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Nas publicações de artes visuais e arquitectura, os exemplos transformados e apropriados de edifícios e até de bairros modernistas têm uma importância especial. São sobretudo imagens muito poderosas, cheias de informação, mas também acompanhadas de um sentimento de estranheza. Nessas imagens vemos paisagens criadas pelo homem – desenhadas profissionalmente ou às vezes nem por isso. Por vezes são criadas daquela forma devido a necessidades urgentes, disponibilidade de materiais ou até conhecimentos técnicos. Podemos ver pessoas ou não, mas vemos muito acerca das pessoas. Estamos perante as vidas, as casas dos outros. E como outrora escreveu Susan Sontag[1], há um lado problemático nas imagens, já que estas simplificam e criam a ilusão de um pacto silencioso, uma visão comum, uma retórica[2]. Ainda assim, estes modernismos arruinados com todos os seus novos significados, contêm vidas, problemas, situações potenciais, aprendizagens, necessidades a resolver ou com as quais se tem de trabalhar, mais do que provocar apenas inspirações estéticas ou consensuais acerca de problemas relacionados com urbanização e o que se considerou «feio». Este texto é sobre a mudança constante do que é apreciado na arquitectura.
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Um relatório das Nações Unidas refere a certa altura em 2009 a população urbana ultrapassou a população rural, constatando que o mundo se tornou um lugar mais urbano[3].
Enquanto em 1990 existiam apenas 10 mega-cidades, onde habitavam 153 milhões de pessoas, em 2014, o número de mega-cidades chegou a 28 e a população aos 453 milhões de pessoas[4]. O mesmo relatório menciona ainda o rápido crescimento das cidades pequenas. As políticas urbanas estão orientadas para atrair investimento privado[5] e as cidades competem entre si por um um lugar mais apetecível dentro das redes globais. Muitas cidades de escala média enfrentaram um crescimento súbito e com rápidas transformações: diferentes tipos de gentrificação, remoção da indústria, explosão da habitação residencial, cidades históricas transformadas em museus ao ar livre, serviços online globais, espaços de coworking, centros comerciais de nova geração[6], lojas de café third wave, comida artesanal, mercados de designers, as mesmas marcas, os mesmos cartazes de cinema e os resultados das mesmas tendências de design em todas as escalas de produção… Vender tudo o que é considerado original, de forma a que se possam comprar todas as semelhanças. Quando Walter Benjamin escreveu sobre a perda da aura em obras de arte, na época da reprodução mecânica, talvez não tenha previsto que a cultura visual no espaço urbano iria dominar praticamente todas as características históricas, sociais e climáticas das cidades[7] e que os lugares iriam começar a perder a sua aura na época da reprodução digital. Em 2014, a 14ª Bienal de Arquitectura de Veneza[8] discutia que o modernismo eliminou as diferentes características nacionais na arquitectura.
Em meados do século XX, o modernismo começou a moldar o desenvolvimento dos centros financeiros da cidades. A habitação moderna do Pós-Guerra criou a identidade da maioria dos subúrbios das cidades europeias, norte-americanas e soviéticas. Com a vaga neoliberal, as disciplinas da arquitectura e design urbano, que já lutavam com críticas vindas de todos os lados e desencantavam revisões do alto modernismo, tinham agora a oportunidade de crescer de outra maneira, em cooperação com o capital privado e corporativo. Durante os primeiros 30 anos de neoliberalismo, criaram-se novas ferramentas para alinhar os interesses estatais com os interesses empresariais[9] e a arquitectura acabou por se afastar da sua posição comprometida socialmente. Acabaram-se os projectos residenciais suburbanos em massa, «edifícios-esteira»[10], cidades caminháveis[11] e tantas outras abordagens utópicas.
Estas foram substituídas pelas buscas teóricas em arquitectura, talvez menos preocupadas com a dinâmica social[12]. Novos tipos de lugares, como condomínios, terminais de transporte, novos centros de arte, novos espaços de escritórios, transformação de descampados e construção de casas de luxo tornaram-se na prática comum e com o tempo passaram a dominar o espaço urbano.
Enquanto as «cidades de classe mundial» se iam tornando lugares semelhantes com a globalização galopante, nestas últimas décadas as publicações contemporâneas, exposições, bienais – importantes plataformas de discussão[13] para a arquitectura e o urbanismo, têm vindo a focar-se cada vez mais em espaços que não os edifícios de assinatura de arquitectos estrela. O âmbito da «arquitectura sem arquitectos», desde que a expressão foi usada por Bernard Rudofsky em 1964, para nomear uma exposição no MoMA e o livro que a acompanhou, mudou muito: de uma compilação de exemplos de arquitectura vernacular, que mostrava a diversidade das condições de vida em diferentes tempos e geografias (que ele chama arquitectura «sem pedigree», da qual necessitamos para «nos libertarmos do mundo estreito da arquitectura oficial e comercial»[14]) para imagens, que nos dizem muito sobre as condições de vida de milhões de pessoas. As imagens foram feitas talvez em Mumbai ou Caracas, Cairo ou Istambul – se não estivermos familiarizados com os locais, ainda assim conseguimos dar um palpite. Por vezes, os blocos na imagem são de geografias pós-soviéticas da Europa de Leste ou dos arredores perfeitamente preservados de uma cidade alemã. Por vezes, estas paisagens são consideradas como feias[15], mas como as torres de blocos ou os «squatts» possuem algum tipo de estética e charme, acabam por ser objecto de inúmeros investigações e trabalhos artísticos.
Nicolai Ouroussoff, crítico de arquitectura do New York Times durante quase uma década, descreveu o interesse dos jovens designers pela arquitectura do pós-guerra, especialmente os edifícios brutalistas, como uma reacção ao contemporâneo, que ele descreve como «as adocicadas estruturas de inspiração Disney[16] de hoje em dia». Um vídeo do Urban-Think Tank sobre Mumbai mostra Alfredo Brillembourg, um dos fundadores do grupo, a caminhar nas ruas da cidade e a comparar os chamados bairros de lata com o quarteirão modernista na mesma cena. Brillembourg – coerente com as suas próprias palavras acerca de elementos urbanos, como auto-estradas e cinturas verdes, lembrando os princípios do CIAM[17] –, diz que acha a «cultura da aldeia muito mais interessante»[18]. Parece que por um lado os exemplos monumentais de design, de «arquitectura» continuam a ter o seu lugar, mas por outro lado existe o vernacular, a aldeia, o não-design, os que existem sem arquitectos… Duas fontes de autenticidade ou talvez de inspiração, representadas como tese e antítese mútuas.
As estéticas europeias do século XVIII romanceavam a natureza selvagem e as ruínas criadas pelo homem, como elementos equivalentes[19]. Andreas Huyssen[20] ao escrever sobre as famosas gravuras de Piranesi, afirmava que nas obras deste a arquitectura incompleta ou decadente são a base da sua autenticidade e genuinidade. Esta tendência inverteu-se no século XX com orgulhosas representações de grandes construções, produção em massa e trabalhos de engenharia, como barragens ou pontes, que se tornaram símbolos de um triunfo sobre a natureza. Materializavam a crença numa sociedade melhor, conseguida através da tecnologia. Era a troca dos recursos naturais, da paisagem, das árvores e de todos os elementos românticos da era anterior pelo progresso, energia e desenvolvimento industrial[21]. Na sociedade pós-industrial, estes monumentos modernistas estão assombrados por um sentimento de nostalgia[22]. A nostalgia é um acto insurgente contra o progresso linear[23] inerente ao pensamento modernista. Svetlana Boym explica a perspectiva nostálgica como aquela que «(...) deseja tornar a história numa mitologia colectiva ou privada, revisitar o tempo assim como o espaço, recusando render-se à irreversibilidade do tempo que flagela a condição humana.»[24]
Se voltarmos à condição humana, as favelas verticais, os bairros de lata modernos, as relíquias de outro tempo, apropriadas (como a famosa Torre de David[25] em Caracas, na Venezuela; ou o Grande Hotel, na Beira[26], em Moçambique), são a síntese de um período anterior em arquitectura (considerado um grande falhanço mas também completamente contemporâneo, vivo e inacabado) com um objectivo qualquer que os arquitectos ou urbanistas tiveram, mas que nunca conseguiram projectar. As razões pelas quais a disciplina da arquitectura é magnetizada por estes exemplos são muito bem articuladas num artigo[27] publicado na revista The Funambulist:
«(...) aquilo que nos parece fascinar na arquitectura sem arquitectos é o grau de intensidade no qual a vida se desenrola a todos os níveis. A auto-construção dispõe uma complexidade de materiais e espaços numa mistura de voluntarismo e de casualismo. A densidade populacional força as pessoas a comunicar e a negociar protocolos sociais. As multitudes de necessidades despoletam uma economia local baseada na reparação de objectos e por vezes em actividades-piratas. A própria existência de tais arquitecturas fornece uma forte tomada de posição política em relação ao que as rodeia. A alteridade do território permite um sistema legal e comportamental diferente, que se articula em si mesmo. Todos esses elementos - e provavelmente muitos mais ainda - oferecem algo que nenhum arquitecto é capaz de pensar ou planear. Ele(a) apenas muda aqui e ali alguns catalisadores, no seu plano e na construção, esperando que venham a despoletar situações, nas quais a vida se possa desenrolar»
Esta citação lembra a definição de «arquitectura que melhora a vida» de Juhani Pallasmaa, do seu livro Olhos da Pele[28], publicado em 1996, onde escreveu que, percepcionada por todos os nossos sentidos, ela cria uma combinação de como nos percepcionamos a nós mesmos e de como percepcionamos o mundo. No livro, ele repete que uma arquitectura (no seu caso a fachada de vidro espelhado) que não permite aos utilizadores/visitantes/habitantes questionar ou sentir a realidade e a si mesmos, que não os afecta e os deixa indiferentes, e que cria um sentimento de alienação, é uma «arquitectura insincera», que não permite uma experiência existencial, e em vez disso utiliza estratégias de «persuasão instantânea»[29].
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Pouco convencidas pelas estratégias anteriores em arquitectura e urbanismo, e tampouco pelas condições contemporâneas das cidades, as exposições, publicações e obras de arte que lidam com a urbanização têm vindo a dar atenção a sistemas, organizações e redes complicadas de relações. Muitas vezes os designers, investigadores e curadores produzem representações romantizadas do que existe, e na disciplina da arquitectura, uma grande parte dessa curiosidade cai num ajuste de contas com o passado, uma ferramenta para criticar as grandes narrativas e os «autor»ismos. Estas paisagens, enquanto sínteses de ideologias modernistas e da natureza das dinâmicas sociais contemporâneas, estão claramente a prometer a reivindicação inicial da arquitectura, que era a de representar o seu tempo e de transformar-se como a própria vida. Reinhold Martin[30] escreveu que, embora o fantasma reprimido da utopia assombre o pós-moderno, está na realidade a caracterizá-lo. Nas cidades globais existe esta relação semelhante entre o reprimido e a repetição. O que os edifícios assinados fizeram aos centros das cidades globais, está a ser recusado por muitos jovens arquitectos. A antítese da arquitectura comercial tardia, os espaços que são dinâmicos, complicados ou chamados de orgânicos contêm muitíssimos componentes de uma condição urbana mais problemática.
A arquitectura e o urbanismo ou qualquer outra disciplina singular têm apenas uma participação limitada na emergência desses espaços. A investigação artística ou em design tem vindo a lidar com formas de simplificar e explicar o que está para além do conhecimento que temos até agora. Mas em simultâneo muitas práticas já reconhecem o papel dos arquitectos num trabalho de equipa mais alargado e muito tem vindo a ser produzido sobre a participação, as comunas urbanas e modelos de conhecimento partilhados. Ao desmistificar as narrativas acerca do trabalho, ao desmistificar o grande consenso sobre as condições de trabalho[31], a forma como o espaço é percepcionado e produzido vai mudando continuamente. Com cada mudança, a definição de feio transforma-se e novas representações estéticas vão aparecendo. Os monumentos modernistas não são vencidos pela natureza como acontecia aos monumentos clássicos; mas com as redes sociais, ficam à mesma esteticamente arruinados.
Footnotes