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Através da experiência, concluí que os segredos (pelo menos esta mistura de ideias, técnicas e acasos) que contribuem para o aparecimento de uma presença incomum que advém do desejo de adicionar algo mais ao mundo (pelo menos ao do artista actuante), não chegam desde fora, mas sim da intimidade do estúdio. É possível, no entanto, que venham de longe, de muito longe, mas são invocados pela energia do lugar. O último está à espera de tocar a ideia. É necessário pois domesticar intenções, de as testar perante o quotidiano, colocá-las à parte, usá-las imediatamente ou de as esquecer durante longo tempo. O estúdio é um cérebro em aberto com o pó por limpar.
Notas de estúdio (I)
A posição dos objectos em pintura
A des-hierarquização da representação de objectos na pintura tem uma história. Admirar o que pode ser tocado, que é parte da vida quotidiana, ajudou certamente a mudar o curso das coisas ao nível social (em França, a revolução não está longe). Na parte inferior da hierarquia, a natureza morta. A janela (o quadro) que propõe não dá para uma vida melhor, para alegorias e poder. O seu horizonte são as paredes sujas em que aparecem os traços diários feitos pelos ocupantes das casas em que são exibidos o conteúdo do que vai alertar o cheiro e deliciar a pança: a promessa de um bom festim.
The Ray de Jean Siméon Chardin (1725-1726) é um exemplo «vivo» desta pequena revolução que aconteceu na imagem ao ser contemplada. É o caso de um pintor que parece desaparecer perante o seu sujeito, um pintor que direcciona o seu olhar aos olhos da besta, dando-lhe o papel principal. Podemos ainda ousar a comparação com outra pintura exposta no Louvre, que desde há muito nos olha. Faz quase o mesmo papel da arraia de Chardin, com o seu sorriso arreganhado. Estou, obviamente, a pensar em Mona Lisa que nos olha e não tem qualquer outra ambição à parte de nos olhar. Este quadro vem fechar uma longa e histórica série de virgens cujo o olhar se tornava em dor. Mona Lisa toma o lugar da maior pessoa em luto de todos os tempos e silenciosamente sorri para nós. Em realidade, quem poderá reencontrar o poder do êxtase de uma Madonna de Giovanni Bellini, depois do golpe fatal derivado do acto de se sentar uma «burguesa» no mesmo lugar da mãe de Cristo? Olhar para ela, olhar para ela olhando-nos, é viver no mesmo tempo que o pintor nos atribuiu. Leonardo relaciona Mona Lisa à paisagem somente através de uma ponte. Daniel Arasse debruçou-se sobre esta ponte e o seu significado, esta passagem entre a natureza e a mulher com o seu sorriso inquietante. Ela sabe que está a ser pintada num fundo negro, que ascende inexoravelmente para a superfície. Um dia, ela tornar-se-á, sem dúvida alguma, no mais belo monocromático negro da história da pintura.
Mas abandonemos esta questão por agora. O que queria dizer aqui era o seguinte: eu acredito que Chardin, aos 29 anos, criou um dos trabalhos mais inacreditáveis da história da arte Ocidental. Este artista, ao trabalhar no fundo da hierarquia dos temas, recompõe a ordem das coisas e abala as regras imperiosas da Academia Real em França. Depois dos burgueses que tomaram o lugar da virgem, aqui chega a besta, apanhada na rede em alto mar, nua, arranhada, ao mesmo tempo que distribui os papéis a cada elemento desta estranha composição.
Estamos de fronte para a parede, que literalmente alterna os objectos apresentados em frente do observador (no raiar do século XX, Paul Cézanne vai compreender totalmente a lição desta organização espacial e depois, Henri Matisse vai relembrá-la, assim como o autor destas linhas que vai exercitar durante dois anos no domínio do pseudo pastiche). No meio desta composição, o pintor pendura um peixe estripado e ensaguentado, dividindo o mundo em duas partes: a cozinha à direita, comida e movimento à esquerda. Uma faca que nós poderíamos pegar, a lâmina afiada meio escondida pelo pano, que sem sombra de dúvidas foi usado para limpar o sangue da besta. O gume da faca orientado na direcção das ostras, do alho-porro, do gato desobediente que pisa as conchas ligeiramente abertas pela faca do artista criminoso. Crime e cozinhar, tudo está no seu lugar para assumir o ritual. Como um especialista na linguagem fluída das cores, Chardin atira o frio e o quente, o calor aumenta, o frio desce até ao canto da pedra e vira à esquerda em direcção ao azul da faca. Depois de Chardin, e com Jacqueline Lichtenstein (The Blind Spot), podemos pensar na «ideia de espaço no sentido moderno do termo, como um espaço onde os elementos são definidos simplesmente de uma forma diferencial, das suas respectivas posições e não de acordo com uma hierarquia».
Notas de estúdio (II)
O valor e o destino dos objectos
De volta ao estúdio. Objectos e ideias contaminam-se. Num estúdio, eles tomam um lugar invulgar. Tenho a impressão que as ideias andam a pairar no ar e que os objectos afirmam a sua vontade e prontidão. Entrar no estúdio significa essa aceitação em continuar a batalha com os nossos próprios monstros. Eu tenho sempre algum medo em colocar a chave na fechadura. Mas temos que entrar. Ali estão as velhas conquistas, outras em processo, as ferramentas e as coisas que impacientemente esperam a sua vez. Os objectos no estúdio vieram de diversos contextos e foram encontrados por acaso. Alguns deles vão regressar à sua solidão ou ao lixo. Outros resistirão ao finalmente transitarem as suas presenças inusitadas em lugares pouco expectáveis. De facto, parece-me que a arte vem muitas vezes da ampliação de vários elementos, que nunca se deveriam encontrar.
Uma anedota poderá iluminar o leitor nesta caminhada escrita. Eu tenho vários métodos para conceber uma exposição, um livro ou, neste caso, mercados de segunda-mão que crescem aqui e ali nas aldeias nos arredores do meu estúdio. Hoje em dia, quando visito esses mercados, tento não localizar coisas que de alguma forma aumentem os objectos espalhados na minha toca. Eu espero que eles próprios se manifestem e destaquem. Assim me aconteceu no mercado de segunda-mão de Esternay, uma cidade a cerca de 100 km a Este de Paris, ao caminhar por entre utensílios velhos e recentes, abandonados pelos seus donos. Não existe outro lugar como este tipo de mercado que sublinhe mais a des-hierarquização de objetos que perdem as suas funções decorativas e utilitárias.
Abandonados, por vezes rejeitados, eles parecem estar atentos a novos compradores. Foi assim que um dia conheci um coleccionador de pequenos «chalets» suíços expostos numa pilha. Contemplei essas construções de madeira que fazem música e permitem o diagnóstico do tempo, com a ajuda de pequenos personagens que saem e voltam a pequenas casas de acordo com o tempo actual.
É também possível acrescentar pequenas árvores de abetos, cortar o telhado com um serrote minúsculo e a casa transforma-se num mealheiro. Eu informei-me acerca do preço de cada um destes objectos. Ao aperceber-me da quantia irrisória em questão, perguntei ao vendedor o preço de toda a colecção. E comprei tudo. Levei o conjunto para o estúdio que foi deixado a um canto. Depois, um trabalho do pintor Boris Mikhaylovich Kustodiev voltou à minha memória, uma pintura imensa (1892 x 833 cm), neste momento parte da colecção da galeria Tretyakov em Moscovo.
Pintada em 1920, três anos depois do golpe de estado de Lenine, este trabalho tinha a intenção de carregar o símbolo da Revolução Bolchevique de 1917. O mesmo pintor fez um retrato do Czar Nicholas II em 1915... Para além do tema, fascinou-me a composição e a escala de relação entre a imensa figura – O Bolchevique – e a multidão. Depois também reparei no tamanho dos edifícios circundantes. Geralmente, a ideia errada é a de actuar imediatamente. A última deve ter a permissão de descansar durante um certo tempo e de ser testada no espaço e realidade do estúdio. Depois – e por vezes passado muito tempo – a «maionese» começa a formar-se. E eu neste momento, estou a preparar, com uma nota de humor, o que provisoriamente se intitula «a invasão da Suíça por um exército inimigo».
É nesse ponto, onde estou agora. Construí alguns personagens, coloquei-os na grelha do espaço dos «chalets» e depois de moldar os soldados, observo os efeitos em cada passo do processo de instalação. Como Gilbert Simondon colocaria «poderíamos dizer que as formas entregues ao nosso toque, à nossa visão, que são uma série de recombinações estruturais e funções encadeadas no tempo, são o produto de homens que, embora se desconheçam, estarão, ao menos, ligados pelos objectos.» (The invention of techniques). É um facto que a nossa sociedade mudou o valor das coisas.
Notas de estúdio (III)
A função dos objectos na produção de significado
Em pintura, o arranjo do tema está muito ligado à composição. Ao construir um evento estético, ao organizar de forma metódica o que deve ser visto primeiro, ao guiar o olho no entendimento do interesse na ordem das coisas, o artista organiza uma certa trajectória que tenta ocultar. Se desejarmos, podemos pois decifrar esta forma de nos guiar ao significado da pintura. A narrativa é revelada se seguirmos a estratégia da viagem temática.
Antes de Dream of Saint Augustine, pintado no início do séc. XVI por Vittore Carpaccio para a Scuola degli Schiavoni em Veneza, eu queria entender como o pintor nos guia ao ritmo do seu tempo. Antes de mais e pelos braços do desenho, senti a necessidade de verificar este tema, que meticulosamente descreve a aparição de Santo Jerónimo a Agostinho, bispo de Hipona, por volta de 420.
Muito antes do nascimento da fotografia, o pintor convidou-nos a participar num «snapshot», tornando-nos testemunhas de um momento crucial na vida do Santo pela erudita organização de um espaço interior chamado studiolo. Então tracei as linhas de perspectiva, e reparei que convergiam num ponto de desaparecimento (que deve ser à altura do olho do observador). Este ponto é o único lugar que revela um gesto, o de um braço suspenso que parece parar diante da notícia de uma aparição súbita, que (e pelo menos os historiadores o confirmam) seria Santo Jerónimo a anunciar a Agostinho a sua morte. Jerónimo está ausente da cena, provavelmente fora do quarto. Somente Agostinho o vê e sente. Dentro, do cão à luz, tudo é suspenso, fixo por uma «freeze-frame». O cão e o mestre parecem ser apanhados na luz que entra pela janela. Uma vez efectuada esta verificação, reparei num livro aberto no primeiro plano, no qual é perfeitamente visível uma partitura musical escrita, embora um pouco desfocada hoje em dia. Depois de assimilada, esta música é possível de ser tocada. Pelo menos, o observador pode ver a pintura com a música na sua cabeça.
Os objectos ordenados na composição vêm de várias culturas, são cuidadosamente arrumados, de forma metódica, e alguns informam-nos acerca da história de Agostinho, da sua vida religiosa, mas também da profana. Os livros também são ordenados de modo a que saibamos o seu número. Michel Serres (Esthétiques sur Carpaccio) confirma-o, existem cerca de noventa e seis livros, um número correspondente de forma exacta ao número que Agostinho dava a si mesmo, por volta de 426, quatro anos antes da sua morte, no seu Retractations, um testemunho dos seus trabalhos. No canto inferior direito, uma ampulheta, na qual podemos compreender que os grãos de areia chegaram ao fim. Para continuar a marcha do tempo temos que virá-la ao contrário. Será que este quadro anúncia uma morte dupla, e se todos os livros das obras do filósofo sagrado estão presentes, será que tudo ficou dito? E nós, testemunhas da cena, espectadores de uma peça construída em estilo italiano, somos confrontados com a história que pode somente ser compreendida se aceitarmos a regra do jogo do pintor que nos parece provocar no lugar onde coloca os objectos no espaço. Um espaço que congela o significado de um instante, que assume que todos os elementos feitos de carne, madeira, tecido e pedra organizam o cenário pela sua localização e identidade, e que a hierarquia do poder está algures noutro sítio, e certamente não está neste «snapshot» onde tudo participa numa «mise à morte» da aparição daquele que suspeita do seu desaparecimento.
De facto, em que consistem estas atípicas notas e reflexões de estúdio? Poderemos afirmar a nós mesmos que todos estes fenómenos, que habitam o nosso universo, são construídos pelo óbvio, que ligeiramente ultrapassam o nosso entendimento? Ou podemos deixar as coisas acontecerem e depois usar a intuição para um propósito simples: diante da miséria do mundo, o artista tem o direito de fingir ou de fazer acreditar que coloca um pé à parte...