Uma conversa
[ Eu deparei-me pela primeira vez com as atividades do Wim Cuyvers quando a Sophie Nys me falou sobre este mesmo lugar, o Le Montavoix, nas proximidades de Saint-Claude no Jura francês. Subsequentemente, ao consultar o seu blogue senti imediatamente compaixão e simultaneamente questionei-me acerca deste homem: um arquiteto homenageado com prémios e condecorações que desistiu de exercer arquitetura e das suas investigações anteriores por espaços públicos em diferentes áreas urbanas, por uma vida na floresta…––Então, quem é este espeleólogo e guarda-florestal que ainda considera o espaço como sendo uma forma de comunicação preferível?
Existem muitas controvérsias sobre ele e o seu trabalho, mas será ele quem as provoca? Questões centrais muitas vezes tornam-se problemáticas. Além disso, ele não gosta de fazer distinção entre arquitetura, texto e arte––o mais significativo para todos é pensar, existencial não funcional...–––Então o que é ser um (estar num) «espaço existencial», um espaço que é estimulante, que alimenta uma certa confrontação e concentração? Parece ser adequado apenas o espaço de exclusão tentado por definições negativas: não privatizado, não comercial, não absorto, não controlado...
Esta conversa tenta abordar novamente algumas questões––re-questionar e responder pode ser tão esclarecedor––centradas em torno de Le Montavoix––a montanha com a voz(es) que é um refuge de passage gardé, um abrigo para pessoas a pé, recentemente mudado por ele para Le Montavoies (a montanha com os caminhos), para denotar toda a terra lá em cima, o inteiramente «não-projeto»––ou, como o simpático Amin Maalouf em Le Rocher de Tanios disse:
Ma Montagne est ainsi. Attachement au sol et aspiration au départ. Lieu de refuge, lieu de passage.
Terre du lait et du miel et du sang. Ni paradis ni enfer. Purgatoire.*** (A minha Montanha é assim. Fixação ao solo e aspiração na partida. Terra do leite e do mel e do sangue. Nem paraíso nem inferno. Purgatório.)
–––Uau ! ]
––Wim, és um arquiteto... talvez nós (rindo/ambos a rir) ––talvez devamos começar com uma pergunta sobre o teu projeto em si e isso dá-te também a oportunidade de dizer que na verdade não és um arquiteto...
––(ainda a rir) Não sou eu que vou dizer que não sou um arquiteto...
––Então, por favor––, e não volto a estipular mais nada...
––Eu tenho um diploma em arquitetura, e trabalho há já algum tempo... Em 2009, desisti da minha afiliação com a Ordre des Architectes e fechei o meu escritório, por isso, já não posso passar nenhuma espécie de fatura como arquiteto. E fiz isso para começar a trabalhar no Le Montavoix. Não obstante, considero que serei sempre um arquiteto, e considero que o trabalho que faço é arquitetura e, para mim, não importa que já não tenha um escritório ou o software que os arquitetos compram. Desde 2009, tentei aprender o que naturalmente me é muito difícil fazer que é dizer não... não, não––não às pessoas que me pediram algum projeto arquitetónico - e isto só para poder trabalhar no Le Montavoix...
––Então, é esse o teu verdadeiro projeto: O Le Montavoix––o projeto de um refúgio––, não é?
––Sim, a construção do refúgio que historicamente é chamado «Le Montavoix»: a montanha com uma voz––mas não lhe chamo um projeto. ––Portanto sempre que alguém me pergunta como está a correr o projeto, teimo em responder que não tenho um projeto. Mas se insistem em dar um nome ao que faço lá nas montanhas, frequentemente respondo que é como o amor, e que como o amor não é suposto durar apenas os próximos 3...6 meses––não, não é apenas por «algum» tempo––e claro, nem sempre funciona assim––, mas se nos apaixonamos não pensamos num fim, pensamos que––tal como a nossa vida––dura para sempre... Naturalmente que não penso que o LeM. irá durar para sempre, mas sei que irá durar enquanto fisicamente eu o for capaz de fazer... Desta maneira, nesta comparação com o amor funciona como o amor, mas ao mesmo tempo apercebi-me de que eu dizia como o amor, o que significa que não é amor e, por isso, procurava uma palavra diferente. E o melhor que encontrei para explicar o que estava a acontecer foi práxis––uma combinação de prática e teoria, uma prática que é definida ou impelida ou direcionada pela reflexão––o que chamamos pensar, e o pensar é impulsionado pela ação, pela ação física––por isso, chamo-o práxis.
––Uma práxis em aberto...
––Uma práxis de contínuo fracasso glorioso (risos) ou pelo menos livre de qualquer propósito––mais uma vez dá para ver porque não posso usar a palavra «projeto» para o LeM.: os projetos têm propósitos, e no LeM. não existe nenhum propósito para nós o estarmos a fazer––continuo a dizer «nós» porque muitas pessoas estão a ajudar, e todos são bem vindos para ajudar no refúgio, para ajudar o refúgio a existir––por isso, é-me impossível dizer que sou «eu» que o estou a fazer...
––Apesar de teres dito que o LeM. não tem fim, parece ser pelo menos autotélico––e, apesar da sua alegada falta de propósito, chama-lo de «refuge» [refúgio]––no qual também se pensa em «refugee» [refugiado]...
––Sim, desde o início que existia a ideia de refúgio––como refuge (échappatoire), refuges de montagne (ou cabanes) expressões francesas que conheço há muito tempo e que muitos outros conhecem como cabanas de montanha, abrigos ou pousadas onde se pode passar a noite...
––Sim, estas cabanas que são normalmente acessíveis apenas a pé e destinadas a fornecer abrigo e possivelmente comida para montanhistas, alpinistas e caminhantes...
––E na lei francesa elas são muito bem definidas como sendo o único edifício público que não tem de ser acessível para a patrulha de incêndio, enquanto um edifício público, ao contrário de uma casa particular ou uma arrendada, é categorizado como um edifício que recebe o público; onde o público pode entrar e permanecer, e à qual a patrulha de incêndio tem obrigatoriamente de ter acesso.
––Será esta uma provisão de refúgio muito francesa?
––É especialmente na França, sim, mas embora não tenha feito nenhuma pesquisa, presumo que seja muito semelhante a outras cabanas alpinas, como com um rifugio di montagna italiano ou em alemão, muitas vezes dizem hütte…––
––Sim, Berghütte, Schutzhütte…
––Desde o início eu estava ciente de outros significados de refuge(e) e é interessante que «refuge(e)» atualmente refere-se em especial a outra coisa...
––E parece que gostas de brincar com um aspeto muito especial da palavra francesa refuge...
––Sim, gosto da ideia de que «refuge» , i.e. por definição como «não necessariamente acessível por veículos de patrulha de incêndio», possa insinuar que não é necessariamente acessível por qualquer outra força de policiamento...
––O que parece ser bastante verdade no LeM.––
––…e como na minha prévia tentativa de definição de espaço público que só pode ser o espaço existencial que eu pretendia, quanto menos controlado mais público é––e ao mesmo tempo gostei que permita uma conotação e uma relação acentuadas com «refugee», que é uma pessoa que está à procura de abrigo ou de uma escapatória para qualquer coisa…––e ao mesmo tempo, desde o princípio que faço a ligação à palavra «forestieri» porque quando falamos de um «refuge» como uma cabana, normalmente falamos de algo localizado nas montanhas a grande altitude e com uma certa dificuldade de acesso, mas o LeM. não é propriamente assim, está relativamente baixo a 700m, por isso, alguém pode pensar que estava a brincar mas de acordo com a lei podemos chamar refúgio a algo que se encontra ao nível do mar desde que cumpra outras condições preceituadas…
––Como as relacionadas com as patrulhas de incêncio i.a. …
––Sim, ou que––ao contrário dos outros edifícios públicos––a porta tem de permanecer sempre aberta, e tem de abrir para dentro... Uma porta que abre para fora pode ficar bloqueada pela neve que caiu durante a noite.
––Claro, e ao cair de tais quantidades é que se precisa de refúgio...
––Sim, e também existe a velha ideia de que numa casa a porta abre para dentro, como que uma porta convidativa, e não uma porta que tenta manter-nos afastados...
––Vamos voltar à palavra acima mencionada «forestieri» que é, entre outras, usada por Giorgio Agamben nos seus textos originais em italiano, onde––como «provinciali, montanari»––designa o contraste entre cidadãos («cittadini e forestieri, civilizzati e barbari» )––então, qual é a tua ligação com esta palavra que significa «marginali, miserabili e nihil habentes»?
––Sim, fiz uma ligação entre mim e a minha provação no LeM. com a palavra guarda-florestal (forester), porque como parei de trabalhar como arquiteto tive de encontrar uma nova profissão––e os franceses são tão administrativos em relação ao que somos, existe uma grande necessidade de classificar––por isso, escolhi «guarda-florestal»––e, como referiste, na língua italiana «forestieri», e no francês, também designa alguém que é um estranho, alguém próximo de «refugiado»––e também está ligado a alguém que não sabe seguir um caminho, que apenas corre inutilmente na floresta ...
––É aqui que o projeto Homo Sacer de Agamben aparece em cena:«Patronus si clienti fraudem fecerit, sacer esto. duodecim tabulae» (8.21), referindo-se assim a um criminoso que é declarado como desprotegido pela lei e pode, consequentemente, ser morto por qualquer pessoa com impunidade, i.e. «o homem sagrado» ou «o homem amaldiçoado», uma noção que persistiu para além da Idade Média; pense em alguém que é «vogelfrei», onde o significado original do termo se refere a independência, ser «livre como um pássaro, não estar vinculado», mas também indica o estatuto de uma pessoa a quem foi imposta uma penalidade legal de criminalidade: «preis gegeben und vogelfrey»
––Bem, e há também um uso marxista deste termo relacionado com a escravidão assalariada:
«Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como delinquentes ‘voluntários’ e supunha depender de sua boa vontade que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes.»
––Marx designa o grupo de trabalhadores assalariados como sendo livres ou «pássaros livres» (vogelfrei), significando ao mesmo tempo que enquanto o proletariado já não é propriedade (como escravos ou servos), eles são, no entanto, eles mesmos sem propriedade e expulsos da comunidade de proprietários.
––No entanto, o problema com a palavra «forestieri» de Agamben é que nas traduções se torna «refugee», «refugié» [refugiado], «stranger», «étranger» [estranho] e perde-se a conotação de floresta. Parece que, mais uma vez, atualmente, os «estranhos» acabam por ir parar aos bosques, e que estes–como quer que eles sejam–tornam-se cada vez mais o verdadeiro público—o verdadeiro espaço comum...O Yi-Fu Tuan diz no texto dele «Strangers and Strangeness»: «As palavras 'forest' e 'foreigne' têm a mesma raiz e a ideia base é derivada do latim 'foranus', que significa 'situado do lado de fora'. Florestas e estrangeiros estão fora do mundo conhecido de parentes e florestas desmatadas. São estranhos, vagamente ameaçadores…»––De alguma forma eu também sou um estranho––ainda tenho nacionalidade belga––e um «vizinho» disse-me uma vez ao passar por mim: «São estranhos, vagamente ameaçadores…»––De alguma forma eu também sou um estranho––ainda tenho nacionalidade belga––e um «vizinho» disse-me uma vez ao passar por mim: «Tens de ser um estranho para conseguires fazer o que fazes.»––De qualquer forma, uma vez li sobre alguém que estava falando com «estranhos» nos bosques: pessoas a quererem deixar o seu país ou pessoas que acabam de chegar a países que não os aceitam, e existe também esta ligação verbal entre pessoas que são refugiadas e que estão a viver ou a esconder-se na floresta ...
––Lembra-te de «Voices from the ‘Jungle’: Stories from the Calais Refugee Camp», mas lá a selva é mais como uma metáfora…
––Sim, é «Le peuple des clandestins», Calmann-Lévy, 2007 by Smaïn Laacher um sociólogo e juiz francês.
––Bem, vamos voltar ao refúgio do LeM., onde não estás apenas a brincar ironicamente com palavras e significados de textos e termos legais e ostensivamente a praticar «sem propósito», mas onde estás aparentemente a mostrar uma grande sensibilidade em relação aos problemas atuais...
––No entanto, tudo isso––o que foi dito antes sobre o «refúgio» em particular––está ligado àquele edifício, o chamado LeM., o edifício mais alto daquele terreno, porque a terra é muito maior e comecei a usar «Le Montavoies»: a montanha com os caminhos, para todo o conjunto da terra e as suas diferentes estruturas, embora apenas o «Le Montavoix» seja o refuge de passage gardé pela aprovação final da administração de Saint Claude, que classificou o lugar «refúgio» de acordo com o cumprimento desses artigos legais––então, isso significa que as pessoas têm o direito de ficar...
––Sempre que alguém chega ao LeM. normalmente encontrará alguém lá––ou pode acontecer que ninguém lá esteja, que o refúgio esteja abandonado?
––O LeM. está classificado como «refuge gardé» e isso significa que tem de haver um guarda––caso contrário está fechado––, existem muito más experiências com «refuges non gardés» porque muitos deles são destruídos pelo fogo... de qualquer maneira escolho porque tive a ideia de trabalhar com jovens...––trato-os por «criminosos»...
––Quer dizer que os «guardiões» do refúgio são jovens «criminosos»?
––Sim, desde que tenho essa dupla responsabilidade––manter o refúgio guardado e também a responsabilidade de ser o «guardião» desses jovens a quem a sociedade disse que tinham um problema––, partilho essas responsabilidades dando-lhes um papel, então eles tornam-se guardiões do refúgio...–– então o que faço é que recebo um desses jovens que não podem sintonizar o seu ser com a sociedade: que colidem de alguma forma com a sociedade ou vice-versa––um a cada––um de cada vez trabalha comigo por um período de três meses lá no LeM., e embora o nosso ritmo seja bastante diferente, partilhamos um motivo em comum no espaço, em seguir os mesmos caminhos através da floresta...
––Vocês estão lá juntos durante três meses a partilhar quase todos os momentos e espaços…
––E o que acontece é que isso transforma a lógica desse jovem que antes estava numa unidade segura, e vamos chamá-lo pelo nome: um reformatório, uma prisão protegida––e que agora está a tornar-se um guarda ao cuidar de tudo, a contar às pessoas que chegam qual o trabalho deles––então, depois de um período de tempo, tornam-se muito preocupados e muito responsáveis, não existem mais problemas e levam tudo muito a sério.
––É esse o efeito da «Waldschule»––não é?––Mas como é que decidiste estar com delinquentes juvenis?
––Gosto muito de trabalhar com pessoas de diferentes gerações––sempre foi assim––, gosto desta busca impossível por contacto entre gerações: o velho professor e os jovens estudantes. Estava a ensinar muito, e gosto de fazer isso, mas tive a sensação de que os alunos, através do sistema educacional pelo Processo de Bologna, o European Credit Transfer and Accumulation System ( ECTS ) ou o que quer que seja––tornam-se como que guardiões de livros, têm de gerir créditos e pontos e tudo é governado como em economia, e o que acontece é que existem esses jogos com os professores para conseguirem o que é suposto obterem, i.e. obter essas notas o mais rapidamente e facilmente possível, tentando evitar cursos difíceis, tentando alcançar o que parece mais fácil––então tive a ideia de que esses jovens que tinham um tipo de comportamento criminoso, na verdade são muito mais honestos...
––Porque não são assim tão astutos, tão enganadores, apenas fizeram algo abruptamente sem pensar nas consequências?
––Sobre isso… também gosto da maneira como falam de si mesmos, à noite quando o fazem, é realmente interessante, e eu realmente gosto disso e também rimos muito… admiro o jeito com que esses jovens parecem incapazes de aprender, impossíveis de se integrar em determinados sistemas…
––E quanto a alguma tensão?
––Sim, é claro que às vezes também existe muita tensão, nunca estive tanto tempo juntamente com alguém, nem mesmo com os meus filhos, tão próximos, porque fico com eles o tempo todo, e partilhamos quase tudo...––E sim, digo a esses jovens que a floresta é uma escola, mas uma escola onde não há nada para aprender, uma escola para aqueles que não aprendem... e na verdade não há nada a ganhar um com o outro––como na «escola»: não há diploma, não há salário...––Então comecei a trabalhar com aqueles que não são adultos, que não têm dezoito anos, onde a responsabilidade fica com os pais ou um juiz, que então delegam essa responsabilidade a uma instituição e, como muitos sabem, essas instituições são muitas vezes mais um problema do que uma solução...uma exceção pareceu-me a Oikoten, uma organização belga que começou a organizar caminhadas a Santiago de Compostela, etc. … Nós entrámos em contacto; eles assumiram a responsabilidade pelos jovens ao encargo do juiz da secção de família e menores e transferiram essa responsabilidade para mim por um período de três meses. Mas então o governo belga começou a cortar o dinheiro para a Oikoten, e a mudar a sua «tarefa»––funcionários do governo não acharam––e muitas vezes ainda não acham que essa relação cautelosa é uma boa ideia para trabalhar com jovens difíceis: eles querem resultados rápidos... Então ainda estou a trabalhar com a Oikoten, mas também estou em contato com outras organizações e institutos, por ex. a francesa Protection Judiciaire de Jeunesse...
––Tudo isto parece bastante evocativo da educação progressista como o Henri Paul Hyacinthe Wallon, o Célestin Freinet e seguindo o Fernand Deligny.
––Sim, estou muito interessado no trabalho do Deligny!––O Deligny contemplou e estudou os movimentos das crianças autistas ou das crianças com problemas comportamentais com que ele vivia nas colinas de Cevenas ou dos Vercors, não para fins educacionais ou outros, mas por respeito a um mundo que ele não queria dominar, mas sim fazer parte...
––Como são as tuas relações pessoais com o Deligny?
––O meu interesse pelo Deligny remonta a um tempo pouco antes de eu começar com o LeM., quando estava a fazer investigação em cidades, a minha prática arquitetónica era investigar mais e mais em cidades onde trabalhei com estudantes ou antigos estudantes para fazer investigações, olhar para o «espaço público», ou seja, espaços onde qualquer um pode fazer qualquer coisa em qualquer momento, i.e. o espaço não privado, ou espaço não particular, por outras palavras, um espaço economicamente desinteressante e que pode ser visto como um confronto com a insegurança, como exposição, como vulnerabilidade, e que em última análise rejeita o uso do termo «público» para espaços que são cada vez mais privatizados e protegidos. Tais procuras e tentativas de «leitura»/compreensão do espaço público não surgem do conhecimento teórico ou histórico, mas de uma posição em que alguém se submete à investigação apenas por estar no espaço público, por envolvimento pessoal e exaustão––como um cão vadio na cidade pode-se encontrar esses espaços...––mas então, num certo momento, quando estava a preparar um projeto, um grande projeto de investigação deambulante no espaço público, fazendo passeios de bicicleta e longas caminhadas desconfortáveis e nada turísticas, para fazer um inventário do espaço público que deveria resultar em mapas, fotografias, textos e vídeos, estava a pensar, se, o que estou a fazer aqui, ainda não foi feito pelos Situacionistas––e ao observar isso, reparei que era bastante diferente, já que eles falam sobre enganos, deambular na cidade, enquanto eu tentava convencer os alunos a fazerem passeios de protocolo, caminhadas muito longas, à procura de apenas cinco parâmetros…––mas a partir daí, quando olhava para Guy Debord et al., vi o nome Deligny e vi algumas citações dele, e naquele momento e para aquele projeto que estávamos a planear propus tornar o Deligny como nosso guia––confiei muito nessas poucas linhas que encontrei…foi muito difícil naquela época encontrar qualquer livro dele, mas dois ou três meses depois saiu este incrível livro sobre e do Fernand Deligny, editado por Sandra Alvarez de Toledo…Por isso, trabalhei bastante longa e profundamente com o trabalho do Deligny, notavelmente organizei uma exposição e também um colóquio, que foi chamado «Forestieri» congruentemente, e onde mostrei os mapas que o Deligny e os seus colaboradores fizeram e que a Sandra Alvarez de Toledo me emprestou muito gentilmente––e enquanto tudo isso, encontrei este pedaço de terra––, assim desde o princípio que o Deligny é como um amigo, embora nunca o tenha conhecido, já era tarde demais...
––Gostarias de dizer algo sobre como mudou as cidades, o espaço público para a floresta?
––Em 1998, comprei primeiro uma casinha no Jura francês, conheço o Jura há muito tempo, por causa das grutas––o Jura com suas grandes cavernas de calcário cárstico, que gosto muito, parece-me que é o lugar onde pertenço, mantém-me acordado, e desde o momento em que cheguei, no primeiro dia estava convencido de que era um bom passo, que tinha de me mudar da Bélgica para a França, para o Jura, mas não estava convencido com a casa, e comecei a pensar, talvez devesse fazer mais, e a partir daquele momento comecei à procura, e isso durou até 2006 quando encontrei o LeM. no Alto Jura, embora fosse inimaginável que isso se tornasse possível...
––Afinidades eletivas são fortes, e elas criam mais––aparentemente nunca esteve sozinho lá na floresta da montanha, portanto o LeM. não é um lugar para um eremita.
––Não. E em qualquer caso existe civilização em todo o lado: Um avião voa alto, sem dúvida a caminho da cidade, os satélites de comunicação e orientação piscam ainda mais alto, se não olhar com cuidado, pode pensar que são estrelas. Um animal passa, a resfolegar. O cabo de alta voltagem crepita no ar húmido da noite, um carrapato rasteja até à sua virilha. A floresta é interminável mas a cidade está próxima, o mundo está por perto…––De qualquer forma, é muito importante entender que o LeM. fica realmente muito perto da cidade – a cidade de Saint Claude, que é, apesar de pequena, uma cidade real, com uma longa história de migração (portugueses, russos, pessoas do norte de África, etc.), com muitos coletivos de trabalhadores, sindicatos, e que agora é chamado por investidores, desenvolvedores e políticos: Plastipolis ou La Plastics Vallée, onde entre o CERN, o maior acelerador de partículas do mundo em Genebra, de um lado e do outro o ITER, o reator experimental de energia de fusão, em Cadarache, uma cidade contemporânea muito extensa está a desenvolver-se como uma longa e infinita cidade nos vales de Genebra, passando por Saint-Claude, Oyonnax, Lyon, Grenoble até Valence, onde jovens investigadores ativos estão a trabalhar em novas tecnologias, e vivem em casas individuais e passam o seu tempo livre em atividades de lazer nas montanhas vizinhas...
––Assim, o que parece um ambiente natural abandonado é na verdade uma região urbana...
––Só por conhecer o caminho, pequenos desvios etc. em 25 minutos consigo chegar ao centro da cidade, mas não se vê a cidade de maneira nenhuma porque existe uma montanha no meio, então as pessoas dizem que estamos no meio da natureza e eu respondo que não, é urbano, é muito ligado à cidade...
––No entanto, embora seja uma orla urbana, é particularmente um «lugar antropológico» como o Marc Augé chamou aos sítios que oferecem às pessoas um espaço que fortalece a sua identidade, onde podem conhecer outras pessoas com as quais compartilham referências sociais, opondo-se assim a não-sítios ou não-lugares, que não são lugares de encontro e que não constroem referências comuns com algum grupo, no qual não vivemos, e onde o indivíduo permanece anónimo e sozinho; pensa-se também no Michel Certeau's L’Invention du quotidien ––ou, antes, o conceito semelhante do Michel Foucault de heterotopias:
«Em geral, o sítio heterotópico não é livremente acessível como um lugar público. Ou a entrada é obrigatória, como no caso de entrar em um quartel ou prisão, ou então o indivíduo tem que se submeter a rituais e purificações. Para entrar, é preciso ter uma certa permissão e fazer certos gestos.»
–– Eu não sou muito fã de Augé, especialmente do termo «não-lugares». Os lugares de que estava à procura são realmente «espaços»: i.e. não não-lugares; certamente de que são «lugares antropológicos», mas o que é que isso diz?––E sobre este texto de Foucault––e embora seja muito frequentemente citado na arquitetura––acho que não é um dos seus melhores textos––na verdade o texto não é claro para mim…–– e assim sua aparente relação com o LeM .–– mesmo que certos gestos tenham que ser feitos lá, como «A pessoa terá de andar de e para o refúgio». / «O refúgio não é um lugar de lazer». / e: «No refúgio, a pessoa vai ‘falar’ por uma questão de espaço»...
––Assim e de qualquer forma estás novamente num espaço público...
–Eu considero o bosque, que fica ao lado da cidade como um espaço público atual e contemporâneo.
––Depois dos teus critérios para ser um espaço público?
––Sim, e mais notavelmente onde no início do bosque, onde a madeira e a cidade se tocam, montes de lixo: entulho, roupas de trabalho, tambores velhos, latas de tinta vazias... Dois carros estacionados lado a lado... Ou duas pessoas sentadas juntas num carro. Jovens e adultos vêm para cá, antes de irem para o trabalho, para a escola, para casa, antes de terem de ir para casa... Todos esses rituais, essas pistas dos seus desejos, esses olhando furtivamente, sempre que se vê a curva da estrada, sempre que se vê o caminho que acaba nos troncos das árvores, sempre que se vê o pequeno local de lixo debaixo das árvores...
––Por que consideras o «espaço» uma forma preferível de comunicação? O que significa um encontro que acontece silenciosamente através do espaço?
––Nós usamos sempre palavras, línguas para comunicar; sabemos como é difícil entender-se um ao outro quando se falam línguas diferentes; mas mesmo quando falamos a mesma língua, não nos entendemos, não comunicamos. Quando digo azul quero dizer algo muito diferente do que você entende como sendo azul. Mas quando olhamos para o espaço, quando estamos em espaços, quando pensamos em espaços, nós vemo-los muito parecidos, até pessoas de origens, cultura ou idade muito diferentes. Quando reconhecemos o facto de que alguém está a usar ou usou o espaço de uma maneira incrivelmente semelhante como fazíamos ou costumávamos fazer, existe algum tipo de comunicação, podemos comunicar com essa pessoa, entendemos o espaço da mesma maneira que essa pessoa.
–– Parece bastante caprichoso… Poderias explicar isso um pouco mais?
––The Book without a title que eu fiz com o Marc De Blieck foi sobre algumas infraestruturas ao longo das rodovias belgas (estacionamentos, restaurantes, lojas e postos de gasolina) que são sistematicamente e intensamente usadas para contactos informais, sociais e, mais especificamente, sexuais, principalmente não comerciais, entre homens bissexuais ou homossexuais discretos. Já trabalhei com estudantes nesses lugares, e também muitas vezes sozinho, também em muitas cidades, fazendo inventários, ficando nesses lugares por muito tempo, provavelmente remonta ao tempo em que eu morava em Manhattan, logo depois terminar a escola: ali passava muito tempo no cais, abandonado e, ao mesmo tempo, «serviam» para muitas pessoas «selvagens».
Enquanto estava nesses locais informais de encontros sexuais, tive uma sensação muito vaga de reconhecer esses espaços, como se já lá tivesse estado, como se os conhecesse de há muito tempo atrás, era um sentimento muito vago, mas bom, que se juntava com o desconforto, a sensação de perigo. Mais tarde, em 2005 ou 2006, quando, durante dez dias, procurei sem sucesso um desses lugares em Bucareste, comecei a pensar que tinha perdido o sentimento, a capacidade de encontrar esse tipo de lugares e, depois, no último dia da minha estadia, encontrei um espaço enorme, muito denso, enquanto caminhava por lá, havia uma estranha maneira de «comunicação» entre as pessoas que tinham feito esses espaços (sem sequer saberem que estavam a fazer um espaço: estavam a fazê-lo ao ir apenas até lá, ao voltarem lá várias vezes, a traçar trilhas dessa forma, a criar traços ao deixar seus vestígios) e as pessoas que «fizeram» este espaço em Bucareste e até eu: ninguém perguntava nada, não haviam respostas: nós estávamos apenas à procura do mesmo espaço: encontrámos o mesmo espaço, para uma necessidade semelhante. Esse sentimento, a certeza de que tínhamos encontrado esses espaços para as nossas necessidades, deixou-me profundamente feliz...––Desculpa, deve parecer-te patético... Acho que não consigo formulá-lo melhor do que isso.––
Mas outra coisa: enquanto trabalho no edifício LeM., estou a medir para colocar novos plintos na parede, o meu medidor dobrável tem 2 metros de comprimento, começo a medir do ângulo do espaço, mantenho o meu dedo no ponto dos 2 metros, coloco o metro novamente em posição, para poder chegar ao comprimento total da sala (mais de 6 metros), e exatamente no lugar onde tenho o meu dedo na parede vejo uma pequena linha vertical a lápis, deve ter sido colocada lá por quem instalou os plintos anteriores há mais de duzentos anos atrás, estou a fazer exatamente a mesma coisa, da mesma forma que a pessoa que o fez muito antes de começar a viver: é como se essa pessoa batesse no meu ombro, e disséssemos «olá amigo», através do tempo, no espaço. Tenho o mesmo sentimento quando vejo marcas antigas, deixadas por lenhadores, há cem anos, as marcas cresceram cinco metros em altura, mas eu reconheço os sinais, são os mesmos que coloco nas árvores agora, para indicar que não deveria cortá-las. Talvez uma centena de anos mais tarde, alguém veja um desses sinais, e se assim for, por um segundo vamos tocar no ombro um do outro...
––Esses tipos de pensamentos levam ao que ocasionalmente intitulas como NOUVELLE.ECOLE.ARCHITECTURE?
––É apenas um subtítulo que por vezes dou ao Le Montavoies, existe também uma tentativa de uma definição, mas não se deve considerar a NOUVELLE . ECOLE . ARCHITECTURE como sendo uma nova escola de arquitetura. Uso essas três palavras e peço às pessoas que mudem a ordem dessas três palavras e adicionem várias preposições para gerar pensamentos, sabendo que Le Montavoies lida com estas três palavras: o NOVO (a nova condição humana após a instalação do digital em todo o lado), a ESCOLA (o instituto, o prédio onde velho e jovem (não podem) se encontrar, a impossibilidade de aprender...) e a ARQUITETURA (o espaço tridimensional)
––Wim, podes dizer mais alguma coisa sobre a práxis que efetivamente está a acontecer no LeM.?
––Essencialmente consiste em caminhar de e para, para a frente e para trás na floresta; em transportar coisas de um lado para o outro, como um sem-abrigo, como um estranho––O LeM. não é uma casa, é um lugar estranho. Na floresta todos são estranhos à procura de uma oportunidade, na floresta ninguém sabe onde cada árvore deve estar. Na orla talvez exista reconhecimento, mas na floresta esta é isso mesmo, a floresta. Na floresta não acontece nada, nada está errado. Vamos lá para morrer.
–––Vais falar sobre o LeM. como uma purga?
––Eu vou morrer. E tenho a sensação de que trabalhar no Le Montavoies torna isso mais aceitável do que nunca. ––De qualquer forma, tudo isso faz da floresta um lugar, de modo que existem lugares comuns. Lugares comuns que podem atrair as pessoas para fora das suas casas, tal como as escolas fazem. Continuo a desejar, não críticas mas abordagens... O trabalho florestal, que eu faço (frequentemente com um destes jovens) é feito de forma ecológica, o que significa não fazer inventários de florestas para as poder explorar, não se tornar como pessoas que sabem que árvores crescem onde, quem sabe quantos metros cúbicos de madeira há por hectare e de qual qualidade, quem sabe quais doenças afetam as árvores, como é o subsolo. ––Assim, para não se assemelhar às pessoas que exploram a cidade, sabendo quantos edifícios existem, quão bem ou mal os edifícios estão equipados, pois são eles que sabem o valor dos bairros...––É esse o trabalho, e existe também algo como atividades artísticas ...
––E parece haver outra coincidência entre ti e o Fernand Deligny, que se considerava mais um poeta do que um assistente social ... ambos escreveram uma peça de teatro: POOR BEING POOR
––Sim, foi quando passei uma longa semana no LeM. juntamente com cinco toxicodependentes sem-abrigo e os seus cães. Nós concordamos em estar juntos durante esse período como uma equipa de filmagens, os sem-abrigo seriam os atores do seu próprio papel, eu não sabia qual seria o meu papel (diretor, operador de câmara e iluminação...?). Mas uma coisa era certa, não íamos fazer um filme. Depois da semana que foi bastante cansativa, eu não tinha escrito nada. Só mais tarde é que comecei a escrever. Eu escrevi todas essas frases que eles repetiam sem parar e que eu não conseguia esquecer e misturei essas frases com algumas das histórias que eles me contaram sobre eles próprios, histórias que também não consegui esquecer. Eu escrevi no seu dialeto muito forte da Antuérpia (que eu não falo, mas que consigo imitar). É suposto a peça ter cinco atores à volta de uma grande mesa, juntamente com os cães. Eu li o texto três vezes interpretando todos os papéis: uma vez num teatro, outra no local de trabalho dos assistentes sociais e outra numa praça na Antuérpia onde esses homens estavam a conviver e onde o presidente da Câmara daquele tempo tinha proibido aglomerados de mais de três pessoas...
––Outra tentativa de falar mediante o espaço no espaço público?
––Bem, desde que percebi cada vez mais que apenas o espaço público pode ser o espaço existencial de que estava à procura, também percebi que a verdadeira arte contemporânea é o espaço público já que todos estes aspetos deste tipo de espaço, tal como necessidade, existência, inutilidade, sem qualquer valor económico direto, violação de regras da sociedade, etc.––assim, todos estes itens são interessantes e essenciais para artistas contemporâneos...––Criar lugar (no sentido de fazer um espaço tridimensional e também no sentido de se afastar) é do que se trata a arte contemporânea...
––Então, irás (ab)usar mais contextos de arte para instalar o espaço público?
–– Neste texto escrevi para o J – A que fizemos algumas «correções» na definição de espaço público e onde insisto em falar sobre «espaço com um elevado nível de publicidade» em vez de uma conversa sem graça sobre espaço público. E a arte contemporânea é um espaço com elevado grau de publicidade. O Le Montavoies é a minha arte. No «Le Mont Analogue» de René Daumal o editor adicionou alguns textos de Daumal. Num deles ele pergunta: «mais qu’est-ce donc cet ‘Alpinisme analogique’ ? C’est l’art. C’est l’art.» *(Mas o que é então o Alpinismo analógico? É a arte. É a arte.) Hoje em dia já não digo que ‘não’ quando alguém de um instituto de arte, uma galeria, etc, me chama. Frequentemente uso a sua pergunta para me forçar em direção à teoria, ao pensamento, àquela parte da práxis.
––E por fim?
––Recentemente estava a trabalhar com um homem que veio de um hospital psiquiátrico, nós estávamos no terreno a medir as árvores com mais de 30 cm de grossura, para fazer isso temos de abraçar a árvore de uma certa maneira...––depois medimos a distância entre duas árvores com uma fita métrica, mediamos a inclinação (o declive), e depois medimos o azimute (uma medida angular da direção)––Acho que devem lá haver 25.000 árvores ou mais––um trabalho extremamente inútil...
–
Tradução do inglês para o português de Daniela Sofia Rodrigues Luís.