B, Y, R
Água Viva
Pelo caminho mais longo
Processo de desemolduramento
Afogado, no vexame de luz
Sightings
HALF A STEP FROM HOME
Misfits
Out Of Here
Weiße Rose
it was just drained, drained
Lavagem
XXX
A mão não especializada
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Para Anita Isabelle Charpentier
Introdução
Este artigo busca propor uma compreensão da(s) ideia(s) de «objet trouvé» e/ou de readymade em Marcel Duchamp em termos de dois conceitos, extraídos respectivamente da filosofia de Gilles Deleuze e do trabalho psicanalítico de Donald Winnicott. O plano consiste em começar com algumas notas acerca do contexto de dadaísmo e surrealismo para, então introduzir a novidade trazida pela «obra» ou gesto de Duchamp, numa tentativa de mostrar que sua negatividade implica uma afirmação da vida como diferença, com consequências que se tornam visíveis no trabalho do artista «brut» brasileiro Arthur Bispo do Rosário.
Importa dizer de imediato que «afirmação da diferença» aqui significa inicialmente que o readymade não é exatamente ou simplesmente antiarte nem pode ser devidamente compreendido como uma categoria específica da arte de Duchamp ou da arte em geral, como, por exemplo, a fase azul de Picasso ou as naturezas mortas. Eis porque me parece importante declarar que a presença de qualquer readymade de Duchamp em meio a obras de arte aspirando a um lugar nos museus soa como um «nonsense» de mau gosto. Veremos o porquê disso. A questão é: um readymade é antes de qualquer coisa um objeto que desempenha o papel de evento. Ele certamente nega a arte enquanto esta perde frequentemente seu caráter de evento. Porém, muito mais importante do que isso, ele afirma uma abertura para novas possibilidades para o que pensamos que a arte pode ser, apontando ainda, desse modo, para um retorno a uma dimensão prático-existencial da criação fora de qualquer domínio estrito.
Como um evento negativo, um readymade afirma diferença num movimento duplo: primeiramente, ao tornar todo objeto (ready-made) capaz de desempenhar o papel de readymade – aqui o duplo sentido do termo (ready-made, readymade) abrindo o campo para um máximo de diferencia; e em segundo lugar, porque esta diferenciação não está dada como evidente, mas exige investimento, embora não em termos de habilidade artística. Trata-se do investimento para neutralizar – tirar do nada um objeto da vida de todos os dias.
Contudo, tirar um objeto «do nada» é uma ideia válida para descrever a maneira pela qual um readymade assume sua principal característica segundo Duchamp: seu aspecto de indiferença. As coisas acontecem na vida «do nada», não possuem valor em si mesmas (bom ou mau, belo ou feio). Elas simplesmente acontecem. Eis a base de tudo. Nãos e trata, porém, de um «do nada» que descreve uma vitória do acaso sobre o pensamento. Ao contrário, espero que fique claro ao longo neste artigo: algum «trabalho» se faz necessário para que um ready-made se torne readymade, para que indiferença seja «transmitida», de modo que a diferença possa ser reintroduzida na arte e na vida.
Este é o âmago do segundo sentido de afirmação da diferença: 1) toda e qualquer manifestação é potencialmente arte (um máximo de diferentes possibilidades para a arte), 2) cada objeto que se torna readymade atinge esta condição na medida em que causa um sentido de indiferença em favor da diferença. Devemos nos manter no paradoxo e sustentá-lo. O melhor que podemos fazer para «resolvê-lo» é afirmar que a indiferença deve ser produzida no nível da percepção em benefício da diferença na dimensão prático-existencial (não apenas um máximo de diferentes possibilidades para as artes, mas para as artes em conexão com a vida).
É precisamente esta passagem da indiferença para a diferença que deve ser explicada com o auxílio do conceito de virtualidade de Gilles Deleuze e a noção clínica de transicionalidade tomada de Donald Winnicott.
«Achados e perdidos»: os objetos do surrealismo e os readymades de Duchamp
Pode parecer uma distinção arbitrária, mas comecemos pela tradução francesa de readymade como «objet trouvé» [objeto encontrado]. Há aí apenas uma diferença de tradução de uma língua para outra? Digamos que não. Digamos que, se esta tradução específica não foi «literal» foi não apenas devido a uma diferença nos termos e em sua compreensão para cada uma das línguas envolvidas, mas também por uma razão histórico-cultural mais profunda: a diferença entre o dadaísmo de Duchamp e o surrealismo.
O que é um objet trouvé na língua francesa mais comum? O que o termo designa?
É bastante simples. Ele nos fala de objetos perdidos que foram recolhidos para serem devolvidos a seus proprietários. Achados e perdidos. Trouvé [achado] é a condição de um objeto que foi perdido no sentido de que foi deixado: um guarda-chuva, por exemplo. Mas parece que um guarda-chuva como readymade é ainda bastante diferente de um guarda-chuva em uma das telas de René Magritte.
Tentemos encontrar um contexto para localizar o problema. Desde o início da carnificina da Primeira Guerra Mundial as manifestações dadaístas antiarte estão no ar, de Zurique a Berlim e Nova Iorque. Logo que o conflito atinge seu clímax, em 1918, o jornal Der Dada proclama a «morte da arte», que significava, em última instância, sua politização radical contra a guerra e o nacionalismo como subprodutos da lógica capitalista, mas também contra o esteticismo estéril e inofensivo das artes. Em Paris André Breton participou dos encontros dadaístas e estava preocupado com uma política da arte. Les Champs magnétiques – seu primeiro texto «automático», publicado com Philippe Soupault em 1921 – foi escrito no mesmo espírito da espontaneidade dada. Entretanto, como observa René Passeron em sua pequena enciclopédia do surrealismo, por sua ênfase no poder das imagens e alguma seriedade experimental pode-se ver que Breton, apesar de todo barulho dadaísta, «nunca abandonou a linha que liga sua poesia a de Apollinaire ou Reverdy, com o simbolismo. Eis porque logo ele iria romper com Tzara e Picabia»[1].
Na realidade, não apenas o primeiro manifesto do surrealismo só seria publicado em 1924 e, portanto, onze anos após a Roda de Bicicleta de Duchamp (embora este readymade ainda não seja considerado «puro»), como as formulações de Breton sobre o objet trouvé subsequentes aos manifestos parecem se referir a outra coisa.
Já conhecemos a Roda de Bicicleta de Duchamp (1913). Trata-se de uma roda de bicicleta pregada sobre um banquinho. Se os historiadores de arte não a consideram o primeiro readymade de Duchamp é simplesmente porque foi feito a partir de um objeto achado e não é um objeto achado em sua «pura indiferença»[2]. Além disso, a própria ideia de readymade ainda não havia sido avançada por Duchamp. Ele compôs a roda, ludicamente, como um agradável gadget. Eis a razão porque alguns podem até mesmo considerá-la como a primeira escultura cinética e não apenas um readymade[3].
Mas a roda de bicicleta poderia corresponder à ideia surrealista de objet trouvé?
É verdade que Breton viria a afirmar uma junção entre sua própria ideia de objeto surrealista (encontrado em sonhos) e os readymades de Duchamp. No Dictionnaire abrégé du surréalisme, por exemplo, ele apresenta a seguinte definição de readymade, sob o nome de Duchamp (o verbete vem assinado com as iniciais M.D. de Duchamp): «um objeto comum elevado à dignidade de obra de arte por mera escolha de um artista».
«Elevado à dignidade de obra de arte» já é por si só uma expressão bastante problemática para descrever o trabalho ou gesto duchaniano. De certo modo, sim. Duchamp poderia ter assinado o verbete (ele provavelmente não o fez). Afinal, os readymades entraram nos museus – não importa como – e os museus são o lugar para obras de arte. De resto, ao repetir que «eu estava interessado em ideias, mas em produtos visuais»[4], Duchamp assentou as bases para a ideia posterior de arte conceitual, de algo «feito» para ser pensado e não meramente experimentado na nossa retina. Ele escavou um novo campo para as artes. Portanto, em certo sentido, sim, Duchamp «elevou» experimentos de pensamento simples à dignidade da arte. Por outro lado, porém, não se trata de uma elevação em absoluto, pois um readymade é um objeto qualquer, selecionado precisamente em virtude de sua «indiferença visual», baseado em seu não-valor. Em vez de uma «elevação de objetos comuns» não seria mais apropriado focar nas ideias sobre a arte e seus espaços e falar de um «rebaixamento»? É muito antes o empolado e separado domínio das artes que parece estar sendo rebaixado ou, pelo menos, colocado no mesmo nível das coisas comuns do dia-a-dia.
Nesse mesmo tipo de registro, é verdade que o rebaixamento também pode significar elevação, apesar de absolutamente não por conta de uma espécie de efeito aurático conferido pelo museu aos objetos comuns. A elevação é agora uma possibilidade que emerge fora do espaço institucionalmente reconhecido para as artes. É a vida que reclama uma elevação sem necessidade de museus na medida em que se torna ela própria espaço potencial para a experiência artística – tanto como espaço de criação quanto pra se deixar afetar. Tudo caminha um pouco no sentido da ideia do poeta brasileiro Manoel de Barros sobre a grandeza das coisas ínfimas que passam finalmente despercebidas. Seu livro de 2001 tem este significativo título: Tratado das grandezas do ínfimo sugerindo o que denominei noutro texto uma «ética do mínimo»[5].
Ao insistir na ideia de uma elevação dos objetos comuns alguns amantes de arte puderam enfim chegar a conclusões sobre uma tentativa da parte de Duchamp de reconhecer o valor estético das coisas comuns. O readymade foi compreendido como qualquer objeto natural ou descartado encontrado por acaso e suposto ter valor estético, quando nunca houve tal reivindicação da parte de Duchamp. Ao contrário, a função do readymade era exatamente anestésica. O próprio Duchamp atribuiu claro objetivo negativo ao seu trabalho: evitar a formação de gosto. Enfatizou ainda que o dadaísmo era, sobretudo, purgante[6].
Por outro lado, a ideia de uma «elevação» cabe bastante bem na trajetória artística de Breton. Apesar da discrepância entre os dois manifestos surrealistas de 1924 e 1930, o próprio termo «surreal» traz um sentido de elevação, muito embora o prefixo francês «sur» não aponte de modo algum para um mundo da pura fantasia ou misticismo negadores da realidade, e sim para uma realidade mais elevada intrínseca ao pensamento, negligenciada por conta de formas de consciência controladoras. Neste sentido, é claro que o surrealismo deve muito à psicanálise freudiana com suas estratégias de acesso à nossa atividade inconsciente. Assim, no primeiro manifesto, a alta realidade é o «verdadeiro funcionamento do pensamento», destituído de preocupações morais e estéticas. O surrealismo visa a expressar o pensamento por meio do puro automatismo psíquico. Quanto ao segundo manifesto, ele vem como complemento, mas ao indagar sobre a competência moral dos artistas para transformarem seus modos de expressão em ação social concreta, Breton parece mais uma vez evocar um ideal de elevação e dignidade para a criação artística. O clamor de Antonin Artaud para acabar com as obras de arte pode ser visto em última instância como a mais poderosa tentativa de resistência às pretensões de Breton o longo do século XX[7].
Entretanto, afinal de contas, o que foi «perdido» e deve ser «achado» nos readymades de Duchamp e no objeto surrealista de Breton? Antes de entrar em mais detalhes sobre a abordagem de Breton acerca dos objetos, façamos uso de um paralelo entre dois filmes a fim de esclarecer a distinção que estou tentando propor.
Refiro-me a Este Obscuro Objeto de Desejo (1977) de Luis Buñuel e A Aventura (1960) de Michelangelo Antonioni em que duas mulheres aparecem «perdidas» para seus respectivos amantes. No primeiro caso, Conchita está perdida para sempre para o respeitável apaixonado senhor de meia-idade Mathieu. Ela está perdida como objeto de desejo. Afinal, o desejo funciona segundo uma lógica obscura; daí o título do filme. Quando Mathieu vê Conchita como mais abordável, ela se torna uma diferente, inatingível. A Aventura de Antonioni opera de acordo com uma cartografia diferente. Anna desaparece de verdade de seu amante Sandro após uma briga durante uma visita a uma ilha próximo à Sicília. No entanto, ela nunca poderá ser achada em qualquer nível que seja, provavelmente porque seu lugar na vida de Sandro já foi esvaziado desde o início. Anna está perdida como objeto da vida de todos os dias. É um tema fundamental da filmografia de Antonioni: a maneira pela qual os casais lutam para permanecer juntos por nada além de hábito, inércia e medo de ficar sós. Eis a razão pela qual Sandro rapidamente irá cortejar outra mulher (Claudia) para ocupar o lugar de Anna, obviamente sem sucesso em termos de possibilidade de uma real conexão, como a última sequência do filme indica.
Talvez este curto interlúdio sirva para melhor compreendermos um contraste entre dois modos de «perder e achar objetos». Dadaísmo e surrealismo reivindicaram ambos uma «perda» de objetos para que eles pudessem ser «achados» – criados, recriados. No surrealismo, o objeto deve ser «achado» como objeto de desejo por meio de automatismo psíquico e outros dispositivos semelhantes. Para Duchamp o objeto deve ser «achado» como objeto da vida comum por meio de uma dupla negação a ser discutida mais adiante.
O objeto surrealista é como a Conchita de Buñuel: perdida como objeto de desejo que nos foi negado; a ser achada na nossa atividade inconsciente, em sonhos que expressam finalmente o inatingível. A psicanálise freudiana é aqui a melhor aliada. Em vez disso, Anna – a personagem de Antonioni – desempenha o papel de um readymade: perdida no sentido de objeto da vida comum que foi esvaziado na sua banalidade; impossível de se achar, exceto por meio de uma afirmação da diferença que implica uma estranha espécie de negação.
Quanto à ideia de Breton de «objet trouvé», não é necessária muita especulação a respeito. Isto porque seu texto ambicioso «Équation de l’objet trouvé», escrito originalmente para uma revista belga em 1934 (Documents 34), nos dá uma ótima ideal geral da questão. O texto funciona como uma sequência de dois esforços poéticos anteriores de Breton: Nadja (1928) e Vasos comunicantes (1932). Trata-se de uma meditação extraordinária sobre um tema surrealista essencial, do encontro e do «acaso objetivo» (que também é tema de Amor louco de 1937, onde o texto em questão será incluído depois). Breton narra o «encontro» de dois objetos: inicialmente uma misteriosa máscara, achada durante um passeio à feira de Clignancourt com seu amigo, o escultor Alberto Giacometti; em seguida, uma peça adquirida pelo próprio Breton, uma grande colher de madeira camponesa. Ele descreve os dois objetos, se questionando sobre a função de cada um deles e aproximando-os de uma escultura recente feita por Giacometti. Conclui então que tratar-se de um caso de «acaso objetivo», os objetos como símbolos dos sonhos ocultos de seus respectivos possuidores. O encontro dos dois objetos preenche a função do sonho na medida em que libera os indivíduos de afetos paralisantes.
Tudo parece bastante claro. O que foi «perdido» (negado) e deve ser «achado» (simbolizado) é um objeto de desejo. Ele fala de nosso inconsciente e pressupõe um sentido. É a situação de Conchita no filme de Buñuel Este Obscuro Objeto de Desejo. Ela provavelmente revela a impossibilidade para Mathieu de amar (sentido). Pouco importa. Em Nadja de Breton também, a ausência do objeto de amor oferece ao personagem André mais inspiração do que sua presença. Isto não significa um argumento sobre idealização do objeto nem é uma afirmação simplista acerca de uma suposta verdade do desejo como falta. Trata-se de um móvel para a criação. O desejo surrealista impulsiona a criação. E a ausência de Nadja se torna importante justamente por permitir que ela viva livremente na mente de André (em seus sonhos). Ela é recriada fora das fronteiras estritas que concebemos calcadas numa ideia da Nadja real. A palavra-chave para o surrealismo é sonho e não falta. O objeto achado é um objeto de sonho capaz de revolucionar a realidade por dentro. Não é á toa que o surrealismo foi revisitado fortemente durante as barricadas de 1968 em Paris.
Desde Nadja, Breton mostra uma obsessão por objetos que só podem ser achados em sonhos. O objeto surrealista é precisamente assim: um objeto de desejo, produto de um sonho. A colher achada por Breton simboliza um desejo recôndito e impulsiona a criação na medida em que faz parte de um sonho. Porém, é a afirmação de Breton de que qualquer destroço da vida comum ao nosso alcance deve ser encarado como um fundo de desejo que torna seus esforços convergentes com os de Duchamp. Conclui-se daí que fragmentos de objetos ou objetos sem uso merecem ser elevados à dignidade da obra de arte. Faz sentido dentro de uma lógica surrealista. Afinal de contas, todos os objetos podem corresponder a objetos de sonho. O mérito estético desses objetos reside nisso, no tanto quanto refletem desejos inconscientes e permitem sonhar.
Resta explorar mais detalhadamente os readymades de Duchamp, dentro desse mesmo contexto de «achados e perdidos». De início há uma situação paradoxal: eles são «achados» e «perdidos» sem nenhuma aparente transformação no meio, como simples objetos da vida comum, ao menos sem nenhuma segunda camada de significação a ser levada em conta. Nada parece oculto. Não há sentido para emergir. O que era esteticamente vazio permanece esteticamente vazio. Contudo, como sugerido acima, o gesto de Duchamp executa um estranho tipo de transformação invisível de ready-made para readymade, por meio de uma dupla negação. Que dupla negação? Por que é essencial pensar no readymade como um objeto verdadeiramente «achado»?
A Dupla negação
O objeto «perdido» de Duchamp nunca foi «perdido» como objeto de desejo. Nunca foi «elevado» a qualquer dignidade especial tampouco. Nunca foi intenção de Duchamp atribuir a seus readymades qualquer tipo de mérito estético: originalidade na escolha-gesto do artista ou raridade da peça encontrada, por exemplo.
Foi num ensaio curto e perspicaz («Sobre Duchamp», 1961) que o escritor mexicano Octavio Paz levantou a hipótese de uma dupla negação a fim de compreender melhor o que seria o readymade de Duchamp. Seria basicamente como uma faca de dois gumes, cortando, de um lado gostos estéticos e instituições de arte e, de outro, fronteiras. Sigamos o núcleo de sua argumentação para marcar a maneira singular pela qual a afirmação da diferença pode ser radicalizada como no meu exemplo final (a arte de Bispo do Rosário).
A primeira negação era evidente desde o começo, propensa a toda sorte de exageros e incompreensões diversas. Um readymade nega a arte, embora de modo bastante específico. Ele nega a arte enquanto esta perde seu caráter de evento, acabando por ser valorizada por conta de hábitos de gosto e convenções sociais – o readymade aparece, portanto, como criticismo ativo: «rejeição com desdém da obra de arte sobre seu pedestal de adjetivos»[8].
Paz está falando do gesto de Duchamp. O readymade é um objeto não-arte, como o próprio Duchamp declarou em vários momentos. Um gesto arbitrário – neste ponto Paz emprega um termo bastante inapropriado, «gesto gratuito» quando a escolha nunca é de um objeto qualquer gratuitamente (daí o paradoxo de ter que estar atento para encontrar o que nos é indiferente). De qualquer maneira, Paz acrescenta uma observação importante: o gesto arbitrário do artista converte objetos anônimos já prontos (ready-made) em «obras de arte» ao mesmo tempo em que dissolve a própria noção de obra. Esta contradição revela que readymades são objetos não-arte, mas não que são antiarte. Eles são an-artísticos.
Devemos provavelmente acrescentar outra observação a esta de Paz. Ao escolher um objeto anônimo para ser posto no museu ou numa galeria de arte, o artista pretende, finge ou desafia estar criando algo. Nos três casos a arte se faz presente. Na realidade Duchamp desafia, isto é, afirma algo importante sobre a arte e a vida. Não há antiarte em sua postura, ao menos não no sentido habitual de algo contra a criação. A questão é que a criação agora está deslocada, aparece como pensamento («eu estava interessado em ideias, não meramente produtos visuais»), ou se tornou jogo, ou é a própria vida. No máximo poderíamos dizer que é antiarte no sentido de politização dadaísta (a arte como forma morta).
A ideia de readymade é, portanto, essencialmente an-artística. Eis a primeira negação. Apesar da obviedade dessa compreensão, ela permanece essencial; caso contrário, as pessoas podem voltar a insistir na busca das qualidades sensíveis de um readymade quando a questão é precisamente oposta a essa: como desviar a atenção dessas qualidades. De resto, como Paz conclui, os readymades não postulam nenhuma tábua de valores. Não há um programa para as artes, nem manifesto, nem mesmo uma tese oculta sobre a história da arte em sua totalidade. Duchamp não é hegeliano.
Em suma, a primeira negação é uma ação crítica. Segundo Paz, ela pode ser dividida e apresentada em duas fases: limpeza intelectual (crítica do gosto) e, como corolário, ataque à própria noção de obra (a questão da artisticidade). Caminhamos da esfera da recepção até a da criação. Estética e poética. Um gesto para o espectador outro para o artista. Um para Kant e outro para Aristóteles.
O ataque de Duchamp ao conceito nominal de arte não é tão violento quanto tantos outros, antes ou depois dele. Mas se provou mais efetivo. Paz argumenta que este segundo estágio de ataque (crítica da arte) acaba sendo um ataque ao equipamento da arte. Este «equipamento» se revela insignificante. Talvez seu argumento aqui seja rápido demais. O que Paz quer exatamente dizer com insignificância?
A questão gira em torno do problema controverso e incontornável da forma como meio pelo qual a matéria se torna matéria de expressão nas artes. A «arte retiniana» denunciada por Duchamp é baseada, em última instância em clichês no sentido mais radical do termo. Como Gilles Deleuze explica em sua fascinante leitura de Bergson[9], um clichê é uma imagem sensório-motora de algo, sempre parcial, baseada no que precisamos, queremos ou podemos suportar. Em suma, nunca compomos uma imagem das coisas em sua totalidade. Nesse sentido, Duchamp está, grosso modo, apontando para o fato de que a arte se tornou pobre porque distante demais, concentrada na retina, formal – a arte como domínio de clichês. Do lado da recepção: formalismo, ou seja, baseada em estratégias fixas, preocupada demais em produzir certos tipos de efeito.
Basta pensar nos dias de hoje, um século depois de Duchamp, para nos darmos conta da atualidade de seu questionamento. De qualquer modo, um novo paradoxo emerge aqui: a arte, que vem para contestar os clichês se tornou, ela própria, o reino dos clichês; parece necessário romper com este esquema estético sensório-motor por meio de um tipo diferente de clichês (o readymade). Na realidade, em qualquer era dominada por clichês é sempre necessário lançar mão de procedimentos como o de Duchamp. Para usar a terminologia de Paz novamente: na medida em que os equipamentos artísticos se tornam insignificantes e as técnicas formais demais (separadas da expressão), o pensamento é posto de lado e se torna incapaz de questionar nossos hábitos de gosto.
Quais os resultados da tendência retiniana atacada por Duchamp? Ora, tal redução da arte à sensação acaba por se revelar conservadora e soa complacente demais com a hierarquia social implícita no domínio das artes. Aqui Duchamp também nos auxilia a antecipar um importante tema da sociologia da arte de Pierre Bourdieu (uma crítica da ideologia carismática da criação, como em As Regras da arte). Todavia, é a segunda negação discutida por Paz que importa principalmente para os meus interesses neste artigo. Ela diz respeito às questões da neutralidade e do anonimato: «não apenas o gesto, mas o próprio objeto é negativo»[10].
A neutralidade e o anonimato definem o objeto, sua nova natureza. De acordo com Paz, o readymade confronta a insignificância formalista das artes com sua neutralidade, sua não-significância. Como assim? Uma vez tirado do seu contexto original, o ready-made subitamente perde toda a significância. Ele se converte num objeto que existe numa espécie de vácuo. Trata-se do vácuo de estar fora de lugar. Por um lado, o ready-made habita o território das artes, mas aparece identificado como pertencente a outro domínio. Ele foi «achado» como objeto da vida comum cotidiana dentro do museu apenas como mais uma provocação dadaísta. Nosso senso comum não se cansa de repetir esse discurso. Por outro lado, entretanto, o ready-made não pode ser «achado» ali. Ele se tornou readymade. Ou, nas palavras de Paz: «o ato de Duchamp arranca o objeto de sua significância e o cria uma casca vazia: um porta-garrafas sem garrafas»[11].
Nosso senso comum deve prestar muita atenção a isso: vacuidade. Estamos enfim lançados de volta à minha linguagem de «achados e perdidos». O readymade está fatalmente «perdido» no sentido de esvaziado (como a Anna do filme A Aventura de Antonioni): um porta-garrafas sem garrafas, Anna sem nenhuma conexão com Sandro. O readymade deveria ser «achado» como fora de lugar («ei, não pertenço a museus e sim a despensas»). Da mesma maneira Anna: «perdida» como mulher de Sandro que infelizmente desapareceu durante um passeio ela deveria ser «achada» como esposa desaparecida. No entanto, as coisas não funcionam assim. Nem o porta-garrafas está no museu esperando garrafas nem Sandro pode achar ou substituir Anna. O porta-garrafas permanece lá e ninguém deve colocar uma garrafa nele. O desejo de Sandro permanece perdido e Claudia nada pode fazer para ajudá-lo.
Para que um ready-made seja «achado», ele deve passar real e completamente por um processo de dupla negação. Ele deve se tornar readymade. Paz observa que a perda de significância do objeto (ready-made) e sua queda no vácuo (readymade) não dura muito tempo: «tudo aquilo com que o que homem lida tem a tendência fatal de secretar sentido. Dificilmente os objetos não são reinstalados numa nova hierarquia»[12]. Daí a necessidade de «retificar» o ready-made /readymade injetando bastante ironia a fim de preservar anonimato e neutralidade. A arte deve manter um estado de revolução permanente para continuar a resistir ao hábito e a institucionalização para se tornar arte.
Chamemos a mudança na natureza do objeto (a segunda negação de Paz) de «transformação invisível». A arte não é beleza, fascinação ou o quer que seja sem ser, antes de tudo, resistência ao aprisionamento da vida em modelos morais e políticos de sensibilidade. Anonimato e neutralidade têm um papel fundamental para manter essa resistência. Além das «retificações», sem as quais a ideia de readymade perde a capacidade de assegurar anonimato e neutralidade. A arte está sempre em perigo. É de sua natureza. Duchamp sabia disso. Artaud também.
O caráter anônimo afirmado por meio da segunda negação promovida por Duchamp ajuda a nos levar para fora do já excessivamente batido debate sobre a assinatura do artista. Um artista transforma algo em arte ao assinar a coisa. Já sabemos disso. Parece não haver dúvida quanto a isso. Como Paz admite, o objeto é anônimo, mas quem o escolheu não é. É o gesto de assinar que está em jogo. O público pergunta, pretensamente procurando pelas habilidades típicas do artista: «quem produziu esta obra?». É o velho argumento de autoridade – ad hominem.
Mas não se trata aqui já de um segundo gesto?
Sim, porque o gesto que conta não é o gesto de assinar, mas sim o gesto de selecionar, de «criar» o readymade. O ponto-chave aparece com a excelente comparação feita por paz entre dois tipos de assinatura:
«Roger Caillois observa que certos artistas chineses selecionavam pedras porque as achavam fascinantes e as transformavam em obras de arte pelo simples ato de gravar ou pintar seus nomes nelas. (...) [O artista chinês] inscreve seu nome na peça de criação e sua assinatura é um ato de reconhecimento. Duchamp seleciona um objeto manufaturado; inscreve seu nome como um ato de negação. Seu gesto é um desafio.»[13]
Há, no primeiro caso, a assinatura da pessoa que «sabe», que «tem gosto» para selecionar. Ele é tido como autorizado a escolher o objeto; um expert em readymade. Mas há uma assinatura em que o gosto não desempenha papel nenhum. Ela desempenha apenas um papel institucional. Num artigo escrito há trinta anos («O núcleo do minimalismo», 1987), o crítico de arte Hal Foster enfatizou esse aspecto para sustentar um argumento sobre uma ruptura essencial entre a arte modernista tardia que preparou a «arte pós-modernista». Felizmente ele vai muito além. Foster reconhece uma maneira de ver que faz do que ele chama vanguarda transgressora (dadaísmo de Duchamp, construtivismo russo etc.) um retorno ao modernismo, apesar de seu aparente preconceito sobre o modernismo, arbitrariamente associado aos esforços formalista de um crítico como Clement Greenberg[14].
Podemos concordar com Foster e dizer que a natureza institucional da arte foi amplamente exposta por Duchamp. Mas o anonimato significa muito mais do que isso. Ele caminha de mãos dadas com a neutralidade. Um objeto anônimo no museu significa antes de qualquer coisa que nossos gênios juntamente com seus objetos são menos importantes do que aquilo que jaz além deles. E o que jaz além deles? A relação com o mundo, com a natureza, com o cosmos, com a vida. O anonimato serve para neutralizar os espaços já codificados e demarcados demais (Deleuze e Guattari diriam «territorializados» demais)[15].
Assim, se a presença dos readymades de Duchamp num museu de arte parece «nonsense» de mau gosto, isto se dá precisamente porque sua função é negativa para além do institucional. É claro sua presença ali é importante e legítima na medida em que desafia nossa percepção e o museu, curadores e todas as instituições associadas. É a primeira negação de Paz: limpeza intelectual (crítica do gosto) e ataque à própria noção de obra (crítica da artisticidade). Entretanto, o anonimato e a neutralidade desafiam as fronteiras prático-existenciais muito mais do que gosto e fronteiras institucionais. Na realidade, os readymades merecem estar na saída ou na entrada dos museus como lembretes de um fora relacionado com os próprios objetos, com nossa relação cotidiana diante deles.
Voltemos aos termos de Paz sobre o gesto de Duchamp como gesto de seleção e não como simples gesto de assinatura. Um objeto é selecionado; o nome de Duchamp é inscrito como ato de negação; o gesto é um desafio.
As instituições foram desafiadas. Mas parece haver muito mais em jogo no gesto seletivo de Duchamp. O novo desafio é o seguinte: a arte encontra seu próprio fora, não mais apenas a natureza ou mesmo nosso maravilhoso mundo de objetos úteis e de consumo. A arte encontra o seu limite. O readymade escavou um espaço entre o mundo da arte e a vida comum cotidiana. Trata-se de uma faca de dois gumes como Paz afirma: «se transformado em obra de arte ele estraga o gesto por profaná-la; se preserva sua neutralidade, ele converte o gesto em obra»[16]. Ou nas minhas próprias palavras: coloque no museu junto a outros objetos artísticos e o readymade perde sua potência de questionar os limites; mantenha o objeto neutro e ele se torna arte. Duchamp, o mestre dos paradoxos.
É nesse ponto que Paz parece cometer um equívoco, talvez por conta de seu modo de singular de ver a arte. De fato. Não é fácil fazer acrobacias com facas. Segundo ele, visto como jogo dialético ou meio de purgação, o readymade não seria realmente artístico afinal de contas, mas uma arte de liberação interior. Budismo mesmo.
Mas por que isso? Não seria justamente o contrário? Por escapar as categorizações, nem arte nem objeto comum da vida cotidiana, o readymade não seria capaz de questionar todas as fronteiras fora/dentro? E ele não seria artístico novamente e precisamente – a fortiori inclusive – devido a isso? Não uma liberação interior, mas sim arte no sentido de uma liberação tanto de exterior quanto do interior, tanto de sujeitos quanto de objetos, de artistas e museus.
Atos artísticos consistem finalmente em desafiar fronteiras e limites. O readymade de Duchamp pode então surgir como virtual no sentido da filosofia de Gilles Deleuze ou mesmo como transicional no sentido da psicanálise de Donald Winnicott. O readymade não possui valor como objeto comum da vida cotidiana atual, mas tampouco tem valor como objeto de um mundo possível criado pelo simbolismo artístico. Seu real valor reside noutro lugar, num terceiro domínio, nem atual nem meramente possível – Deleuze. O readymade traça um novo mapa, uma terceira área que não pertence nem ao território das artes nem ao território da vida cotidiana enquanto tal, embora contribua para ambos os mundos. Trata-se de um objeto capaz de manter a realidade de dentro e de fora separados e, no entanto, relacionados – Winnicott.
Virtualidade e transicionalidade: de Duchamp a Bispo do Rosário
O desconcerto da maioria dos amantes da arte em nossos dias contra o fato inegável de que quase tudo pode ser e tem sido chamado de arte durante os últimos cinquenta anos é bem conhecido. Um livro inteiro (O Objeto contingente da arte contemporânea, Martha Buskirk, 2003) foi escrito a partir desta estranha e interessante situação. Um dos artistas responsáveis por isso – provavelmente ao lado de Andy Warhol – é, sem dúvida, Duchamp. Os danos causados por sua invenção de readymades ainda permanecem. Mas estes danos não são certamente os do argumento simplista de nosso senso comum – que afirma que a noção de arte foi estragada, pois o campo das artes se tornou domínio de qualquer coisa –, mas sim político-institucional, conforme enfatizado por um filósofo contemporâneo (A Crise da arte contemporânea, Yves Michaud, 1997).
É a morte de uma utopia, que Michaud denomina a utopia kantiana, utopia estética de um acordo entre consciências. O dano real está na vontade de cumprir a utopia ou fingir-se fiel a ela a fim de encontrar justificativas para nossas escolhas de arte no nível institucional:
«Quaisquer que sejam as tentativas de contrariar a desilusão, a utopia está de fato morta (...). Sua morte corresponde ao fim de certa representação da arte e de certa crença na arte. Já é uma morte antiga. Quando se pensa apenas um pouco, é até estranho que velhas crenças tenham tanta influência; (...) que alguns ousem fazer como se a Fonte de Duchamp pudesse gerar o consenso estético das consciências! Quem acredita nisso por um minuto e de quem eles zombam?»[17]
Entretanto, o alto preço político-institucional a ser pago pela revolução de Duchamp parece valer a pena. É um preço em prol da diferença, tanto na arte quanto na nossa experiência cotidiana de objetos, éticos e políticos – embora em outro nível, micropolítico, uma vez que trata de nossas conexões entre a vida e as criações sociais humanas. No mundo da arte, uma mudança importante certamente ocorreu. O artista não reivindica o ofício ou seu trabalho hábil como chave para sua arte. Consequentemente, uma atitude diferente é solicitada ao espectador após esta mudança na tarefa do artista.
Como Buskirk observa ao longo do seu livro, os readymades de Duchamp estabeleceram um novo modelo de autoria artística (na verdade, um não-modelo), um «modelo» em que a unidade formal não deve mais desempenhar papel algum. Desta maneira, sem o fantasma da unidade formal, as obras de arte podem encontrar seu novo espaço artístico em termos de criação de eventos, afirmação da diferença, tanto no sentido de que todo e qualquer objeto é potencialmente arte quanto no sentido de uma re-intensificação da nossa experiência de vida com nosso meio e seus objectos.
O espectador foi trazido de volta à cena artística numa mudança política, talvez um último golpe na idade «aurática» da arte, mas em um sentido diferente de Walter Benjamin («A Obra da arte na era de sua reprodutibilidade técnica», 1936). De qualquer modo, o cenário é novo: pelo menos no domínio das chamadas artes visuais, onde mãos e retina não são mais aceitas como capazes de subordinar a experiência artística. A consequência é uma abertura para novas manifestações e diferentes participações. «Como a noção tradicional de habilidade do artista foi desviada para uma profusão de diferentes tipos de manifestações, as obras produzidas convidam agora o espectador, literal ou imaginativamente, a ocupar as posições desocupadas pelo artista».[18]
Como dito no início deste artigo, o readymade é um evento. Os readymades de Duchamp permanecem como parte da história – eis a razão pela qual é um «nonsense» de mau gosto incluí-los no meio das obras de arte que aspiram a um lugar no mundo da arte. O readymade pode permanecer lá, claro, mas em uma sala específica para objetos fora do lugar. O que realmente importa é a ideia de readymade. Vamos deixá-lo o mais claro possível: os readymades não foram uma fase na carreira artística de Duchamp. São menos ainda um tipo de arte que ele inventou. Foram eventos que causaram uma transformação invisível por meio da dupla negação discutida acima. Eles permanecem como um convite para novas experiências na mesma direção, isto é, para gestos ou atos criativos capazes de abrir uma brecha através da qual a arte e a vida cotidiana encontram seus limites.
Depois de Duchamp, não há mais dialética entre mundo da arte e vida cotidiana, por meio da qual nosso senso comum pode desprezar as artes por sua estranheza e o artista pode desprezar a vida cotidiana por ser banal ou sem glamour. Um novo espaço surgiu, um espaço que se poderia denominar virtual num uso livre do conceito criado por Gilles Deleuze.
O virtual de Deleuze abre campo para uma alternativa no quadro filosófico clássico que concebe a existência como realidade decorrente de possibilidades. Como o filósofo francês mostra em seu difícil Diferença e repetição, sempre permanece uma quase oposição entre possível e real que arruína nossa compreensão da diferença. E o que entendemos por «novo» acaba reduzido a nada senão uma atualidade relativa a uma atualidade anterior, dentro de uma linha contínua de eventos sucessivos. Basta pensar na história da arte como uma sequência de «melhorias» e «legados».
A virtualidade deleuziana nunca está separada da atualidade como no caso de real e possível de toda uma tradição. Ela nunca se opõe à atualidade como em nosso entendimento comum da palavra: virtual como mero possível ou simulado. O virtual é totalmente real, não faltando nada a ele (nada parecido com o pejorativo «isto é apenas possível»). Desenvolve-se não como num processo de realização, mas num processo de atualização – atual em termos de estável, como estado de coisas possuindo qualidades determinadas. Esta é a primeira diferença fundamental entre possível e virtual. Todo tornar-se como vinda à existência é um processo contínuo e descontínuo. Não merece ser concebido como um salto repentino, embora seja algo que sempre transbordando. Deve haver uma clara diferença entre existente e inexistente. Este não deve ser colocado como redutível a algo «menos real», uma mera possibilidade. Ele simplesmente não é (é inexistente) enquanto o existente é algo, mas aqui como uma realidade habitada pela virtualidade.
Assim é o readymade: objet trouvé, objeto atual, mas não «achado» como objeto atual da vida cotidiana ou como possível objeto artístico (de sonho), como no caso dos objetos surrealistas. Trata-se de um objeto atual indiferente enquanto tal, impossível de se achar, ou «achado» apenas como virtual.
Segundo ponto, mas essencial ainda de acordo com Deleuze: se o chamado «possível» ainda tem de se tornar real, ele se mantém como mera imagem da realidade, copiada desta, tornando o novo impensável como novo em sua forma própria. O possível fica apenas como uma cópia degradada do chamado real. O virtual, por sua vez, é a realidade que permanece invisível, neutra. Ao realizar uma transformação invisível de um ready-made em readymade, Duchamp aponta para um mundo virtual onde os mundos da arte e a vida cotidiana já não podem ser reconhecidos e algo novo em sua própria forma pode emergir. Como Deleuze afirma, é no processo de atualização que se pode encontrar um verdadeiro processo de gênese (ou de criação) uma vez que os limites não estão mais dentro dos estreitos limites de nossos conceitos. Um processo de gênese digno deste nome só ocorre com a criação de linhas divergentes correspondentes a múltiplas situações virtuais[19].
Esta segunda característica do virtual é essencial para compreender o que vejo como consequências ou implicações do readymade. Elas aparecem nas obras do artista brasileiro «brut» Arthur Bispo do Rosário.
Bispo do Rosário foi um artista brasileiro que iniciou seus trabalhos depois de internado em um asilo no Rio de Janeiro (Colônia Juliano Moreira), no final da década de 1930. Diagnosticado como «esquizofrênico-paranóico», ele viveu lá por cerca de cinquenta anos. Durante sua longa permanência na instituição psiquiátrica, Bispo do Rosário pôde criar centenas de obras de diferentes tipos de materiais coletados («achados») em torno do asilo e em seu pátio. Estas obras eram destinadas a marcar a passagem de Deus na Terra, reencarnado no próprio Bispo do Rosário como Jesus Cristo. Quando perguntado sobre suas escolhas em termos de artesanato, Bispo do Rosário disse que lhe foi dito por vozes do além para fazer daquele modo. Sua «missão» seria uma reconstrução e / ou uma «re-apresentação» do mundo a Deus no Dia do Juízo Final.
A obra mais conhecida de Bispo do Rosário é precisamente o Manto da Apresentação, que ele pretendia usar no Dia do Juízo Final. Mas a maioria de seus temas inclui objetos domésticos e relacionados à navegação (Bispo do Rosário esteve na Marinha durante sua juventude).
Um dos maiores obstáculos para uma análise da arte de Bispo do Rosário reside na terrível névoa que nosso senso comum frequentemente deixa pairar em torno de pessoas (artistas, filósofos, etc.) em casos de chamada loucura. O que quero dizer é simples até certo ponto. Nossa estupidez tende a dominar todas as análises sempre que encontramos algo chocante ou escandaloso sobre o que deve ser compreendido. A doença mental é um caso claro de algo chocante. Bispo do Rosário experimentou alucinações, perambulou pelas ruas do Rio, dirigiu-se a uma igreja e a um mosteiro para finalmente anunciar que era Jesus, encarregado de julgar os vivos e os mortos. Em suma, ele estava (ou ficou) louco. Depois de uma biografia assim tão curta, o próximo passo seria tentar explicar sua arte em termos de sua doença, como se as ações das pessoas fossem uma projeção de um estado de espírito. Há na realidade duas tarefas a realizar quando se decide abordar a difícil relação entre arte e loucura – tarefas a ter em mente em qualquer tentativa de dar sentido às relações entre as criações das pessoas em sua vida cotidiana. O primeiro é recusar tão positivamente quanto possível uma compreensão das obras de qualquer artista em termos de seu estado mental ou comportamento comum. Em seguida, também é importante evitar separá-los, como se pertencessem a dois mundos diferentes.
Aqui também, novamente, a operação de readymades de Duchamp se mostra instrutiva. Não há fronteiras prévias entre arte e vida. Nunca se sabe exatamente onde as duas esferas começam e terminam em relação umas às outras, o ready-made e o readymade, por exemplo. É sempre necessário acompanhar a tensão, permanecer em suspenso, neutralizado, evitando tirar conclusões precipitadas.
Uma segunda dificuldade para abordar a arte de Bispo do Rosário gira em torno do próprio tema deste artigo, a saber, a questão da nova relação que o readymade é capaz de estabelecer entre objetos cotidianos reconhecíveis e nossa realidade depois que se tornam arte (readymades). Afinal de contas, é claro que a transformação geral provocada com o readymade de Bispo do Rosário é bem diferente da invisível transformação indiferente de Duchamp. Seria tolice sustentar que os readymades de Bispo do Rosário seguem ou confirmam a noção duchaniana como um novo estilo no campo das artes. O aspecto bruto de suas obras é essencial para evitar essa linha de interpretação sobre o que um readymade é ou pode ser. A história da arte não tem entrada aqui. Primeiramente, porque é impossível afirmar que Duchamp poderia ter influenciado o Bispo do Rosário. Ele não conhecia Duchamp. E, em segundo lugar, porque ele nunca pertenceu ao mundo da arte em geral. Ele não podia estar preocupado com estilos ou escolas.
Os readymades de Bispo do Rosário e os criados por Duchamp operam de maneiras completamente diferentes. A questão é: por que então nomear os objetos de Bispo do Rosário readymades? Simplesmente porque Duchamp e Bispo do Rosário operam o mesmo tipo de transformação, embora com seus respectivos objetos diferentes. Trata-se sempre, em ambos os artistas, de «achar» objetos da vida cotidiana sem lhes atribuir qualquer significado secundário. Os readymades de Duchamp e os readymades «brut» de Bispo do Rosário são objetos da vida cotidiana que foram «perdidos» e não podem ser «achados», ou que só podem ser «achados» como «perdidos», como Anna, personagem de Antonioni em A Aventura.
Tudo se passa como na aproximação que Deleuze faz entre seu objeto virtual e dois objetos célebres da psicanálise: o objeto parcial de Melanie Klein e o objeto pequeno a de Jacques Lacan[20]. A «condição alienada» de Bispo do Rosário também torna útil uma tradução da situação em termos psicanalíticos, conforme procurei fazer com o objeto surrealista.
Segundo Deleuze, a parcialidade em Klein está longe de significar «falta de totalidade». Isto porque a «parte subtraída» (o seio materno, por exemplo, no caso de uma criança) é «arrancada» para adquirir uma nova natureza. Um objeto parcial é parcial em si mesmo, por si mesmo, criando uma nova realidade: «seio bom, seio ruim». Esta divisão já indica uma conquista da autonomia diante de uma ordem natural pressuposta. Quanto a Lacan, as coisas são um pouco mais complicadas porque seu célebre objeto a representa o objeto do desejo como inatingível, imaginário, de uma maneira quase surrealista. É a Conchita de Buñuel mais uma vez, «achada como inatingível». No entanto, se o objeto virtual é separado da série de objetos reais – seguindo a lógica lacaniana – não é no sentido de uma expressão do desejo como falta. Ele é separado da série de objetos como na arte de Bispo do Rosário, em última instância porque necessita de uma nova reincorporação, de uma reinserção prático-existencial no mundo.
Para sermos honesto, a questão de ser ou não ser alcançado não pode ser um problema, porque não há nenhum significado sob os objetos. Um readymade é achatado. Está ali sem precisar chegar a lugar algum. Era o caso já em Duchamp. Não é o caso de Breton. Além disso, o real não é impossível para o desejo, como formulou Lacan; ele deve ser produzido numa dimensão prático-existencial. Assim nas artes.
Mas Deleuze vê a teoria de Lacan como útil porque contém o evidente segredo do readymade: sempre sem identidade, roda de bicicleta com um banquinho em vez de bicicleta, porta-garrafas sem garrafas... Que identidade têm esses objetos senão virtual?
Apesar de suas diferenças, os objetos de Duchamp e Bispo do Rosário podem ser considerados readymades uma vez que só podem ser «achados» como «perdidos», como faltando ao seu próprio lugar: o lugar da vida cotidiana. É como no conto A Carta Roubada de Edgar Allan Poe. Eis o que realmente importa: a carta de Poe ou o ready-made da vida cotidiana como fora de lugar, removido pelos personagens do famoso conto, por Duchamp para entrar no museu, ou por Bispo do Rosário para ser (re)apresentado no Dia do Juízo Final para Deus. Todavia, seguindo um argumento importante apresentado por Jacques Derrida («O Provedor da Verdade», 1975) logo após Lacan, não se trata exatamente de um problema de falta de identidade ou sentido. Pode ser muito mais simples. O sentido não está faltando. O sentido é falta[21]. Não no desejo. Não é um caso de brincadeira com as palavras sem ser, antes, uma confirmação do segundo aspecto do virtual de Deleuze. Um espaço foi escavado entre «perdido» e «achado» para que o novo possa emergir onde falta, numa re-atualização do mundo da arte e da vida cotidiana. O significado é a falta de sentidos sem investimento afetivo sobre o que se pretende que faça sentido.
Os ready-mades da vida cotidiana foram retirados de seu mundo real para se tornarem objetos virtuais. Mas eles não são objetos de desejo sem serem, primordialmente, objetos práticos da vida cotidiana. No caso de Duchamp, eles não são objetos de desejo de modo algum. Daí a indiferença que devem provocar. O caso permanece aberto para Bispo do Rosário.
Em todo caso, há pelo menos duas diferenças muito importantes e decisivas entre os readymades de Duchamp e os de Bispo do Rosário. Em primeiro lugar, Duchamp faz com que os ready-mades se «percam» no museu, criando a situação de «fora do lugar» enquanto Bispo do Rosário simplesmente constata que os objetos estão «perdidos» neste mundo porque toda a terra vai ser arrasada pelo fogo[22]. Consequentemente – e esta é a segunda diferença fundamental –, os ready-mades de Bispo do Rosário não devem ser «achados» exatamente como «perdidos», apenas fora de lugar, como era o caso na arte de Duchamp. Eles passam por um processo de gênese com a criação de linhas divergentes, e isto na medida em que devem ser montados e preparados.
Os readymades de Bispo do Rosário são de fato «achados» porque são ligeiramente remades, embora não no sentido de Andy Warhol e de outros artistas pop. É uma refeitura no sentido de reunião e classificação porque os objetos vão ser apresentados no Dia do Juízo Final. Como dissemos acima, essa seria a missão de Bispo do Rosário, e ela é repetida pelo menos duas vezes, numa entrevista e no importante filme sobre o artista realizado por Hugo Denizart (O Prisioneiro da passagem, 1982):
«ENTREVISTADORA – O senhor pode me falar dessa missão?
BISPO DO ROSÁRIO – Minha missão é essa, conseguir isto, o que eu tenho para no dia próximo, eu representar a existência da Terra que taí, tudo que eu fiz.
(...)
DENIZART – E essas miniaturas são representações?
BISPO DO ROSÁRIO – É o material existente na Terra do uso do homem.
DENIZART – É uma representação de tudo o que existe na Terra?
BISPO DO ROSÁRIO – É, são trabalhos que existe.»[23]
Parece que a negação já não é dupla no caso de Bispo do Rosário. A transformação deixa de ser invisível também. Bispo diz que lhe foi dito de «representar» a existência das coisas na Terra, o que implica que seu gesto não pode mais ser negativo. Os objetos cotidianos não são coletados com base em sua indiferença como no caso de Duchamp. Mas é importante muita atenção aqui. Os objetos não são coletados por sua beleza ou em razão de um valor especial qualquer. Eles permanecem objetos cotidianos. Em suma, o gesto não é negativo. Afinal de contas, Bispo do Rosário tem uma missão. É o gesto de uma missão. Porém, seus objetos são negativos no mesmo sentido do anonimato e neutralidade sublinhado por Octavio Paz.
No entanto, mesmo o anonimato tem um sentido um pouco diferente na arte de Bispo do Rosário, como o recente artigo citado acima, publicado por dois psicanalistas, ajudou a deixar claro («Bispo do Rosário e a representação dos materiais na terra», Corpas & Vieira, 2012). Conforme concluem os autores, o trabalho de Bispo do Rosário surge da dinâmica delirante de sua mente, mas é isso que lhe permite estabelecer um vínculo com o ambiente cultural. É o que lhe dá esse acréscimo de vínculo social parcialmente quebrado após seu surto psicótico[24].
Os readymades «brut» de Bispo do Rosário mantêm a característica neutra de Duchamp porque não pertencem mais a nenhum mundo artístico nem à vida cotidiana. Por um lado, eles existem numa zona liminar, nem arte nem vida como domínios autônomos. Por outro lado, também são objetos anônimos, completando uma negação, mas apenas até certo ponto porque, afinal, há uma obra de montagem e preparação – a missão de «re-apresentação». O anonimato é, portanto, relativo: vale para os objetos, mas este ainda precisam ser apresentados novamente (re-apresentados), o que requer alguém adequado para a tarefa. Esta posição adequada não restabelece um gesto negativo. Os readymades de Bispo do Rosário constituem uma única negação. Gosto ou instituições não têm mais qualquer importância. Não há necessidade de negação nesse nível. É precisamente o segundo mérito do artigo de Corpas e Vieira.
Como os autores conseguem mostrar, a ideia difundida sobre a obra de Bispo do Rosário de que se trata simplesmente de uma reconstrução do mundo, acaba por perder de vista o cerne de seu trabalho, que é mostrar, introduzir ou apresentar novamente a criação de Deus. Portanto, seus readymades devem ser pensados dentro de um processo de gênese ou de recriação radical. Eles são um mundo que vem a ser de forma concreta, não como mera metáfora.
O trabalho de qualquer artista implica a criação de um mundo, que nos permite rotular as atmosferas da vida cotidiana: armadilhas kafkianas no domínio de nossas instituições, tipos fellinianos que imitam a realidade (como o famoso Paparazzo). E assim por diante. Com Bispo do Rosário, este processo torna-se claro como nunca antes dele. É o segundo aspecto do virtual de Deleuze mencionado acima: os limites da arte e da vida se dissolvem, suas linhas convergem para alcançar divergência, isto é, os objetos domésticos ou o manto da apresentação são e não são apenas objetos domésticos e uma capa para vestir. É um complemento diferente para Duchamp. Os readymades são agora para serem usados, mas com um novo propósito. Eles são criados ou tirados da vida cotidiana para serem re-apresentados, re-investidos, re-intensificados para uma vida melhor, após o Dia do Juízo Final.
Os readymades de Bispo do Rosário escavam a mesma zona de vácuo dos readymades de Duchamp, mas estão conectados com o exterior como espaço potencial. Em suma, os dois exteriores, próprios da arte e da vida, estão imediatamente ligados a uma dimensão prático-existencial, a uma nova vida (para Bispo do Rosário, uma vida após a morte), uma vida nova em sua própria forma, como na compreensão de Deleuze do que o novo é.
Chegamos finalmente a um novo paradoxo entre tantos. Ainda me lembro das reações frias de pessoas em uma das primeiras exposições das obras de Bispo do Rosário no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro: «isso não pode ser arte, afinal de contas, tudo isso são apenas objetos sem intenção artística».
Uma dupla acusação: não só a clássica, geralmente levantada contra Duchamp ou Warhol, de «meros objetos», mas a intelectual e historicista, que exige um lugar e uma intenção para justificar o que a arte pode ser. Mais uma vez, é claro que a fórmula/solução «um objeto comum elevado à dignidade de uma obra de arte pela mera escolha de um artista» não pode se aplicar aos readymades. Trata-se, isto sim, de um rebaixamento à maneira de Manoel de Barros, um rebaixamento capaz de desafiar o esteticismo em nome de uma «elevação» prático-existencial do ínfimo. É a vida elevada como um espaço potencial para um novo mundo enquanto se espera o Dia do Juízo Final. Sem dúvida, o «dia do juízo final» é metafórico aqui. Representa todos os pontos de viragem que uma vida pode suportar.
No entanto, o artigo de Corpas e Vieira sobre Bispo do Rosário perde o foco na medida em que a análise avança. É quase sempre assim quando se trata de psicanálise. Depois de sublinhar as vantagens, ou mesmo a necessidade, de tomar literalmente as palavras de Bispo do Rosário sobre «representar os materiais existentes na terra»; depois de ter mostrado que representação no caso não tem qualquer significado mimético... o que acontece? Os autores parecem tropeçar. Primeiramente, argumentando que o termo «representação» indicaria que se trata de algo não dirigido somente a Deus, mas à sociedade toda, quando o mais importante não é isso e sim é a ideia de apresentação. Em segundo lugar, o que é muito mais sério e estraga o trabalho dos psicanalistas, ao interpretar a arte de Bispo do Rosário em termos de um compromisso, de uma saída de último recurso face à loucura.
Ora, é evidente que a psicanálise tem muito a dizer quando se trata da arte de Bispo do Rosário. Afinal, estamos lidando com um caso extremo de atividade inconsciente da criação. Mas por que uma afirmação tão reativa como esta: «por ter sido incapaz de estabelecer um delírio estável unicamente por meio desta recriação imaginária de si, Bispo recorreu à produção de objetos que vinham sustentá-lo»[25]?
Tal hipótese e interpretação são inaceitáveis. Atenta inclusive contra todo o objetivo do artigo, que reivindica na mesma página não estar interessado em tratar o delírio como patologia[26]. Mas a tentação é sempre forte demais toda vez que a psicanálise tropeça e assume o estranho papel de uma tentativa científica de regular nossos conflitos internos.
Felizmente, não tem que ser assim. Encontramos nos trabalhos de outro psicanalista (Donald Winnicott) uma saída para essa verdadeira febre psicanalítica de pulsões, descargas, defesas, ajustes etc. Com Winnicott, o mapa de fundo de nossas conexões vem primeiro e acima de tudo. Todos os objetos estão lá, no meio do mundo. Só precisam ser agenciados. Todos os impulsos se desenvolvem nesta base de uma pluralidade de objetos. É neste terreno que devemos colocar os nossos pés em qualquer análise. Consequentemente, acabou por se considerar Winnicott pertencente a uma nova tendência da psicanálise: a moda das relações objetais.
É claro que vai muito além de minhas ambições fornecer aqui uma visão geral minimamente exata para uma questão tão difícil. Basta esclarecer uma coisa antes de fechar este texto: a terminologia das relações de objeto ainda soa vaga, além de não ser capaz de revelar a extensão da originalidade de Winnicott (eu preferiria falar sobre a tendência ambiental-transicional-desenvolvimentista). De qualquer forma, é importante deixar o contraste aqui estabelecido tão claro quanto possível com o auxílio de uma das primeiras tentativas mais consistentes de dar sentido à tendência das chamadas relações objetais.
Assim, um livro de Greenberg e Mitchell (Relações objetais na teoria psicanalítica), de 1983, ataca Winnicott por uma leitura sistematicamente equivocada de Freud e conclui: «À medida que seu trabalho se desenvolvia (...) tornou-se aparente que Winnicott estava propondo não uma extensão e sim uma alternativa à abordagem de Freud. Ele oferece uma estrutura para a compreensão da psicopatologia que, firmemente enraizada no modelo relacional, está em desacordo com as formulações clássicas baseadas nas pulsões e nas defesas»[27].
O contraste descrito acima torna perfeitamente compreensível a interpretação depreciativa de Corpas e Vieira sobre uma «representação dos materiais existentes na Terra» de Bispo do Rosário como último recurso diante da sua incapacidade de se recriar para além de uma estrutura imaginária. Afinal, os autores inscrevem seus esforços na abordagem de Lacan sobre a psicose, a qual, em última análise, gravita em torno da mesma unidade e órbita das pulsões e defesas; um mundo onde reina um narcisismo fundamental e onde são nossas relações com os outros que necessitam explicação e não o nosso desenvolvimento dentro de um ambiente.
Pouco importa. Com Winnicott, os objetos lunáticos de Bispo do Rosário podem finalmente se tornar, não um último recurso ou um apelo dramático, mas uma afirmação da diferença no segundo sentido sustentado no começo do meu artigo: um sentido de re-intensificação de nossa experiência de vida dentro de um ambiente, com seus objetos e o uso comum deles. Eles podem aparecer como objetos virtuais transformados em transicionais:
«Introduzi os termos ‘objeto transicional’ e ‘fenômenos transicionais’ para designar a área intermediária da experiência (...). É geralmente reconhecido que uma afirmação da natureza humana é inadequada quando dada em termos de relações interpessoais, mesmo quando a elaboração imaginativa da função, a fantasia consciente e inconsciente, incluindo o inconsciente reprimido, a torna viável. Há outra maneira de descrever as pessoas que vem das pesquisas das duas últimas décadas e que sugere que, de cada indivíduo que chegou ao estágio de ser uma unidade (...), pode-se dizer que há uma realidade interna para aquele indivíduo, um mundo interior que pode ser rico ou pobre e pode estar em paz ou em estado de guerra.
(...)
Meu argumento é que, se há necessidade dessa dupla afirmação, há necessidade de uma tripla. Há a terceira parte da vida de um ser humano, uma parte que não podemos ignorar, uma área intermediária da experiência, para a qual contribuem a realidade interior e a vida externa. É uma área que não é desafiada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela deve existir como um lugar de repouso para o indivíduo envolvido na tarefa humana perpétua de manter a realidade interna e externa separadas, mas inter-relacionadas.»[28]
Um objeto transicional pertence a uma terceira área intermediária da experiência. É a virtualidade estabelecendo conexões. Pode-se perguntar: mas como exatamente os objetos virtuais de Deleuze se tornam transicionais no sentido winnicottiano? Minha hipótese esquemática é que esse novo aspecto do readymades é clínico, isto é, se revela quanto mais aproximamos artistas e espectadores em suas vidas. Mostra-se, por exemplo, no caso da arte de Bispo Rosário, como um aspecto essencial que lhe permite mudar e desenvolver sua autopercepção, independentemente de qualquer pseudo-necessidade interna para conter sua delirante produção imaginária. Ao contrário, Bispo do Rosário não é incapaz de se recriar por meio de algo e por isso retrabalha objetos; ele só pode se recriar por meio dos seus objetos, num processo de gênese que inclui o mundo e seu próprio eu juntos e separados ao mesmo tempo.
A área intermediária da experiência não é nem intrapsíquica nem realidade meramente compartilhada. É uma zona liminar ou fronteira, um espaço potencial em que crianças ou pacientes como Bispo do Rosário podem criar o que se encontra. O que um bebê «cria» são seus objetos transicionais, ursinho de pelúcia ou cobertor como no caso do célebre personagem Linus, de Charles Schulz. Seguindo a mesma lógica, um readymade é um objeto achado para ser criado, um objeto transicional também, mas realizando uma transição correlativa diferente na qual a dimensão prático-existencial das coisas ao nosso redor é resgatada do mero hábito e / ou do formalismo conservador.
Com Bispo do Rosário, os readymades tornam-se o que são: terceiros incluídos, arte e não-arte, a vida como ela é e uma pós-vida como ainda não é (e não sabemos se será). Esses objetos operam uma transição no desenvolvimento da arte e da vida, não só para o esquizofrênico Bispo do Rosário, mas para toda uma dinâmica esquizoide fundamental que nos assombra a todos. Eles revelam a terceira parte inerente a todas as relações, que aponta para o horizonte, para o cosmos, para o ambiente de acordo com Winnicott. São objetos extraídos de seu contexto, transformados em uma matéria sem forma que só pode ganhar forma e fazer sentido em uma dimensão prático-existencial. Para Bispo do Rosário é a dimensão prático-existencial de uma tarefa sagrada, de sua «missão». A cada um de nós descobrirmos como esses objetos podem ganhar essa dimensão.
Como explica Winnicott, a terceira área de experiência subsiste em última análise como lugar de repouso para o indivíduo envolvido na tarefa de manter as realidades interna e externa separadas, mas inter-relacionadas. Eis o desafio. Os readymades de Duchamp mantiveram separados e inter-relacionados o mundo da estética (instituições e gosto treinado) e vida cotidiana. Os readymades de Bispo do Rosário mantiveram separados e inter-relacionados, por um lado, o seu estado mental e o ambiente hostil que ameaça todos os esquizofrênicos hoje e sempre; mas, por outro, este nosso mundo e a sua re-apresentação no dia do Juízo Final – chamemos isso de arte ou não.
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Footnotes