Um artigo-conversa com Irene Lusztig, realizadora de The Motherhood Archives e Maile Colbert, designer de som
Em 2011, a cineasta Irene Lusztig entrou em contacto comigo para que fizesse a composição sonora do seu projecto fílmico, The Motherhood Archives. [Os arquivos da maternidade].
Irene passou vários anos a comprar velhos filmes educativos no eBay e a trabalhar em arquivos históricos de modo que acumulou uma notável e fascinante colecção de filmes de arquivo destinados a ensinar às mulheres como estar grávida, dar à luz e cuidar de bebés. The Motherhood Archives usa este extraordinário e valioso arquivo para criar um filme-ensaio lírico, que escava histórias escondidas sobre o parto no século XX, clarifica as nossas mutáveis narrativas de sucesso e fracasso maternal e levanta questões sobre as construções sociais e históricas em torno da maternidade.
Fiquei imediatamente intrigada com o seu conceito e processo de construção, bem como a sua vontade em trabalhar o design de som de uma maneira muito colaborativa e isto numa fase do projecto anterior à da maioria dos cineastas. Geograficamente distantes, Irene e eu trabalhámos principalmente por «satélite», através de e-mail, chat, Skype, telefone e software de partilha de arquivo de modo a comunicar e enviar ficheiros. Conseguimos ter algumas semanas de produção em Nova Iorque e Santa Cruz, mas a maior parte do trabalho foi construída num vai-e-vem, através de um oceano e um continente ... da Califórnia para Lisboa, Portugal, de Costa Oeste para Costa Oeste. Em vez de dificultar, este método conferiu ao trabalho uma natureza de cadavre exquis. Para a criação deste artigo, seguimos basicamente o mesmo processo, a partir de uma conversa inicial no Gmail.
Maile Colbert (MC): Estou ao mesmo tempo com vergonha e contente por te perguntar isto… porquê eu, Irene?
Irene Lusztig (IL): Tinha escutado o teu trabalho tanto no filme de Adele Horne [The Tailenders, 2005] como no de Rebecca Baron [How Little We Know of Our Neighbors, 2005], filmes com um som maravilhoso.
O som em How Little We Know of Our Neighbors, em particular, fazia algo com o natural/não-natural que me interessava muito – field recording [gravações de campo] que se transformam em outras coisas à medida que vão sendo acumuladas, transformadas e processadas. Penso que sou uma documentarista/artista que está interessada na actualidade mas não estou particularmente interessada na forma tradicional do documentário, e penso que o teu som partilha dos mesmos investimentos e desinvestimentos. Parte de sons do mundo real mas leva esses sons a lugares inesperados que estão muitas vezes longe do seu contexto original.
MC: Gosto muito que tenhas levantado a questão do «natural/não-natural.» Não só descreve bem o meu trabalho e abordagem em geral mas também a experiência que temos no teu filme de maternidade mediada.
Comentámos várias vezes que algumas partes eram muito ficção científica… depois pensas, uau, isto aconteceu realmente, isto é parte de uma história que nos traz até à nossa experiência de hoje, uma que estou a viver actualmente, pois fiquei grávida recentemente, pela primeira vez!
IL: Acho que há muito a dizer sobre a ficção científica e o som! Primeiro, há uma grande tradição de ficção científica feminista com a qual o nosso trabalho tem muita proximidade: Margaret Atwood, Ursula Le Guin, e até coisas como a ideia futurista de úteros externos, de Shulamith Firestone. Muito desse trabalho tem em comum esta vontade de «tornar estranho» ou desnaturalizar aspectos da reprodução feminina e da maternidade de modos que parecem radicais.
MC: Não sei se consegui esconder o meu entusiasmo quando primeiro me disseste que havia uma parte que te parecia ficção científica. Isto é algo que julgo ter origem na minha infância. O meu pai era e é um grande aficionado dos filmes de ficção científica: cresci com a banda-sonora de The Day the Earth Stood Still [O dia em que a terra parou, 1951] e Lost in Space 1. Estas paisagens sonoras que não «eram» tornaram-se uma parte importante daquilo que eu queria escutar.
IL: Quando era mais nova julgava que a ficção científica não me interessava, mas acho que ter um ser humano a crescer dentro do meu corpo mudou a minha posição em relação a isso!
Acho que a ficção científica quase sempre dá expressão às nossas ansiedades em relação ao futuro, às tecnologias, em relação às coisas que tentamos controlar. E claro, as questões e ansiedades sobre tentar e não conseguir controlar as coisas, estão no cerne das nossas experiências com a gravidez, o parto e o aprender a ser mães no século XXI. Assim como estão as questões em torno das mediações tecnológicas, coisas como intercomunicadores de bebés ou preocupações sobre se o iPad está a afectar o cérebro do teu bebé. Então a ficção científica aparece como um espaço sónico que é perfeitamente adequado para gerirmos estas ansiedades maternais.
MC: Uma das nossas maiores preocupações era assegurar que as coisas não fossem demasiado sombrias para a audiência.
IL: As pessoas respondem muitas vezes com ansiedade ao filme e à construção sonora. Nunca tinha feito um filme onde o som fosse tantas vezes discutido nos debates pós-projecção e normalmente a pergunta é algo como «porque é que o som é tão sombrio/obscuro/provoca ansiedade?». Parece-me ser algo muito específico ao tema de The Motherhood Archives – quão ansiosos nos sentimos em relação ao assunto enquanto sociedade e também quanto nos sentimos desconfortáveis em falar abertamente sobre estas ansiedades.
MC: Ainda me surpreende o quanto fico chocada com as reacções das pessoas a este filme, como ficam desconfortáveis. A sociedade norte-americana parece temer tanto o nascimento como a morte! Falamos de um como do outro da mesma maneira, e não nos permitimos a complexidade de, por exemplo, estar simultaneamente ansiosos com a forma como isto vai afectar a nossa carreira e identidade e quanto estamos apaixonados por cada bater de coração que escutamos!
IL: Consideras-te uma artista feminista? Pergunto porque ser mãe (e fazer arte sobre a maternidade) tornou-me mais consciente de ser uma artista feminista.
MC: Considero-me absolutamente uma feminista – é algo integral a todos os elementos da minha vida e do meu trabalho. Também comecei a percebê-lo de outra forma desde que fiquei grávida: perdi recentemente um trabalho que me interessava muito pois havia a ideia que eu não conseguiria fazê-lo porque estou grávida. Um entrevistador perguntou-me recentemente como é que eu navego entre a maternidade e o meu trabalho e eu não pude deixar de pensar que esta questão nunca se colocaria a um homem artista.
As minhas recentes gravações da minha filha a crescer e a mexer-se têm sido maravilhosas de escutar: aquosas e suaves, ficas com a sensação de estar a ouvir apenas uma pequena parte do seu mundo sónico, tão misterioso. Mas faz-me lembrar quando era criança – adorava mergulhar em qualquer corpo de água, até ao fundo, libertar a respiração e ficar lá o máximo de tempo possível…era uma grande sensação de paz. Adorava a perspectiva visual do mundo acima de mim, mas gostava especialmente do profundo gentil filtro de tudo o que é aural que passava através deste mundo aquático. Alguns dizem que a sensação de paz se refere à primeira paisagem sonora que experienciamos… e ao escutar a actividade no meu útero parece-me que isto não será assim tão improvável.
IL: Existem muitos sons aquosos no filme! A minha amiga Irene Gustafson estabeleceu uma relação muito interessante entre a água da banda sonora e a narração no segmento sobre sono crepuscular, do modo como «o som calmante da água corrente abafa o choro dos recém-nascidos de forma a impedir a formação daquilo a que se chamam ilhas de memória.» Esta descrição da água que é literalmente usada para apagar a memória, possibilita que todos os sons de água ao longo do filme funcionem como uma metáfora para o apagamento da memória histórica… o facto de já não nos lembrarmos do momento histórico em que as feministas advogavam o uso de anestésicos e partos com assistência médica, por exemplo… as várias formas como as narrativas presentes no filme estão agora esquecidas.
MC: Acho que os sons são como células num certo sentido…transportam uma memória, ainda que abstraída.
É por isso que gosto muito de trabalhar a partir de sons naturais, chega-nos algo desta paleta, uma sombra é transportada da sua fonte inicial. Enquanto animais usamos o som como informação, muito processamento e tradução têm lugar ainda que não tenhamos consciência disso, e registamos algo desse processo. Acho que quando um som é removido durante o processamento ainda transporta a fonte inicial de informação e nós detectamos isso.
IL: Falar de memória celular faz-me lembrar o segmento no filme que um amigo descreveu como «células crocantes»: a imagem é de um dos primeiros filmes educativos do século XX sobre reprodução – células de ovelha que se estão a dividir e a reproduzir – e o som é o som da magnetosfera, o que eu adoro!
MC: Acho que escutar a magnestosfera é algo que me estabiliza de certa forma. Eu uso muitas vezes um gravador VLF quando estou em viagem. Se há relâmpagos ou tempo espacial, como tempestades solares, conseguem-se paisagens sonoras muito belas e estranhas. Eu uso as gravações com frequência no meu trabalho, mas o teu filme é o primeiro que parecia exigi-las como fonte sonora! Esse segmento parecia chamar por elas, na sua forma «pura». Quando as colocaste lá e me enviaste, fiquei muito impressionada… parecia que de alguma maneira esse era o som do vídeo.
Tenho estado a coleccionar e a trabalhar na minha biblioteca de sonora faz já uma década, e nunca tinha estado na situação em que um cliente ou um colaborador se interessassem por ela de uma forma tão directa. Parecia-me fazer todo o sentido partilhá-la contigo e criar a partir dela, para este projecto. Ainda me lembro, para cada som – alguns deles muito antigos – de cada origem, condições de gravação, a sua envolvente (ou melhor, normalmente aquilo que ele envolvia!). Tornaram-se símbolos mas também gatilhos de memória. Entretanto, com este projecto, alguns deles mudaram e foram guardados donde, existem gerações também. E os sons do arquivo histórico que lhes adicionaste…eles chegam com a sua própria história e memória; o teu filme e o seu uso são também adicionados a isto.
IL: Por falar em som de arquivo, um dos momentos (para mim) mais fantásticos da nossa colaboração aconteceu já perto do final quando me enviaste o som para os créditos finais. Nunca chegámos a falar sobre isto porque assim que os enviaste eu soube intuitivamente e imediatamente que era perfeito. O som é uma transformação em reverso da gravação da valsa de Chopin em cilindro de cera, que é usada num momento anterior no filme, durante a sequência de grávidas no ballet. Há algo de genial no teu instinto em trazer de volta aquela música, muito educada e contida, no final e revertê-la – isto, porque vira de cabeça para baixo algo familiar e semi-recordado, mas também porque, parece-me, diz algo sobre a história, o que está em sintonia com a forma como o filme trabalha. O filme pensa sobre histórias do parto mas a estrutura cronológica é circular, não linear – narrativa. A história está sempre a assombrar o presente e a história é sempre circular. Faz todo o sentido, de uma forma incrível e bela, que esta música, que já ouvimos antes, retorne no final nesta forma estranha e em reverso.
Maile Colbert & Irene Lusztig - Reverse Beginning