A pequena personagem feminina que fecha o corpus deste livro não tem rosto, mas o seu corpo é reconhecível — é o corpo de uma sereia. Ele ilumina retrospectivamente todas as páginas que o precedem. É ele próprio uma figura de gesso, um molde descolorido e mudo. Esta fotografia reúne os dois motivos da imagem desbotada e da sereia silenciosa. A imagem e a sereia são duas grandes figuras do poder do encantamento assente na ilusão. Quando a ilusão se desfaz, a imagem e a sereia regressam à sua condição de engolidas. À condição de imagens sem ilusão e de sereias sem voz.
Quando imagina o que poderia ser «o silêncio das sereias», Kafka apresenta a vitória de Ulisses não como o resultado de um estratagema, mas como a inversão desencadeada pelo sentimento de vitória: perante um herói seguro de que resistirá ao charme delas, as sereias preferem calar-se. Ao abdicarem, os seres maravilhosos abandonam o seu poder de sedução e rendem-se ao charme do olhar heróico. O que seria esta inversão da sedução se, em vez do canto, se tratasse de linguagem? Quais seriam as imagens poéticas desse silêncio? Não seria, no fundo, uma viagem aos limites da própria linguagem? A referência é de novo literária: no capítulo «Sereias», de Ulisses, Joyce atravessa precisamente esse momento em que, depois de ter desfeito a ordem da linguagem, o escritor não encontra mais do que o «transbordar de energia libidinal» para representar uma situação. Será que acontece o mesmo com as imagens?
Este livro de Sandra Rocha parece respirar assim, a derrota da sedução resulta de uma crise das imagens de imediato evocadas pelas paisagens artificiais dos papéis de parede. Abre-se, então, o mundo do depois, o das imagens que falam do desejo sem seduzirem. As mulheres artistas possuem este génio da interioridade, da experiência fundamental de se sentir um corpo interior e de poder expressar esse mundo. Trata-se, assim, de matéria líquida, de flutuação e de ilusão. Este livro é um banho nocturno de que ressoa o canto impedido das sereias. Este é o livro das imagens engolidas, contidas no fluxo interrompido da linguagem, imagens que assumem todas as formas do desejo, que experimentam todas as gamas, todos os tons, todos os géneros do desejo... mas que não seduzem porque nunca chegam a ser verbalizadas. Ou, permanecendo no domínio da imagem, porque nunca chegam a ser projectadas no exterior. Estas fotografias são imagens mentais, corpos de mulheres núbeis ou maduras, figuras de conquista e de maternidade, que emergem do refluxo das suas cabeleiras transformadas em sedimento. Uma sereia, como uma flor cujas raízes mergulham no alimento fétido do subsolo, nasce da lama – e o seu canto não é mais do que o momento raro de uma submersão. O canto das sereias é o soluço melódico de um afogamento, um prelúdio da morte.
Reparem nestes filamentos verdes e nestes papéis de parede, nestes raios de sol embaciados e nestes gestos inabilmente encenados, e verão o quotidiano das sereias, mulheres silenciosas e marinhas. Elas tentam secar os seus corpos, tentam extrair-se do líquido ou fundir-se com ele. São anfíbias como a imagem é anfíbia — capaz de falar uma língua submarina, aquela que se adivinha na articulação das bocas mas em que subsiste sempre a dúvida gerada pela água turva que nos separa do outro. Estas imagens não são feitas para serem amadas, elas conjugam-se umas com as outras na aspereza líquida e convertem os olhos numa pasta mole. «Háptico» é, portanto, a palavra desta fotografia que liquefaz o nosso olhar e nos sugere que é, doravante, no nosso íntimo que as sereias sobrevivem com os seus rituais. Caber-lhe-á a si querer saber mais, regressando várias vezes a este livro onde a música é um mergulho dissonante.
O que vê o olho no momento em que se retoma a respiração? Um pedaço de céu, um eclipse ou um arco-íris: antes de voltar a ser normal, o mundo à superfície reserva-lhe sempre um pequeno milagre. É a parcela delirante do desejo que levamos por um instante à superfície, deixando para trás as sereias e a experiência ressumada do orgânico. As imagens interiores não eram imagens mentais, mas, numa acepção mais profunda, «o espaço de dentro» que nos revelava Henri Michaux.
Já imaginaram o que acontece aos seres sedutores quando ficam sozinhos? Eles abandonam-se à melodia lenta da sua própria beleza. Neles, a solidão é uma derrota da qual se redimem entrando em si mesmos. Facto curioso, aquilo que habitualmente prometem, essas paisagens longínquas e essas felicidades luminosas, faz lembrar os aquários e as festas populares. Os grandes quadros, as batalhas e os frescos emudecem em cartazes e impressões florais: reinados de quadros desbotados. É o movimento do nado das sereias, que ascendem dos fundos para as superfícies. Elas trazem consigo o imaginário do engolido.
As sereias ressoam e previnem-nos do perigo. Elas também cantam para nos seduzir e são o perigo. O silêncio delas é uma imagem do perigo.