80catastrofes/)
A gestão política (oficial) de catástrofes exclui com muita frequência a participação de quem as experienciou. Com esta consideração, a memória horizontal é também uma performatividade coletiva enquanto poder popular em curso, um «espaço de conflito» que se mantém continuamente aberto aos processos de auto-organização e auto-determinação das vítimas, para que na demolição do monumento oficial «o seu pedestal vazio não nos convide a perder a memória da catástrofe» (Left Hand Rotation, 2021:9). Estes processos onto-sociais implicam uma consciência e reflexão objetiva sobre as narrativas unívocas, é conflitual porque é interventiva no status quo, e porque de facto implica uma memória em retro-ação situada. Este modo de coletivizar a memória pública pluralizando-a a partir dos poderes populares parece determinante para a «formação de novas militâncias», e, por contiguidade, para a performatividade política das práticas artísticas.
Penso que a reorganização social do artefacto através da intervenção direta, documentação e edição se conecta com os atos que recortei numa performatividade comum: a interpelação crítica e autónoma da memória coletiva enquanto uma das vias de permanência das lutas sociais em devir, uma transmissão?
Este artigo livre foi escrito a partir da investigação desenvolvida para a tese de doutoramento PIGS: Espaços de Exaustão como Práticas Artísticas no Sul da Europa (2012-2022) financiada pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia [2020.06548.BD].
A informação aqui apresentada foi reunida através de «atenção» participante, entrevistas, conversas informais, trocas de emails. A bibliografia está assinalada e disponibilizada ao longo do artigo, as notas contêm as referências bibliográficas a si relativas.
Revisão e sugestões críticas por Sílvia Pinto Coelho
Revisão Nuno Marques e Elisa Pône
Footnotes