1.
Começou por ser um riso sonoro e grave entre pequenas frases jocosas. A porta bateu com demasiada força e os passos nas escadas eram pesados. Cada vez mais perto, a voz entrou. As patas iam caindo sobre o corredor de madeira e, empurrando o corpo contra os móveis, partiam vidros e tombavam livros e totens. Aparece o corpo na ombreira. Grande — imenso para todos os lados. Uma barriga caída e flácida de quem come óleo e álcool. As pernas deformadas por um andar trôpego que nunca se corrigiu. O cabelo negro, apanhado atrás com alguns fios soltos de onde escorria suor, condizia com o olhar vidrado que fitava o infinito das suas ideias traiçoeiras. Olhava em redor à procura de comida. As plantas murcharam e as pinturas empalideceram.
2.
Os feios às vezes entram na nossa vida e não nos damos conta, só passado muito tempo. Vêm em transparências e vão-se instalando em pequenos detalhes mínimos e ínfimos. Só que ao fim de algum tempo os detalhes são muitos e ganham corpo e já estão na nossa forma. A nossa forma já é com esses detalhes alheios. E o que era alheio passa a ser nosso.
3.
— Feio és tu! — respondeu ela prontamente.
Nada havia de agradável naquela figura. A crepitação grossa e descontínua da respiração denunciava uma rinoplastia mal sucedida, ou defeito de nascença. O movimento do ar expirado a vibrar na janela, a agitar a cortina, a obstruir a sua própria traqueia, a ressoar na parede, a fazê-lo lembrar-se do martelo, da extensão do seu braço, o seu braço gordo, forte, pesado, a martelar, martelar, martelar, exércitos de caroços de cerejas.
— Larga-me, ó malvado.
Deu por si demasiado assustada para se conseguir defender das enormes mãos da criatura.
4.
As camadas de informação, factos e memórias juntam-se e formam uma densidade de imagens construídas de imagens, escritas sobre escritas. Justaposições de inocentes que se tornaram criminosos. Deformações físicas que correspondem a males psicológicos.
5.
Ele agarrou a minha roupa e desapareceu. Tive de esconder a nudez atrás de um pilar enquanto manifestava o meu desconforto a alguém que estava do outro lado, e que ia rodando para me ver e eu rodando para me esconder. Tantas pessoas neste chão de terra batida, mais os montes a subir e a descer e os caminhos com marcas de carros, ladeados de ervas. Foi aí que estacionei o carro. No fim já não o encontrava. Voltas que voltas, tantos carros iguais ao meu a passar, e eu não sabia onde tinha parado. Nem para onde me virar. Sentia uma angústia enorme de estar perdida com tantos estranhos à minha volta que pareciam conhecer-me mas que eu não conhecia. Fiquei com as jóias da Maria em troca da minha nudez. Pouco depois, quando todo aquele vermelho e castanho se desvaneceu e o recinto se esvaziou de carros e pessoas que seguiam em fila, lembrámo-nos da onda que vinha e procurámos uma rocha que nos defendesse. Se a onda me agarrasse eu podia morrer esmagada contra a rocha que achava que me ia defender.
6.
Vi um homem alto, bonito, robusto. O seu charme estava em ser um moreno de caracóis ligeiramente vesgo.
Após breves minutos de observação e escuta, percebo-lhe uma vida estranha e atrapalhada. E volto a pensar: é tão fácil ir ali parar... àquela zona em que não se tem nada... não se trabalha, erra-se em histórias da vida, em intrigas e delírios... uma vida de burguês mas sem palácios.
Ela: E amanhã? Vamos à sopa!?
Ele: Opah deixa lá amanhã. Amanhã é amanhã — nem sei o que é que vou fazer hoje — quanto mais amanhã.
7.
Era lua cheia, lobisomem, tempestade. Tive medo. Encolhi-me debaixo do robe e refugiei-me nas cores, e elas é que ditaram o rumo das imagens. Não sei quem são. Melhor não saber pois o risco de se tornarem reais é menor.
8.
— Olhares torcidos, cabelos oleosos
— Vemo-los por todo o lado
— Roupas gastas e podres, lábios disformes
— Proliferam
— Seres de narizes duplos
— Monstruosidade banal
— Mas e se o monstro for eu?
— Seres que outrora foram humanos
— Sou um homem doente
— Subterrâneo