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«(...) esse histórico Salida de la misa de doce del Pilar de Zaragoza tem grande significado por marcar indubitavelmente o nascimento da cinematografia espanhola e, para além disso, fazê-lo não pelas chegadas e partidas de comboios que marcam o inicio da produção de filmes em quase todo o mundo, mas fixando no celulóide um testemunho da sensibilidade nacional, a fé religiosa, e precisamente no templo justamente chamado Santuário da Raça.» (Carlos Fernández Cuenca, 1959[1]).
Imagens do Cinema na Espanha Franquista
Não é certo que Salida de la misa de doce de la Iglesia del Pilar de Zaragoza (Eduardo Jimeno Correas, 1897) tenha sido o primeiro filme da cinematografia espanhola pois existem polémicas e acusações de que sectores ligados à ditadura franquista tenham manipulado a história e criado o mito por motivos ideológicos. Mesmo assim, se compararmos os cenários escolhidos para este filme e para Sortie des usines Lumière (Irmãos Lumière, 1895), obra fundadora da produção de cinema em França, respectivamente a igreja e a fábrica, compreende-se a diferente relação hierárquica que é dada às práticas da religião e do trabalho em cada uma das sociedades, a primeira maioritariamente agrária e a segunda em amplo desenvolvimento industrial. No caso espanhol, desde cedo o cinema foi entendido como uma máquina poderosa capaz de invocar todos os males denunciados pelos poderes vigentes, não só pela proximidade entre corpos que a escuridão da sala favorecia, mas também pela mensagem emanada pela tela. Trata-se de uma perspectiva que acompanhou a difusão do cinema no país, que se reorganizou com a entrada do som nas salas e que a ditadura do General Francisco Franco traduziu num veículo censor que pudesse dominar a população ao longo de várias décadas, obrigando a submeter para análise, primeiro os guiões e depois o produto final e o material de promoção. Entre outras medidas, ainda antes da chegada de Franco ao poder, em 1921, foi ordenado que as salas de cinema madrilenas fossem divididas em três espaços: um para as senhoras, outro para os senhores e um terceiro, iluminado por uma luz vermelha, destinado a casais, não fosse o Diabo envenenar os espíritos e embaraçar os corpos. Em 1937, em plena Guerra Civil, de ambos os lados das trincheiras o cinema era visto como veículo de propaganda pelo que os Franquistas criaram a Junta Superior de Censura Cinematográfica, pouco tempo depois de os Republicanos terem implementado normas censoras nos territórios que dominavam.
A implantação da ditadura franquista, vigente entre 1939 e 1976, foi o momento para o regime confirmar as possibilidades ideológicas do cinema, como meio influente «na difusão do pensamento e na educação das massas» pelo que era imperativa a vigia pelo Estado, para não ser desvirtuada a base da sua missão: o nacionalismo, o catolicismo e o anticomunismo. O cinema era uma das paixões de Francisco Franco, que para além de intervir pessoalmente a nível censório sobre os filmes produzidos, ainda foi autor, sob o pseudónimo «Jaime de Andrade», do argumento de uma das grandes bandeiras ideológicas do regime, o filme Raza (José Luis Sáenz de Heredia, 1942). Havia cinema e autores próximos de Franco, mas, contrariamente ao que o ditador sonhara, muitos dos agentes artísticos relevantes posicionavam-se em campos ideológicos opostos ao seu. Deste modo, durante o Franquismo, e mesmo antes, no decorrer da Guerra Civil, muitos artistas procuraram exílio noutros países, entre eles os influentes Pablo Picasso e Luis Buñuel. Outros remeteram-se a um «exílio interior», continuando a produzir em Espanha, forçados a conviver com os círculos culturais fascistas, mas traduzindo as suas próprias posições ideológicas em obras que subtilmente contornavam as regras determinadas pela censura. A obrigatoriedade da dobragem dos filmes estrangeiros na língua castelhana, abriu à censura novas possibilidades de controlo, de tal modo que em Mogambo (John Ford, 1953), Grace Kelly se torna irmã de Donald Sinden, seu marido na versão original, para poder ceder aos encantos de Clark Gable.
Foi neste contexto restritivo que, a partir da década de 50, foram definidos os termos e a gramática do cinema pós-ditadura, através das obras ricas de Luis García Berlanga (Bienvenido Mister Marshall, Placido, El verdugo), Juan Antonio Bardem (Muerte de un ciclista, Calle Mayor), Víctor Erice (El espíritu de la colmena), Carlos Saura (Los golfos, La caza), Basilio Martín Patino (Nueve cartas a Berta, Canciones para después de una guerra), Fernando Fernán Gómez (El extraño viaje), Miguel Picazo (La tía Tula) ou José Luis Borau (Furtivos). Vários destes cineastas foram educados no novo Instituto de Investigaciones y Experiencias Cinematográficas, criado em 1947, e promoveram as Conversaciones de Salamanca (1955), também conhecidas como Primeras Conversaciones sobre Cine Español. Estas jornadas transformaram-se num manifesto dos novos autores, inspirados pelos desafios do neo-realismo italiano e propondo formas e temas que respondessem aos conflitos e esperanças que atravessavam a sociedade espanhola, contra as gerações anteriores de cineastas, desinteressadas em quebrar os ditames da censura e cuja produção se apropriava do folclore local para promover adaptações literárias ou dramas históricos. Juan Antonio Bardem concluía, assim, a discussão: «O cinema espanhol é: politicamente ineficaz, socialmente falso, intelectualmente ínfimo, esteticamente nulo e industrialmente raquítico».
Surcos (1951) de José Antonio Nieves Conde, cineasta mais velho e apoiante do regime mas desiludido com a revolução social que tardava, era a excepção apreciada pelos «jovens turcos» porque apontava sinais dos necessários ventos de mudança. Neste conto moral, em que o fenómeno da migração massiva da população rural para os centros urbanos é misturado com uma história de gansters, uma família é confrontada com a realidade violenta que a cidade esconde (a desagregação familiar, os guetos residenciais sobrelotados, a pobreza, a prostituição e a delinquência) para no final regressar à saudosa aldeia e ver recomposto o que restou do núcleo familiar, conclusão que ia de acordo com as expectativas franquistas. Em duas cenas deliciosas que ironizam com o gosto do regime e com o tom do próprio filme, uma mulher «protegida» do chefe da quadrilha sugere-lhe ir ao cinema ver um «filme psicológico» e ele responde que isso é uma coisa do passado, que o que está a dar é o neo-realismo. A mulher entediada procura adivinhar o que a espera nesse tipo de filmes, se não tratarão de problemas sociais e de bairros de lata. Depois da sessão, no regresso a casa ainda lamenta que o público se entusiasme com aquela miséria na tela, quando observar o quotidiano dos ricos é muito mais excitante. As contradições que o filme suscita encontraram eco nas próprias contradições e arbitrariedade do regime censor, quando rebentou um enorme escândalo por a Igreja Católica ter chumbado o seu conteúdo cru e amoral e, simultaneamente, lhe ter sido atribuído o título oficial de «Interesse Nacional», em detrimento de um pastelão histórico muito ao gosto do poder instituído.
As Conversaciones de Salamanca foram uma etapa importante para a criação do Novo Cinema Espanhol que passou a insinuar tudo o que Franco preferia ter apagado do país que desenhara: as feridas da Guerra Civil, apenas mencionada como «guerra», pelo que um espectador menos familiarizado com a História Espanhola pensa tratar-se de uma das duas Guerras Mundiais; a asfixia orquestrada pelo regime repressor representada por personagens enclausuradas em espaços interiores, barreiras em que até os vidros parecem inquebráveis, e conduzidas a finais secos em que a introdução brusca dos créditos não dá direito a lágrimas; o movimento migratório para as cidades e as consequentes condições de vida precárias; a posição social da mulher; a presença sufocante da Igreja Católica, com a repetição de cenas com padres, às vezes apenas como figurantes; a homossexualidade; a transsexualidade; o adultério, a gravidez na adolescência; a prostituição; ou a criminalidade. Um dos expedientes utilizados e que a censura parecia tolerar, era deslocalizar narrativas problemáticas para lá das fronteiras de Espanha ou entregar a actores estrangeiros a representação de actos considerados «ilícitos»: nos primeiros planos de Calle Mayor (1956), uma voz-off anuncia que «a história que está prestes a começar não tem coordenadas geográficas precisas e que a cor do céu, a forma das casas, os anúncios nas paredes ou um certo modo de falar e de sorrir não devem ter uma bandeira específica»; a primeira imagem produzida pelo cinema espanhol de uma mulher em bikini foi protagonizada pela actriz sueca Elke Sommer em Bahía de Palma (Juan Bosch, 1962). Paradoxalmente, o Novo Cinema Espanhol incomodava o poder político a nível interno, mas obtinha prémios nos grandes festivais de cinema internacionais (Cannes, Veneza e Berlim), o que sugeria no exterior uma imagem de modernidade de Espanha, com que esse mesmo poder se vangloriava para responder ao isolamento internacional que o estatuto ditatorial lhe tinha imposto.
Entre as décadas de 60 e 70, também o cinema de terror conheceria um desenvolvimento crescente, em linha com o que acontecia em outros países europeus como o Reino Unido, a Itália, a França ou a Alemanha, assim facilitando o financiamento em regime de co-produção e a distribuição internacional. Como em grande parte da Europa se assistia a uma maior liberdade de costumes, nomeadamente no que dizia respeito à representação do sexo e da violência, desde cedo esta produção – Jess Franco (Gritos en la noche, Miss Muerte, Eugenie, Vampyros Lesbos), Narciso Ibáñez Serrador (La residencia, ¿Quién puede matar a un niño?), Amando de Ossorio (tetralogia dos Templarios Ciegos), Eloy de la Iglesia (La semana del asesino) e as dezenas de filmes interpretadas por Paul Naschy – passou a alimentar os circuitos «exploitation» das grandes cidades internacionais, tendo sido produzidas várias versões com títulos diferentes, em que antecipadamente, cada uma era amputada dos elementos proibidos pela censura do país a que se destinava. Não causa surpresa que, por regra, a versão espanhola fosse a mais contida. Jess Franco, grande autor de culto internacional, passou a filmar fora de Espanha, nomeadamente em Portugal, onde criou dezenas de obras em territórios softcore e hardcore, alguns em conjunto com produtores, técnicos e actores locais (incluindo a produtora Interfilme e a pouco conhecida e belíssima actriz Britt Nichols). Numa das suas últimas entrevistas, a propósito de Christina, princesse de l’érotisme (A Virgin Among the Living Dead, 1971), filmado em palacetes, casas senhoriais e jardins da zona de Sintra, Jess Franco assinalou a surpresa pela permissividade que sempre sentiu em Portugal, que igualmente vivia sob uma ditadura, realçando a cooperação das autoridades portuguesas ao enviar agentes policiais para garantir a segurança, mesmo quando se tratavam de cenas eróticas filmadas em locais públicos. O que se pode justificar através de um equívoco criado por o realizador ter o mesmo apelido do ditador espanhol ou talvez por uma maior abertura propiciada pelo regime marcelista.
Para além do grupo de Madrid associado ao Novo Cinema Espanhol, surgiu a denominada Escola de Barcelona que, apesar do que o nome poderá indicar, não se tratava tanto de um grupo organizado mas sim de um conjunto de realizadores, alguns sem formação académica, que se movimentavam entre a burguesia catalã partilhando algumas preocupações estéticas, nomeadamente de ordem formal, tendo Pere Portabella e Vicente Aranda como os nomes mais proeminentes. O trabalho de Portabella é relevante enquanto transversal às várias facetas do cinema espanhol e a modos particulares de se relacionar com a censura. A sua carreira começou como produtor de Los golfos (Carlos Saura, 1960), El cochecito (Marco Ferreri, 1960) e Viridiana (Luis Buñuel,1961), todos emblemáticos do novo olhar sugerido pelo Novo Cinema Espanhol. Refugiado no México após a Guerra Civil, Buñuel foi convidado para regressar a Espanha e filmar Viridiana, que através de um cardápio variado se transformou numa enorme cratera nos limites decretados pela censura: o olhar pecaminoso sobre as pernas de uma criança que salta à corda; o fetichismo do tio que cumpre rituais vestindo a roupa da noiva falecida na noite de núpcias; a «santa» Viridiana vestida com os mesmos trajes e drogada para o tio abusar sexualmente dela e obrigá-la a renunciar aos votos de freira; os pobres recolhidos por Viridiana que, na sua ausência, organizam um festim-orgia e, imitando Cristo e os Apóstolos, compõem um retrato decalcado de A Última Ceia de Leonardo da Vinci; ou a violação de Viridiana pelos pobres a quem dera abrigo. A censura ainda interveio, pedindo-lhe para alterar o final: Viridiana a entrar em casa e a fechar a porta, ficando sozinha com o primo. Em alternativa foi aceite a nova proposta de Buñuel: Viridiana entra em casa, onde está o primo com a criada, com quem está envolvido, e convida-as a jogarem com ele às cartas, ficando implícito um ménage à trois. Só o escândalo provocado pela sua exibição no Festival de Cannes levou as autoridades a renegá-lo, eliminando-o durante muitos anos do registo de filmes produzidos em Espanha.
Por volta de 1969, em Barcelona, Pere Portabella acompanhou a rodagem de El Conde Drácula (Jess Franco), uma adaptação que pretendia ser fiel à obra literária Dracula (1897) de Bram Stoker, mas há quem aponte que haveria interesse de Jess Franco em equiparar Drácula com o ditador Francisco Franco – o facto de ambos terem o mesmo apelido é apenas coincidência. O resultado do trabalho de Pere Portabella foi a notável obra Vampir-Cuadecuc, em que usou filme a preto e branco de alto contraste, para a criação de imagens expressionistas que revelam os bastidores, a definição dos ambientes, a criação artificial de nevoeiro e de teias de aranha, as pausas, as repetições e os sorrisos dos actores para a câmara, expondo os códigos que definem o género do terror e explorando a linguagem do cinema. Os diálogos foram substituídos por silêncio ou música concreta da autoria de Carles Santos que, unindo o som de instrumentos musicais a ruídos reconhecíveis do quotidiano, interfere insolitamente com o conteúdo da imagem, criando situações perturbantes, como as cenas em que os actores falam e apenas se ouvem sons que parecem batidas insistentes de alguém numa porta ou no soalho. No entanto, o que distingue o dispositivo de Cuadecuc de um mero making off é o facto de Portabella (re)filmar a encenação de Franco, como se lhe pertencesse, partindo de diferentes ângulos, não só vampirizando o trabalho do outro realizador, como criando um retrato de uma Espanha franquista parada no tempo, com ruas desertas e prédios que parecem desabitados, a contrastar com outras imagens ou sons em off que parecem esfumar-se e que indiciam sinais de movimento, mudança ou progresso: uma filmagem a partir de um veículo em movimento rápido até tocar a abstracção; um comboio que passa tão veloz que só retemos as linhas das carruagens ou os sons de um avião e de um martelo pneumático a perfurar o chão. Do alto da varanda da sua mansão, Drácula impõe o seu reino de terror, observando atento todos os movimentos à sua volta. Pere Portabella não mostra a morte de Drácula, pedindo ao actor que o interpreta, Christopher Lee, que retire todos os elementos da sua máscara para ler o excerto da obra de Bram Stoker que descreve esse momento, terminando num close up do rosto do actor, imóvel por alguns segundos a olhar para a câmara, enquanto se ouve a voz de alguém a gritar: «corta!». É o fim do filme e a manifestação da vontade de derrubar o regime opressor, que aconteceria poucos anos depois, em 1975, com a morte do ditador.
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Agradecimentos: Sabrina D. Marques, Filipa Cordeiro, Rita Gomes Ferrão
Footnotes