r
e
v
e
s
Foma Jaremtschuk é um artista de uma potência imensa e espontânea. Apesar de não ter qualquer formação e de só usar os materiais mais simples, criou um universo pictórico altamente cativante, a partir de condições de vida consternantes; ao mesmo tempo horrífico e de uma terrível beleza. O seu elenco de personagens inclui opulentas enfermeiras e guardas, médicos e assistentes hospitalares deformados, assim como um vasto leque de presidiários e de pacientes grotescos, incluindo criaturas que são híbridos de humanos, animais e máquinas. Interagem num mundo surreal, cujo sentimento faz pensar nos espaços de pesadelo de Franz Kafka. Banheiras tomam a forma de coisas vivas, malévolas, os armários e os fornos parecem sempre conter corpos ou peixe. O equipamento eléctrico funciona autonomamente como um aparelho de mudança de forma. Em quase todos os casos, as suas imagens são pontuadas com fragmentos textuais enraivecidos e acusatórios que se reduzem de maneira característica a uma espécie de resmungar textual indistinto, ou que se desenvolve em pequenas rimas cuja simplicidade encantadora treme com os seus conteúdos profanos. Estes desenhos são o único registo de um tempo e um espaço específicos da URSS, criados por um indivíduo que era supremamente sensível às suas realidades mais profundas. Em muitos desenhos descreve fielmente paredes, vedações, luzes e colunas de som que circunscreviam o campo e garantiam que não houvesse fugas. E se estivéssemos com quaisquer dúvidas sobre aquele em nome do qual estes estabelecimentos penais foram erguidos, a bandeira da União Soviética com o martelo e a foice e o Camarada Estaline aparece amiúde nos edifícios dos campos.
Pouco se sabe sobre Jaremtschuk a partir dos registos oficiais. Não tivesse sido pela sobrevivência de um extraordinário conjunto de desenhos que ele produziu, teria sem dúvida desaparecido na enorme corrente de humanos que vêm ao mundo e que o deixam sem deixar qualquer rasto individual duradouro. No entanto, a sua vida cobriu a maior parte do século XX. Sabemos que nasceu num aldeia remota da Sibéria em 1907, uma década antes da revolução que viria a mudar o Império russo para sempre e cuja nova ordem social acabaria por moldar por completo a sua vida adulta. E a sua morte em 1986, num hospital psiquiátrico para pessoas seriamente doentes ou sem cura, só teve lugar cinco anos antes da dissolução da União Soviética.
De momento, para além de sabermos que só completou três anos numa escola primária rural, os primeiros vinte e nove anos de vida de Jaremtschuk são uma incógnita, apesar do texto rabiscado em muitos dos seus desenhos também deixar entender que de facto a determinado momento aprendeu a ler e a escrever o suficiente. Tanto quanto podemos dizer, nunca teve lições de desenho. Podemos deduzir que Jaremtschuk foi um dissidente do estalinismo, porque em 1936 foi preso e foi objecto de um processo por caluniar a URSS e, tal como inúmeros outros, foi enviado para um campo de trabalho. Ou talvez dissesse por força de hábito o que lhe vinha à mente sem pensar em maiores consequências das suas declarações. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo. Embora os desenhos que conhecemos muitas vezes ataquem directamente a ordem social. Por exemplo, em Canto organizado (Fig.1), um grupo de pessoas reúne-se num campo prisional para cantar canções patrióticas. Alguns usam insígnias soviéticas. São todos grotescos, tornados bestiais pelas circunstâncias e entrega impensada à ideologia que ali os pôs. A sua posterior reacção ao voo inaugural de Yuri Gagarin em direcção ao espaço sideral, em 1961... e os que isso celebravam em seu redor, no desenho Voa como uma pila Gagarin (Fig.2) também é veemente de forma característica. O cosmonauta é retratado como uma amálgama de humano, máquina e peixe. Permanece fixo à pequenina Terra acima da qual se eleva por uma pesada coluna de vértebras, e ao sistema Soviético por dois emaranhados de fios eléctricos. Se a imagem encerra uma qualquer ambiguidade, o texto deixa-nos sem a menor dúvida quanto ao desprezo de Jaremtschuk: Gagarin é «uma pila... uma puta num fato voador», as pessoas estão «na merda para eles próprios cagarem» e «todos se hão-de embebedar como porcos».
A experiência de Jaremtschuk no campo terá sido aterradora. As condições eram duras, as instalações eram inadequadas e estavam habitualmente sobrelotadas. As rações, as roupas e a medicação eram escassas. Em 1938, o procurador sovietico, Andrei Vishinsky observou por escrito que, «Por entre os prisioneiros havia uns de tal modo maltrapilhos e piolhentos que constituíam um perigo sanitário para os restantes. Estes prisioneiros deterioraram-se a ponto de perderem qualquer semelhança com seres humanos. Por falta de comida... recolhem lixo [refugo] e, segundo certos prisioneiros, comem ratos e cães»[1]. Pessoas como estas aparecem vezes sem conta nos desenhos de Jaremtschuk. A princípio podem parecer fantasias perturbadas, mas deveriam, talvez, ser melhor entendidas como caricaturas de vida observada.
A enfermeira gorda em A mulher sentiu o estado da força (Fig.3) está literalmente coberto com enormes carraças que parecem alimentar-se do poder impressionante que parece ter ganho por ser membro do Partido Comunista (entre outras coisas podemos ler o seguinte no texto, «a mulher sentiu o sabor da força poderosa força comunista podes comer toucinho e mijar em toda a gente»). De forma semelhante, há uma horrível pungência no «anjo» que toca balalaica no Não podes afogar uma rima má na merda, ela vem à tona (Fig.4). O músico está sentado num banco baixo, em frente a um lavatório, com cuecas à volta das ancas, fazendo uma serenada a um homem acocorado que defeca no chão, enquanto que uma corpulenta guarda feminina de pá em riste ladra ordens.
Sob vários aspectos, desenhos como estes têm afinidades com o trabalho de artistas como George Grosz, Otto Dix e, até certo ponto, Max Beckmann. Dix e Grosz, em particular, foram quase contemporâneos de Jaremtschuk, e na sua arte ambos eram duros críticos da sua cultura e tempos. Contrariamente a Jaremtschuk (que mais não teria do que sete anos de idade quando ela teve início), Dix e Grosz tiveram a experiência da Primeira Guerra como soldados, e Beckmann como assistente hospitalar. É provável que a forças das suas visões e as formas da sua crítica visual resultassem pelo menos em parte da experiência traumática da guerra e dos levantamentos sociais sangrentos e das privações que imediatamente seguiram o seu desfecho na sua Alemanha natal. Não vale a pena querermos saber se Jaremtschuk conhecia os trabalhos deles (ou, já agora, de qualquer outro artista profissional com o qual podemos estabelecer comparações úteis). No entanto, não seria absurdo estabelecer uma analogia entre a experiência de Jaremtschuk no campo de trabalho e as outras experiências traumáticas dos três artistas alemães duas décadas mais cedo. A Operation de Beckmann de 1914 mostra a actividade de um hospital de campanha num estilo severo, enquanto que Grenade, de 1915, é um tumulto dinâmico de vida e morte humanas orquestrado em torno de uma explosão esférica, fracturada de gás venenoso que escarnece o sol que dá vida que era comum nas imagética Expressionista anterior à guerra. A série de águas-fortes Guerra iniciada em 1924 é uma poderosa declaração anti-guerra, niilista, decorrente de esquiços feitos enquanto servia como artilheiro na linha da frente. Apesar de se encontrar claramente na tradição dos Desastres de Guerra de Goya (1810-20), os trabalhos de Dix pertencem mais que a tudo ao horror mecanizado do século vinte. Tal como Jaremtschuk, Dix é implacável na sua crítica visual e altamente atento aos detalhes. O seu Visto na ladeira íngreme de Clery-sur-Somme situa dois cadáveres estraçalhados numa grotesca «conversa» silenciosa entre ambos. Na morte lembram surpreendentemente algumas das figuras fétidas e em desintegração de trabalhos como os da Homem a vomitar com a cabeça em ligaduras (Fig.5), Assassino na porta de entrada e Experimento. A grande diferença está no facto das figuras de Jaremtschuk ainda estarem de uma forma ou de outra vivas e, para além disso, operacionais.
A dura veracidade de Dix e Beckmann é transposta para uma crítica da humanidade mais estilizada e «sobreabundante» nos primeiros desenhos do período da maturidade de Grosz, o que tanto deve ao grafitti de rua e ao rabisco de lavabos quanto ao Futurismo e ao Expressionismo. No entanto, no seu sentimento para com a humanidade – uma espécie de efusão simultânea de desespero e de misantropia com uma real compaixão e uma sede de vida – parece-me a mim mais perto do sentimento presente em Jaremtschuk. Há muito em especial um humor na arte de Grosz e Jaremtschuk que existe em fraca quantidade na de Dix. O humor de Jaremtschuk – embora às vezes sardónico ou até diabólico – e o seu uso da linguagem dos mercados ou das ruas ao serviço da arte conduz-me a um dos seus quase contemporâneos, o filósofo e teórico da literatura Mickhail Bakhtin (1895-1975). Os seus escritos, e em particular o seu pensamento em torno da noção de «carnavalesco», pode ser empregue de forma útil para nos ajudar a entender melhor as palavras invocadas na arte de Jaremtschuk.
Em Rabelais and his work, terminado nos anos trinta no pico das purgas estalinistas, mas publicado pela primeira vez em 1965, Bakhtin desenvolve a teoria da «escrita carnavalizada» que retoma o «espírito do carnaval para si própria e... reproduz, no interior das suas próprias estruturas e pela sua própria prática, as inversões paródicas e os destronares próprios ao carnaval»[2]. Batkhin situa o riso no coração da sua análise, ou mais especificamente, «a profunda originalidade expressa pela cultura do humor popular». Segundo Bakhtin, na Idade Média e no Renascimento na Europa, «Um mundo ilimitado de formas e manifestações fazia frente ao tom sério da cultura eclesiástica e feudal»[3]. O carnaval é uma invenção social – o «Mundo Virado do Avesso», por assim dizer. Como afirma Andrew Robinson: «Um carnaval é um momento em que tudo (excepto possivelmente a violência) é permitido. Ocorre na fronteira entre a arte e a vida, e é uma espécie de vida enformada segundo um modelo de brincadeira. Está habitualmente marcada por demonstrações de excesso e de grotesco»[4]. Para além disso, diz Bakhtin, «o Carnaval não reconhece qualquer distinção entre actores e espectadores. […] O Carnaval não é um espectáculo visto pelas pessoas, elas vivem nele. […] Enquanto o Carnaval dura, não há qualquer vida para além dele»[5]. De muitas maneiras, o aprisionamento de Jaremtschuk, e em especial a sua reacção artística a ele, dá-lhe um lugar muito central nos reinos do carnavalesco. O mundo que cria é ao mesmo tempo credível e no entanto desesperadamente grotesco e extremo bem para lá de quase todos os limites da vida humana, da decência e da ética. No entanto há aqui leis absurdas, mesmo assim, e aparentemente um sistema de códigos morais que só pertencem ao universo construído do artista. Ou talvez, de forma mais arrepiante, as referências o sejam à experiência real, vivida, que Jaremstschuk teve do campo de trabalho e do hospital.
Na crítica de Bakhtin, o carnavalesco é articulado por uma noção de «realismo grotesco» centrada no corpo, e que ele contrapõe ao corpo clássico. Considera o corpo na arte clássica como estando «acabado, completo» e «purificado, por assim dizer, de todas as escórias do nascimento e do desenvolvimento»[6]. Enquanto que «o corpo grotesco de Rabelais e do tipo de arte que ele representa aparece como inacabado, como uma coisa feita de brotos e rebentos, com os orifícios evidenciados, através dos quais chupa e expele o mundo», diz Simon Dentith, «é um corpo marcado pela sua origem e destino materiais»[7]. Tal como diz o próprio Bakhtin, o corpo grotesco «reflecte um fenómeno em transformação, como uma metamorfose ainda inacabada, da morte e do nascimento, do crescimento e do devir»[8].
No trabalho de Jaremtschuk os corpos encontram-se continuamente em processo de degradação. A forma corpórea fechada na qual os indivíduos estão normalmente encerrados e cujos limites os separam de uma participação directa no mundo dos outros corpos está constantemente ameaçada. Os orifícios do corpo são comummente realçados, de uma eterna procissão de bocas abrindo-se em gritos silenciosos (Mãe e filho morto), grunhindo (Avarice), ou vomitando violentamente (Homem vomitando com a cabeça ligada), a inúmeros ânus defecando (Latrina). Muitas vezes, corpos estão escancarados com grandes feridas, como em (Parasita) ou perfurados com feridas em forma de vulva, Dando palmadinhas nos ombros (Fig.6).
Os interiores do corpo são frequentemente expostos, de dentro para fora e misturam-se com o mundo que se encontra fora deles: como em Moscas vieram pousar na merda (Fig.7). No entanto, estas criaturas mutiladas continuam a viver de uma forma qualquer. Às vezes a depravação desta mistura atinge profundidades sadeanas, com os corpos que representam poder e terror a não serem capazes de ficar aquém de uma violência indizível e de não começar a devorar as suas vítimas (Jogada ofensiva, Fig.8).
Tudo isto corresponde à descrição que Bakhtin faz do realismo grotesco:
«O corpo grotesco... corpo engole o mundo e é ele próprio engolido pelo mundo... É por isso que o papel essencial cabe às partes do corpo grotesco nas quais ele não cabe mais em si próprio, transgredindo o seu próprio corpo, no qual concebe um novo, segundo corpo: os intestinos e o falo... Junto dos intestinos e dos órgãos genitais encontra-se a boca, pela qual entra o mundo por engolir. E junto dela o ânus. Todas estas convexidades e orifícios têm uma característica comum; é dentro delas que os limites entre os corpos e entre o corpo e o mundo são ultrapassados: há um intercâmbio e uma inter-orientação»[9].
Precisamos, no entanto, de atentar à condição temporária do Carnaval – é o mundo às avessas só por um tempo breve e é, para além disso, definido pela representação; pelo jogo. Comparem isto ao estado permanente da cultura da experiência quotidiana de Jaremtschuk. Para além do mais, como assinala Dentith, «as inversões de carnaval... não apontavam manifestamente para que se afrouxasse o sentido que as gentes tinham da rectidão das regras que mantinham o mundo de pé, mas pelo contrário, para que se reforçassem»[10]. O «jogo» que caracteriza o carnavalesco é para Jaremtschuk um assunto muitíssimo sério. Se evoca e encena o espírito do carnaval no seu trabalho, também devemos reconhecer que se trata da expressão de uma realidade viva, contínua, na qual ele se encontra preso. O pensamento de Bakhtin sobre a estética é interessante em parte por ele estar interessado na primazia do processo criativo, e não no objecto. «A suposição de fundo subjacente ao trabalho de Bakhtin», diz Deborah Haynes, «é que o estado natural do mundo é a confusão. A ordem não é dada, é postulada; quer dizer, é estabelecida como uma tarefa a ser acompanhada pelo trabalho e especialmente através de actividades criativas»[11]. No caso de Jaremtschuk, somos presenteados com uma estranha mutação disto; a sua vida de 1936 em diante terá sido definida por uma ordem estrita e imposta que era, presumivelmente, indesejada, e que se impôs no dia-a-dia da comunidade internada, até um regresso à «confusão» que também era indesejada. Como artista parece estar sempre implicado neste enigma: como reparar e dar sentido à sua própria existência contínua face a uma realidade vivida duplamente intolerável. Ao fazê-lo, Jaremtschuk mantém de forma notável uma necessária «exterioridade», como diz Bakhtin, relativamente aos temas dos seus desenhos; «agem», mas ele, como «autor» é a categoria do agir que leva as suas personagens a fazer como fazem. Dito de outra forma, em cada um dos seus trabalhos a «consciência de Jaremtschuk é a consciência da consciência criada»[12].
Apesar dos horrores que descreve nos seus desenhos, e mesmo à medida que se eles se tornam de natureza manifestamente mais fantástica e alucinatória, por exemplo, em Moscas vieram pousar na merda (Fig.7), em E toda a gente temeu e caiu de alegria (Fig.9) ou em Resmungam com bocas desdentadas (Fig.10), a sua própria existência como objectos contidos, selados e distintos nos quais o artista não era um participante central garantiu graciosamente a integridade e a continuação da sua pessoalidade única na sua condição não finalizada. Bakthin diz que o nosso próprio corpo externo é sempre um corpo mediatizado, já que só podemos conhecê-lo através de estados interiores, só o corpo do outro é que pode ser completamente abrangido. Assim, diz ele, «só eu – o único eu – posso ocupar num dado conjunto de circunstâncias este lugar específico neste momento particular; todos os outros seres humanos estão situados fora de mim. […] Estou localizado na fronteira… do mundo que eu vejo»[13]. Ao criar obras de arte, Jaremtschuk controla e fixa o mundo percepcionado pela exteriorização dos seus sentimentos acerca dele (e de si mesmo) de forma incorporada. A vida acabada e já vivida é-nos desconhecida: «O meu nascimento, o meu habitar axiológico no mundo e, finalmente, a minha morte são eventos que nem ocorrem em mim nem para mim»[14]. E neste sentido, como diz Haynes, «a experiência é infinita; não pára e eu não posso parar de estar activo nela. Por outras palavras, nunca pode haver uma memoria completa da minha própria vida para mim, por está a decorrer. A minha própria unidade nunca é experienciada como sendo completa; é sempre ainda-por-ser»[15]. Para mim, estando agora a escrever e para Jaremtschuk fazando arte enquanto sujeito vivo, incorporado, haverá sempre um futuro. Cada desenho, no entanto, é uma coisa consumada; disponível para o espectador como lembrança, como reencenação imaginativa na sua totalidade, e para o artista como confirmação da realidade da sua própria existência contínua.
Apesar de ser verdade que muitas pessoas acabaram por sair dos campos de trabalho de Estaline, muitas outras pereceram durante o internamento. No caso de Jaremtschuk, ter passado pela detenção por mais de uma década, que incluiu um período de privações mais profundas causadas pela Segunda Guerra Mundial, a libertação do campo em 1947 só chegou com a sua transferência para uma psikhushka (hospital psiquiátrico), no qual permaneceu até 1963. Foi durante os anos que passou neste hospital que ele produziu o conjunto único de poderosa arte que aqui nos ocupa, e que parece falar tanto à sua experiência contemporânea do hospital como à sua memoria do campo de trabalho. A arte produzida em tais condições, em que as relações de poder tanto pesam contra o indivíduo criador, é sempre precária, e este trabalho só sobreviveu graças à preservação levada a cabo pelo seu médico. Em 1963 foi transferido para outro hospital. Apesar de ser possível que tenha continuado a produzir, não apareceram nenhuns desenhos deste período. Em 1974, as condições de saúde de Jaremtschuk deterioraram-se ainda mais e foi transferido para um hospital para pacientes gravemente doentes e violentos, onde morreu em 1986.
É impossível dizer quando é que Jaremtschuk chegou à psicose, mas é claro que quando fez estes desenhos tinha transitado para aquilo a que o psiquiatra R.D. Laing chamava «uma maneira psicótica de estar-no-mundo»[16]. É provável que o trauma da vida nos campos, incluindo experiências desumanizantes que terá vivido com frequência, tanto quanto terá testemunhado muito pior, emparelhado com um sistema autoritário que pretendia ver o interior das próprias almas dos seus sujeitos, tenha levado a um sentido de vulnerabilidade pronunciado do seu ser psicológico tanto como do seu ser espiritual. É interessante que indivíduos que foram reduzidos a criaturas com o aspecto de cães apareçam por todo o seu trabalho, frequentemente agachados debaixo de mesas ou à margem de cenas, olhando vorazmente para pedaços de comida, como em Canta para jantares (Fig.11) e Cães Soviéticos. De forma semelhante, personagens encontram-se frequentemente abertos como ilustrações médicas, de maneira a que os espectadores (as autoridades, o sistema, toda a gente) possa ver tudo o que se está a passar no interior normalmente privado do corpo, tanto no que é físico como nos pensamentos. Assim, em Um pássaro estava acenando a mão na manhã lá fora (Fig.12), um pássaro defecando insere o seu bico com aspecto de dedo no pescoço de uma figura sentada, ao longo da qual se podem ver comprimidos a rolar. Pelo caminho passam por uma criatura minúscula, desgraçada, no estômago da figura, onde sofrem uma transformação em fezes que caem no penico no qual a figura está sentada. Pode ler-se no texto, em parte: «Enfiava um copo de vodka pela goela de tal modo que fosse até às tripas e só saísse de manhã... está a doer o estômago que diz que é tudo por causa dos comprimidos e da pipeta suja».
Uma tal «insegurança ontológica» pode tornar o sujeito «mais irreal do que real; precariamente diferenciado do resto do mundo de tal forma que a sua identidade e autonomia estão sempre em questão»[17]. Pode ser apropriado pensar na psicose de Jaremtschuk em termos daquilo a que Laing chama «engolimento». Em tais casos o sujeito está incerto da «estabilidade da sua autonomia», de modo que «toda a relação ameaça o indivíduo em perda de identidade»[18]. A resposta de Jaremstschuk a tais ameaças à sua própria ipseidade consistia em desviar-se delas confrontando e parodiando em obras de arte as personagens de outros que nele suscitavam medo e ódio. A um certo nível isto pode ser lido como um des-coroamento carnavalesco de figuras de autoridade, enquanto que a outro, tal como Burkitt e Sullivan apontam, a parodia «só é usada de forma oblíqua contra a figura da autoridade e aparece como uma tentativa desesperada para exprimir sentimentos de ódio e desespero sem nunca conseguirem dialogar com a figura de autoridade»[19]. Isto talvez seja claro se compararmos qualquer um dos desenho de Jaremtschuk com um relato das condições no campo de Bamlag feito pelo seu procurador-geral:
«Na enfermaria, há prisioneiros nus em longos beliches, literalmente amontoados como sardinhas num barril. Não são levados à casa de banho durante semanas devido à falta de roupa interior ou de lençóis. Nalguns quartos, as mulheres estão nos beliches no mesmo espaço que os homens. Um paciente de sífilis está deitado lado a lado com um paciente tuberculoso. Num quarto comum, há pacientes com erisipela (infecciosa) atafulhados com doentes do estômago.
Os que chegam não têm roupa interior, só têm trapos. O que é terrível é que não há uma única muda de roupa interior, de botas, ou de roupa no Bamlag. Os seus corpos estão cobertos de cicatrizes, mas não tomam um banho, porque não lhe é dada roupa interior. Os seus farrapos estão cheios de centenas de piolhos. Não há sabonete. Muitos não têm nada para vestir para ir até à casa de banho»[20].
Este relato reflecte de muitas maneiras o conteúdo dos desenhos de Jaremtschuk. No entanto também é um tanto frio quanto ao tom e aos factos reais. Os desenhos, no entanto, apresentam um sobre-abundância de informação visual que ameaça cair (de facto, às vezes cai) na fantasia, de tal modo que enquanto a sua força expressiva e estética é vívida, a sua credibilidade como simples reportagem é enfraquecida. Neste sentido, qualquer que tenha podido ser o intuito deliberado do artista a seu respeito, em última análise, os seus desenhos não tiveram qualquer resultado prático benéfico para a sua pessoa física. Enquanto objectos que existiam na sua vida estavam contra ele; quer dizer, estas paródias carnavalescas só provaram a sua «insanidade» às mesmas figuras de autoridade que eram, em parte, os temas dos seus trabalhos. Enquanto arte, no entanto, estes desenhos ainda podem vir a ser largamente aclamados por espectadores a uma escala internacional. O trabalho dos desenhos no nosso presente (isto é, o futuro do seu criador) pertence-lhes, e é só a memória da pessoa agora consumada, Jaremtschuk, que eles servem.
Seria remisso debater a arte de Foma Jaremtschuk e não pensar nela no contexto do surrealismo, o movimento cultural que, no final de contas, mais fez para validar e encorajar uma implicação séria com a arte feita a partir da psicose (apesar de, na sua forma parisiense, pelo menos, também ter estado, ironicamente, enamorado por Estaline, durante algum tempo). Principal líder do movimento e comentador, André Breton evocou admirativamente a «loucura» no primeiro Manifesto do Surrealismo (1924) e noutros textos, e em 1965 considerou o artista, escritor, músico e paciente psiquiátrico por muitos anos, Adolf Wölfi (1864-1930) como um dos sete indivíduos (que também incluíam Picasso e Heraclito) que inspiravam a Décima-primeira Exposição do Surrealismo em Paris[21]. É impossível não imaginar que Breton, tendo sabido acerca de Jaremtschuk e do seu trabalho, tivesse visto enorme valor nele, tanto em termos estéticos como do seu conteúdo «surreal».
Breton estava convencido que a criatividade autêntica se encontra em regiões do nosso inconsciente: «A estas profundezas incomensuráveis reina a ausência de contradição,... uma falta de sentido do tempo, e a substituição da realidade externa pela realidade psíquica»[22]. Estas profundezas só podiam ser atingidas, disse ele, libertando-nos de certa forma das regulações utilitárias da «realidade» através de um «longo, imenso, e argumentado desregramento dos sentidos»[23]. Tal como Sigmund Freud, acreditava que os sonhos permitiam entrar nestas outras regiões, mas que um relatório feito, por assim dizer, desde a realidade do sonho ficava inevitavelmente sob a alçada da interpretação consciente pelo indivíduo acordado. «Se as profundezas da nossa mente contêm em si estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou de empreender uma batalha vitoriosa contra elas», afirmou ele, «há todas as razões para as explorar»[24], e acreditava que a «loucura» fornecia a única chave «autêntica» para atingir a libertação psicológica necessária a ocupar centralmente estas profundezas:
Não tenho qualquer hesitação em avançar a ideia, que só é paradoxal à primeira vista, segundo a qual a arte daqueles que são classificados como mentalmente doentes constitui um reservatório de saúde mental. Isto resulta precisamente não ser de todo afectada por todas aquelas considerações que tendem a falsificar a prova que nós, os outros, estamos preparando, considerações tais como influências externas, cálculos conscientes, sucessos ou desapontamentos encontrados a nível social, etc.[25]
Neste sentido podemos ver Jaremtschuk como alguém que era capaz, em virtude da sua condição psicológica, de penetrar a realidade mundana (tão horrenda e fantástica como pode ter sido em qualquer dos casos na vida dos campos de trabalho e psikhushki) e reportar de volta, através dos seus trabalhos artísticos, toda a extensão da realidade psíquica que aguentou. As suas figuras alucinatórias e criaturas híbridas são sempre postas em situações narrativas que têm uma credibilidade mundana no seu âmago: cozinhar, cantar, trabalhar, defecar, tratar e experienciar. No entanto não se assemelha a nada a que nós possamos comparar à nossa experiência quotidiana ao olhar para o trabalho dele. Metáforas são tornadas reais: Há um feto na minha caveira que substituiu o meu cérebro, que o doutor-pássaro com bico de fórceps me há-de arrancar (Dando à luz pensamentos), ou As suas faces fundiram-se numa só e o seu estômago é uma vulva boquiaberta e dentada (Fig.13) e Não voltei a ver ninguém. Os insanos são, diz Breton, «vítimas da sua imaginação, por ela os induzir a não prestar atenção a certas regras... que é suposto todos sabermos e respeitarmos»[26]. O resultado, no entanto, na arte de Jaremtschuk, talvez nos aproxime de uma resolução visual dos estados contraditórios de consciência e inconsciência que, no dizer de Breton, constituem uma «realidade absoluta», ou tal como nós diríamos, uma «surrealidade»[27].
A normalização das condições de vida aterrorizadoras dos campos de trabalho e dos psikhushki que acompanhavam a exposição quotidiana levou Jaremtschuk a uma espécie de descrição estética factual que é no entanto chocante para aqueles que não passaram por ela; que não ocuparam centralmente esta vida. Como aponta o surrealista renegado Georges Bataille: «o que nos perde é a ideia demasiado simples que nós temos da crueldade. Em geral chamamos crueldade àquilo que suportamos facilmente, que nos é habitual, não parece cruel. Assim, aquilo a que chamamos crueldade é sempre de outros, e ao não sermos capazes de evitar a crueldade negamo-la assim que é nossa»[28]. Frequentar os desenhos de Jaremtschuk é, num certo sentido, como ser testemunha de uma destruição ritualizada do si mesmo – da personalidade de um outro – de dentro para fora, por assim dizer, mesmo ficando ligados aos corpos e às estruturas sociais que nos fazem inteiros.
Assim, mais uma vez, porque é que estes desenhos são tão cativantes? Bataille pode argumentar que se dirigem a uma pulsão inata a todos nós de saber desde dentro a condição de não-ser. Desta forma o seu efeito é análogo aos seus argumentos sobre a função da tortura:
«Aquilo pelo qual temos estado à espera durante toda a nossa vida é a desordenação da ordem que nos sufoca. Alguns objectos deveriam ser destruídos nesta desordenação… Não podemos ser nós próprios (o sujeito) a levantar directamente o obstáculo que nos «separa». Mas podemos, se levantarmos o obstáculo que impede o objecto (a vítima do sacrifício) de participar nesta negação de toda a separação. O que nos atrai neste objecto destruído (no exacto momento da destruição) é o seu poder de interrogar – e de minar – a solidez do sujeito»[29].
Numa imagem como Terrível abraço (Fig.14) somos testemunhas da fragmentação literal e da destruição inevitável da personagem central. O seu sacrifício não está, incidentalmente, na origem de um qualquer rito religioso, mas no altar tão somente moderno da ciência. No entanto, diz Bataille, só a «prisão da morte» é prometida por sacrifício, «porque a destruição do sujeito não tem outro sentido que não seja a ameaça que representa para o sujeito. Se o sujeito não for inteiramente destruído, tudo se mantém ambíguo. E se for destruído a ambiguidade é resolvida, mas só num nada que abole tudo»[30]. Nos desenhos de Jaremtschuk os estados corporais fragmentários da cientista/torcionária semi-humana e assistente de género indeterminado, conjuntamente com as tarefas obstinadas, intrusivas nas quais se empenham, dá precisamente ênfase à ambiguidade que existe entre as suas existências contínuas e a ameaça da não-vida. E a encenação dos seus papéis na imagem aponta fortemente para o estado existencial plausível do sujeito ser o exacto e liminar momento da sua morte. As linhas espessas, pontiagudas que são projectadas pelos olhos e a boca da mulher para a maquinaria científica parecem ser som e vista tornados tangíveis, confirmando a significação do momento. E isso, em geral, defende Bataille, é a fonte do poder da arte: «é deste duplo vínculo que emerge o exacto sentido da arte – porque a arte, que nos põe no caminho da destruição completa e aí nos suspende por um tempo, oferece-nos estupro sem morte»[31]. É isto que Bataille quer dizer quando afirma que «quando o horror é sujeito à transformação de uma arte autêntica, torna-se um prazer, um prazer intenso, mas mesmo assim um prazer»[32].
Este conjunto de trabalhos singularmente importante podia ter-se perdido com muita facilidade. O seu criador não era um artista profissional. De facto, Foma Jaremtschuk não sabia nada acerca dos mundos, movimentos ou carreiras artísticas. Mas, como qualquer outro artista digno do nome, foi levado a produzir por uma compulsão, mais do que por pura escolha. As circunstâncias nas quais produziu a sua arte não o levaram nem a seguir uma vocação artística nem a uma recepção vasta e apreciativa. Se foi dado valor ao seu trabalho, então foi provavelmente mais para uso interpretativo por médicos, que viam a imagem e o texto como sintomáticos da doença do artista, e não como objecto estético. É provavelmente esta a razão de fundo pela qual os seus desenhos foram preservados naquela altura. Sobreviveram. E por tempo o suficiente para serem reconhecidos como arte. Por todas estas razões, os desenhos de Jaremtschuk também podem ser vistos como parte do campo da Arte Bruta, ou daquilo que passou a ser conhecido em inglês como Outsider Art.[33]
É demasiado fácil imaginar um mundo dividido entre artistas profissionais formados e amadores. Contrariamente aos primeiros, os amadores são curiosos; podem tirar grande satisfação da criação artística, mas têm outra vida que é aquela que ocupa a sua existência rotineira e os define. Jaremtschuk não cabia em nenhuma destas definições. Apesar de não fazer parte de nenhuma estrutura artística profissional ou amadora, a necessidade de representar o seu mundo em imagem e texto ocupou o centro do seu ser. Posto de lado, por assim dizer, ele representa a história da Arte Bruta, que é arte de grande valor estético e está carregada de conteúdo e fala forçosamente ao tema que lhe serve de matéria. Fala numa língua intuitiva que é acessível a todos, mas só quando abordada com um espírito de abertura e sem preconceitos. O artista pós-surrealista francês Jean Dubuffet, que inventou o termo em meados de 40, chegou ao ponto de defender, de forma polémica, que a Arte Bruta era a única arte realmente autêntica do seu tempo. «A verdadeira arte aparece sempre que não estamos à espera dela», afirmou, «quando ninguém pensa nela nem clama o seu nome». É arte produzida por «pessoas a salvo da cultura artística»[34] que «conseguiram libertar-se da magnetização cultural» e redescobriram «uma engenho fecundo»[35]. Há uma enorme riqueza artística que vem de sítios «improváveis». Muita dela emerge de experiência traumática, como Daniel Wojcik mostrou[36]. O projecto de Jaremtschuk viu-o ultrapassar uma existência intolerável ao mergulhar nela de cabeça através da produção artística.
–
Imagens: todas as imagens são de Foma Jaremtschuk, tinta sobre papel achado. As datas precisas são desconhecidas, mas o portfólio foi produzido num momento qualquer entre 1947 e 1963. Os títulos das obras não lhes foram dados pelo artista. Os títulos são todos meus. Onde foi possível tirei o título do texto escrito na folha de desenho. As imagens são cortesia da Gallery Henry Boxer, em Londres.
Curadoria de Katherine Sirois
Tradução do inglês por Nuno Miguel Proença
Footnotes