Enquanto categoria estética por inteiro, a fealdade remete para o desagradável, para o incómodo e para o que frequentemente suscita uma mistura de desgosto e de fascínio, até mesmo de dor. Usamos habitualmente o termo «feio» para designar o que se afasta de uma concepção da perfeição ou de uma norma preconizada (o belo) ou aquilo que sustenta o contrário de um valor positivo tanto no plano morfológico, como nos planos físico, estético ou moral.
Neste último, a noção refere-se à «hybris» e à desmesura trágica, ao insalubre e a tudo o que é oriundo das paixões não dominadas, tais como o furor, a violência ou a loucura destruidora. Ao nível morfológico, o feio remete para o informe, para o disforme ou para o deformado, no sentido daquilo a que ainda não foi dada forma ou que não tem contornos definidos (ideias do caos, da obscuridade, da lacuna, da confusão). Em termos de forma, a fealdade pode também ser caracterizada por uma degradação ou uma alteração, por exemplo uma boca que grita, um rosto deformado pelo sofrimento, um corpo mutilado, destruído ou desmembrado.
Os efeitos estéticos e emocionais associados com a representação da fealdade na literatura e nas artes visuais levantaram vários debates, nomeadamente no século XVIII, em torno da figura do «Laocoon» e sobre os limites da representação do sofrimento e dos tormentos ligados à perda, à agonia e à morte (Winkelmann, Lessing, Goethe). De seguida, a dialéctica dos contrários e os debates em torno do belo e do feio enquanto noções entrelaçadas vão levar os românticos a operar uma transformação das concepções dominantes sobre a beleza. O «feio», ao mesmo tempo grotesco e sublime, torna-se parte integrante do belo, e até mesmo o «próprio belo», e as suas características são elevadas ao grau de princípios artísticos tais como os que são encontrados nas estéticas do fragmento e do inacabado, da desarmonia, da desagregação e do heteróclito, etc. É em 1853 que Karl Rosenkranz publica a sua célebre obra, «Estética do Feio», que, apesar de uma aproximação ainda muito marcada pelo neoplatonismo cristão, é a primeira obra de estética que tende a postular qualquer coisa como uma «autonomia da fealdade».
A passagem, já iniciada no século XIX, do ideal normativo de beleza como objectivo e primeira regra das artes a uma concepção que pode tomar em consideração todos os aspectos da realidade, com o seu trágico e o seu cómico, as suas absurdidades e trivialidades, dá lugar a uma grande variedade de expressões artísticas que querem romper de forma mais ou menos violenta com os valores e os canons tradicionais.
A explosão da barbárie e do terrorismo de Estado, a violenta opressão e crueldade que persistiu desde a Comuna de Paris de 1871 ao longo do século XX, com os massacres das populações civis e dos movimentos revolucionários, reformistas e libertários de vanguarda, com o imperialismo, a ascensão do totalitarismo, a extrema militarização, os testes e o uso de uma ampla gama de armas, as guerras, os gulags e os campos de concentração, as práticas de tortura de massa, as operações de bandeira falsa («False Flags») e as invasões ilegais de Estados soberanos levarão muitos artistas a exprimir a sua indignação, fúria e desgosto. Não só usam a arte como um meio de inovação e de transformação social e política, mas também como uma ferramenta veemente de recusa, denúncia, provocação e subversão, bem como de resistência ou de revolta política. É, por exemplo, o caso do Fauvismo, do Cubismo («Guernica»), do Dadaísmo e do Surrealismo, da Nova Objectividade, da arte bruta, da arte informal e do Action-Painting, como da arte «outsider», popular, naif, auto-didacta, intuitiva e visionária... Como disse Jean Dubuffet, «Estes artistas derivam tudo – temas, escolha de materiais, meios de transposição, ritmos, estilos de escrita, etc. – das suas próprias profundezas, e não das convenções da arte clássica ou da moda». De forma mais extrema, da body art, do accionismo vienense e de certas tendências da arte contemporânea em que são postos em jogo os limites da representação, nomeadamente pela degradação do corpo, pelo escatológico e as evocações brutais da morte, provavelmente como forma de teatralização externa de uma violência difusa introjetada.
Multiforme e terrível, levado ao seu paroxismo até ao monstruoso, ao abjecto e ao repugnante, o feio tornou-se um motor de criação – ou de purga – e de renovação da expressão artística. Quer seja sublimada ou implacável na transgressão dos limites do irrepresentável – que parecem ser constantemente afastadas pelo dinamismo humano do desejo – a fealdade, independentemente de qualquer dispositivo normativo de juízo estético ou ético, tem pelo menos o mérito e o interesse de amplificar os níveis da percepção e de requerer que se encare resolutamente a complexidade, a dureza e a infinita diversidade do mundo.
*Uma primeira versão deste ensaio foi publicada no «Dictionnaire d'Esthétique et de Philosophie de l'Art», (Ed. Jacques Morizot e Roger Pouivet). (2007). Paris: Armand Colin.
Katherine Sirois