John Berger (1926-2017) escritor, poeta, crítico de arte, pintor, deixou-nos no início deste ano, com uma obra e herança de trabalhos que marcam uma geração de fazedores de arte, activistas e pensadores que questionam as formas, construções e consequências no acto de «olhar». A Wrong Wrong decidiu convidar vários «cúmplices» a reagirem a aspectos da obra de Berger ou a temas que nela circulam.
ALICE GEIRINHAS
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SOFIA GONÇALVES
Nota fig. 1 ao leitor fig. 2
Somos cinco os autores fig. 3 deste livro fig. 4. O nosso ponto de partida fig. 5 foram algumas ideias da série de televisão Ways of Seeing fig. 6. Procurámos ampliar fig. 7 e matizar fig. 8 essas ideias, que influíram não só no que dizemos neste livro como na forma por que procuramos dizê-lo fig. 9. Em relação ao nosso objectivo, a forma fig. 10 do livro e o seu conteúdo fig. 11 são dois factores de importância igual fig. 12.
O livro consta de sete ensaios numerados fig. 13, que podem ler-se por qualquer ordem fig. 14. Em quatro, utilizam-se palavras fig. 15 e imagens fig. 16; nos três restantes apenas imagens fig. 17. Estes ensaios, puramente visuais (sobre os modos de ver fig. 18 mulheres fig. 19 e sobre aspectos diversos e contraditórios fig. 20 da tradição fig. 21 da pintura fig. 22 a óleo fig. 23), estão pensados para suscitar tantas perguntas fig. 24 quanto os ensaios verbais. Nos ensaios visuais não se dá por vezes informação fig. 25 alguma sobre as imagens reproduzidas fig. 26 porque nos pareceu que tal informação poderia distrair a atenção fig. 27 do verdadeiramente essencial fig. 28. Essa informação é dada evidentemente na relação das obras reproduzidas, no final fig. 29 do livro.
Nenhum dos ensaios pretende tratar senão alguns aspectos de cada tema fig. 30, em particular aqueles que a moderna fig. 31 consciência histórica fig. 32 trouxe a primeiro plano fig. 33. O nosso objectivo principal foi o de iniciar um processo de interrogação fig. 34.
Nota à nota:
O texto acima reproduzido foi retirado do livro Ways of Seeing (John Berger, Sven Blomberg, Chris Fox, Michael Dibb e Richard Hollis, 1972, Penguin Books) e comentado a partir de fotogramas dos quatro episódios que compõem a série Ways of Seeing (John Berger e Michael Dibb, 1972, BBC).
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NOÉMIE REIJNEN
La Femme.
«(...) os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino: a vigiada, feminina. Assim, a mulher transforma-se a si própria em objecto – e muito especialmente num objecto visual: uma visão.» ― John Berger, Ways of Seeing, 1972 / Modos de Ver. Lisboa: Edições 70, p. 51
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SUSANA MOUZINHO
For John Berger
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JOËL VACHERON
Seeing Jonas and remembering John
Título original: Jonas qui aura 25 ans en l’an 2000
Realização: Alain Tanner
Escrito por John Berger e Alain Tanner
Estreia: 1976
Duração: 116 minutos
Países: Suiça/França
Elenco:
Jean-Luc Bideau (Max)
Myriam Boyer (Mathilde)
Raymond Bussières (Charles)
Jacques Denis (Marco)
Roger Jendly (Marcel)
Dominique Labourier (Marguerite)
Myriam Mézières (Madeleine)
Miou-Miou (Marie)
Rufus (Mathieu)
I
Voz-off (uma citação de Jean-Jacques Rousseau): Toda a nossa sabedoria consiste em prejuízos servis. Todas as nossas prácticas são apenas submissão, impedimento e constragimento. O homem civil nasce, vive e morre em escravatura. Quando nasce é cosido em tiras de tecido; quando morre é fechado num caixão. Desde que mantenha a sua forma humana, ele é amarrado pelas nossas instituições.
II
Mathieu: Tiraste estas fotografias todas?
Marcel: Sim.
Mathieu: Costumas fotografar pessoas?
Marcel: Nunca.
Mathilde: Nem os seus próprios filhos… apenas animais e depois desenha-os.
Marcel: Eles são mais interessantes do que nós. Se preferires, nós somos os animais menos interessantes. Somos uma desordem, os humanos não têm mistério.
III
Marco: Em sociedades agrícolas, o tempo pensava-se como sendo cíclico. Cada estação repetia o mesmo momento. Obviamente o ser humano envelhecia apenas porque se desgastava. Ele era o combustível que fazia o trabalho sazonal da máquina. O Capitalismo trouxe a ideia que o tempo era uma auto-estrada. A auto-estrada do progresso. A ideia do progresso significa que os vencedores não só ganharam a batalha, mas também foram eles os escolhidos como seres intrisicamente superiores. E a sua superioridade deve naturalmente viajar através de ciclos e estações.
IV
Marguerite: Pertences a um grupo?
Max: Não. Cheguei a pertencer… antes.
Marguerite: Antes do quê?
Max: Durante os anos sessenta, 64, 65, 66, 67, 68… 69, 70, 71, 72.
Marguerite: O Maio de 68 aborreceu-te?
Max: De modo algum! Isso foi depois.
V
Max: Depois, nada mudou. Tornou-se ainda pior. À excepção de dispositivos, comunas, macrobiótica, crianças sujas, sexo casual, tantrismo... tudo cantigas! Só consigo ver uma coisa, Kissingir a girar como um propulsor em redor do mundo. Esta é a realidade nauseante.
VI
Marguerite: Já ouviste falar acerca das origens das notas de banco?
Max: Não, mas estou curioso de saber. Estou a aprender muito contigo hoje.
Marguerite: É a retenção das fezes. A sua transformação num signo económico, em ouro e notas de banco. Escondemos os dois: ouro e merda. Esta é a origem do Banco Protestante.
Max: Faz-me lembrar uma coisa. Um amigo meu, que era estudante de medicina, contou-me que gostaria de fazer a sua tese de doutoramento sobre a constipação de Calvino. Segundo ele, Calvino estava constipado como um canhão. Genebra é uma cidade retentiva não é?
VII
Marcel: Por volta das 6 da manhã, no Verão, podes escutar os pássaros a cantar. Eles são tantos, que não os conseguimos contar. São tantos como as manchetes nos jornais. Eles transmitem mensagens a toda a nossa volta. E são mais fáceis de ouvir se não leres o jornal de merda... Mas o humano inventou um silêncio terrível. Pedra após pedra, construiu a sua própria surdez e já não escuta as mensagens que lhe são enviadas. Se as conseguisse ouvir, talvez se sentisse um pouco mais reconfortado.
VIII
Mathieu: As crises não caem do céu. Se estão ligadas às estruturas e funcionamento do capitalismo, significa que também podem ser provocadas. Por exemplo: as pseudo-crises do petróleo. Também elas podem ser organizadas, encenadas, como os regimes capitalistas estão neste momento a fazer para expurgar o sistema, para eliminar os mais pobres e concentrarem o poder nas mãos de uma minoria. Do meu lado, espero que chegues a 2000 inteiro.
IX
Marco: Estás errado ao pensar que a revolução é para o futuro. A revolução é a vingança do passado. Tu vês a alvorada e eu uma árvore envelhecida.
Max: Tu regrides Marco. Por ser um tempo de desilusão, voltas ao passado. Todos estão à procura de um escape, o corpo, natureza, sexo, cebolas, flores de lótus... Pequenas consolações para fugir a um mundo inaceitável e, como alguns dizem, intangível.
X
Homem velho: Viajar e conduzir um comboio são duas coisas diferentes. Por causa dos carris. Costumas viajar de comboio? O que vês? A paisagem a desenrolar, desenrolar… Como no cinema… Eu já não vou ao cinema. Quando estás na plataforma a paisagem não desenrola, entusiasmas-te nisso, e entras, mais e mais, nisso... é como a música. Vais sempre em frente, até ao horizonte onde os carris se unem e por mais longe que se vá, eles nunca se juntam.
XI
Max: O meu território vai até onde posso ver, não mais do que isso. O meu país não existe, apenas num mapa. Eu sou um Métèque, sem pátria.
Marcel: Somos todos trabalhadores fronteiriços!
XII
Mathieu: Jonas, os jogos ainda não acabaram. Voltemos ao momento em que aprendias a caminhar, até ao dia em que o exército e a polícia dispara numa multidão de pessoas como tu. Voltemos à tua primeira aula de leitura até à menos democrática decisão: nada ceder apesar de todas as ameaças.
XIII
Voz-off (citação de Jean-Jacques Rousseau): O agora precisa de mudança de acordo com a situação do homem. Há uma grande diferença entre o homem natural a viver no estado da natureza ou o homem natural a viver em sociedade. Emile não é um selvagem para ser relegado ao deserto. Ele é um selvagem feito para habitar cidades. Ele tem que ser capaz de encontrar as suas necessidades dentro delas, e de se aproveitar dos seus habitantes, e de viver, se não como eles, pelo menos com eles.
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BRUNO HUMBERTO
3 constelações acidentais ou a maneira não tão original de encontrar algumas das obras de John Berger,
seguido pelo poema «O olho esquerdo dos dois velhos trocados»
«Those who first invented and then named the constellations were storytellers. Tracing an imaginary line between a cluster of stars gave them an image and an identity. The stars threaded on that line were like events threaded on a narrative. Imagining the constellations did not of course change the stars, nor did it change the black emptiness that surrounds them. What it changed was the way people read the night sky.» – John Berger, de «Once in a Story,» And Our Faces, My Heart, Brief as Photos (Bloomsbury Publishing, 2005)
O olho esquerdo dos dois velhos trocados*
Sabemos acerca desse hábito,
de se trocarem bebés à nascença,
nesta e noutras regiões do nosso reino,
engendrado por médicos e famílias
cúmplices na decisão de confundirem as crianças
desde o primeiro espanto.
(Metade do que é escrito nas pulseiras é apagado.)
Por saber acerca desse hábito
pensei fazer exactamente o mesmo
mas do outro lado:
trocar dois velhos antes da morte.
Sim, fui eu que pedi essa falcatrua
de se trocarem os dois,
o meu avô e o avô de alguém.
O primeiro chamava-se João.
O segundo, não falava português e chamava-se John.
À parte do nome (que neste caso os diferenciava),
haveria alguma coisa que os confundisse?
O primeiro tomava a terra como um objecto movível
de paisagens utilitárias, passíveis de serem reajustadas à força.
Com ele apareceu a primeira forma de crédito,
a ideia de que o trabalho involve dor, e o prazer dívida.
O segundo pegava em imagens e afastava-se delas.
Focava-se num pormenor para alargar o espectro
do que está entre a ideia de evento, o evento real
e o entendimento, nem sempre por esta ordem.
Como a maior parte dos homens em idade adulta,
(com exepção de Camões, Thurber e Joyce),
os dois velhos tinham os dois olhos abertos.
E eram também viciados em cartas.
O primeiro esperava uma manilha que salvasse a sua mão,
o segundo uma carta de Paris que decifrasse o enigma do quadro.
E os dois velhos como a maior parte dos homens
a certa altura começaram a usar o olho esquerdo
mais do que o direito,
para desconfiar a distância
ou simplesmente medir a escala de um cipreste.
Mas como os trocar se raramente se encontravam
no mesmo sítio,
à mesma hora,
comendo o mesmo crustáceo?
O encontro improvável entre outros dois homens
achegou a matéria que me faltava para o acto:
Heisenberg e Borges a beberem
uma caneca de apfelwein
na Bavária.
Sem os ouvir traduzi o seguinte:
se apanharmos dois homens a fazerem o mesmo gesto
é possivel trocá-los de sítio.
O avô aponta o olho esquerdo,
Diz que sabe a jogada,
(não te armes em artista).
O avô aponta o olho esquerdo,
Diz olha a jogada,
(e compreendes o artista).
E ao pensar nisto
O artista leva uma entrada por trás,
perde o esférico,
falta não é assinalada,
isto está a correr mal,
deixam seguir o jogo,
não foi desta,
está a chover,
dói-lhe a cabeça,
cara na lama,
uma desolação,
só entrou
para fazer tempo,
olha para cima,
o público nem pode,
no meio da bancada,
vê os dois avôs sentados
lado a lado
a beber
uma sagres preta
com o cachecol
da sua equipa.
* Este poema foi inspirado num conto homónimo que foi perdido na inundação do estúdio cave que habitava, até ao inicio deste ano, nas Olaias. Um cano rompeu no andar (vazio) de cima, durante a madrugada de 2 de Janeiro, e acordei rodeado de mobília, escritos e instrumentos a boiar.
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