A performance incorpora uma ação que explora um estado liminar, questiona a forma, as condições e a ordem do discurso – corpo e lógica no fazer em igual medida, gesto político de esvaziamento, epistémico, de dádiva e rutura. O que não se domina ou integra nos modos estruturantes de uma cultura de comodificação, tem na performance um terreno de recomeço com novas condições de atuação, onde imagens impronunciáveis podem antecipar o sentir futuro.
Não falamos de xamãs, nem de mártires ou auto-proclamadas mentes visionárias. Artaud projetou sílabas que formavam sons incompreensíveis nos seus últimos poemas; Abramović limpou, durante 4 dias, a carne de 1500 ossos frescos; Beuys, com o rosto coberto de ouro, deu uma lição de arte a uma lebre morta. E aquilo que os une é o uso da ação única, ação que invoca uma regeneração através de uma presença específica, ação que contém em si as várias violências e as várias mortes do mundo.
Se a performance tem campo de estudo com departamento próprio desde os anos 1970, as suas derivações e zonas de atuação situam-se desde a margem da folha, passando pela ruas, até regressar à folha como espaço para desenhar ação (Vito Acconci, por exemplo, começou a sua prática a explorar os limites físicos da escrita na página de papel, para prosseguir na rua, com as suas following pieces (1969) onde seguia estranhos no espaço público, acabando depois, mais tarde, por formar um atelier de arquitetura e projetos instalativos e paisagísticos). A performance que foi de igual modo estruturante e marginal nas artes visuais, no teatro, na dança, e no campo aberto das ciências sociais e humanas (na filosofia e linguística as expressões performativas de J. L. Austin (How To Do Things With Words (1962)) ou a leitura seminal de Judith Butler sobre performatividade do género (Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990) são exemplos clássicos). A performance, depois assimilada como conceito expandido na economia, no management, na monitorização da mão de obra e sua produtividade/eficácia. Na guerra.
Intervenções, leituras e colagem a cuspo de manifestos nas paredes, happenings, peças duracionais, ações efémeras, interativas, trabalho site-specific, ocupações de galerias e espaços públicos, peças live-art, onde o corpo e a voz são o centro – os formatos, as media, as documentações e os impactos da performance variam mas são uma procura de sentido, liberdade e abertura em continuação. Neste número vamos identificar como a performance operou e ainda se atualiza nos modos de fazer e pensar, como um veículo e espaço de escrita, diálogo, corte, passagem e transformação.
Bruno Humberto