No prefácio à obra seminal de Mark Jones sobre falsos, David M. Wilson afirma:
«There is a horrid fascination about fakes: although we sweep them under the carpet we tend to discuss them and review them ad nauseum; but we review them in na almost shamefaced fashion because we as experts have bumped up against our own fallibility (…) We are all emotionally envolved with fakes; [but]nobody wants to be associated with them.» (Jones, 1990: 9)
Em Portugal esta ambivalência e desconforto perante o tema dos falsos são mais notórios ainda: se por um lado o assunto tem sucesso garantido no imaginário popular através da ficção criminal ou dos media mais ou menos sensacionalistas, constatamos exatamente o contrário na academia e nos círculos de curadores, onde a questão é, as mais das vezes, olimpicamente ignorada, para não falar no mercado de arte, onde normalmente reina um silêncio mais ou menos gritante sobre a questão.
Sobretudo no mundo anglo-saxónico, porém, a temática dos falsos tem sido várias vezes assumida e tratada com frontalidade e verdadeiro interesse por académicos e museus de primeiríssimo plano, que apresentaram importantes exposições sobre o tema. A título de exemplo e por ordem cronológica, citemos uma importante exposição no British Museum intitulada Fake? The Art of Deception, em 1990, várias exposições no Victoria & Albert Museum (2006, 2009 e 2010) por parte da polícia britânica e a exposição Fakes, Forgeries and Mysteries, no Detroit Institute of Arts, em 2010-2011.
Em muitas destas exposições os artefactos falsos foram abordados não só do ponto de vista legal e de prevenção criminal – como objetos fraudulentos mais ou menos imperfeitos cuja produção e circulação importa impedir – mas como valiosos testemunhos documentais verdadeiramente reveladores da cultura e apetências do período em que foram forjados e transacionados para ‘responder’ aos ‘desejos culturais de cada época’. Assim, para Mark Jones, curador da citada Fake? The Art of Deception e diretor do Victoria & Albert Museum entre 2001 e 2011, «Fakes are … before all else, a response to demand, an ever changing portrait of human desires. Each society, each generation, fakes the thing it covets most.» (Jones, 1990: 13) E para Wendy Steiner, na esteira de Jones, «they are historical documents of great value – the best indexes to the state of the art market at a given moment, clues to what an age considered signs of authenticity, marks of cultural desire» (Steiner, 1990).
Nesta sequência, os falsos – verdadeiras «marcas do desejo cultural» de uma época – tornam-se objetos de estudo totalmente merecedores da nossa atenção e interesse, se abordados de modo heurístico, multifacetado e interdisciplinar. O presente texto, bastante limitado, não pretende mais do que chamar a atenção para este tipo de abordagem dos falsos, esboçando a sua aplicação à coleção de arte falsa do Museu de Polícia Judiciária, circunscrita a obras falsas apreendidas a partir de 1992 numa área que não abrange o norte do país. Assim, um olhar ainda que breve sobre as mais de duas centenas de exemplares que constituem esta coleção pode levar-nos a reflexões interessantes e reveladoras não só de alguns contornos deste fenómeno criminal em Portugal, como das ‘marcas do desejo cultural’ da época e sociedade em que se inserem. De facto, ao abordarmos a coleção de falsos em questão há dois aspetos que imediatamente sobressaem e sobre os quais poderemos tecer algumas breves considerações:
– Em primeiro lugar grande parte dos falsos que a compõem são notoriamente produções bastante grosseiras;
– Em segundo lugar, toda a coleção ostenta assinaturas falsas de artistas predominantemente do séc. XX (e XXI), alguns abrangendo ainda o final do séc. XIX, não se verificando a existência de obras pretensamente atribuídas a autores de séculos anteriores.
Relativamente ao primeiro ponto constatamos, com alguma perplexidade, que a debilidade da qualidade destes falsos não inibiu de todo os executantes e/ou mandatários destas contrafações ou falsificações de os colocar repetidamente no mercado. Esta ousadia não é aleatória. Trata-se de um atrevimento que aponta e joga pelo menos com dois fatores: em primeiro lugar, uma débil e não sustentada perceção estética e artística não só dos próprios falsários, como dos compradores, já que de outro modo nem os primeiros se atreveriam, em princípio, a colocar ‘mercadoria’ de tão má qualidade no mercado, nem os segundos os comprariam; em segundo lugar, o expectável silêncio por parte dos experts, que não tomam a iniciativa de fazer denúncias, nem se pronunciam, a não ser que sejam diretamente interpelados a tal. Com efeito, em muitos casos os quadros em questão chegaram a ser repetidamente transacionados, e as queixas que originaram os processos criminais são normalmente colocadas por compradores que finalmente descobrem – por motivos alheios à sua perceção da qualidade da ‘obra’ – que foram burlados. Tal conjunto de fatores indicia, portanto, que existe um mercado relativamente ávido destes ‘produtos’ e fácil de enganar, com ‘marcas de desejo cultural’ relativamente simples de contentar através de burla, e portanto terreno mais do que fértil para o tipo de crime em questão. Este mercado é constituído por pessoas com algum poder financeiro e ambições de ascensão social, mas profundamente desconhecedoras de matérias estéticas e artísticas (que não obstante as mais das vezes não recorrem a especialistas antes de fazer as suas aquisições) – e que percecionam a posse e ostentação de obras de arte como sinal de estatuto social. Tal fenómeno não é, naturalmente, específico do nosso país, mas comum à escala mundial, e há que compreendê-lo no contexto mais vasto do glamour crescente que envolve atualmente o mundo artístico (Sá, 2013). Per Aage Brandt dá-nos uma perspetiva especialmente interessante deste fenómeno contemporâneo. Segundo Brandt, no mundo artístico de hoje, a maximização inédita e avassaladora do marketing e da tecnologia da comunicação transforma a arte num verdadeiro «cerimonial» causador de uma «moderna ‘histerização’ da atenção coletiva» (Brandt, 2004: 218).
Quanto ao segundo ponto – relativo à prevalência absoluta de falsos de artistas modernos ou contemporâneos na coleção MPJ – como veremos, vem apenas corroborar as conclusões do primeiro. De facto, verificamos que os executantes ou mandatários dos falsos em questão se abalançam com facilidade a contrafazer ou falsificar obras de estilo contemporâneo ou moderno, não acontecendo aparentemente o mesmo com obras de estilos de épocas mais antigas. Se juntarmos este aspeto ao anterior, relativo à má qualidade dos falsos, seremos levados a pensar que os executantes destes falsos especialmente toscos não dominam minimamente quaisquer técnicas pictóricas, o que os leva a não tentar imitar obras e estilos mais antigos, que consideram mais complexos, sentindo-se pelo contrário mais encorajados a imitar artistas contemporâneos e modernos (de resto mais populares e mais procurados no mercado), sobre cuja produção não têm a menor noção e que visivelmente consideram mais facilmente mimetizáveis. De facto, nalguns casos não é possível ter dúvidas sobre a total ausência de conhecimentos estéticos ou artísticos dos falsários, sendo que num dos exemplares somos mesmo confrontados com dúvidas sobre a sua própria literacia. Com efeito, o óleo falso de Arpad Szenes intitulado O casal e datado de 1952 – que mostramos abaixo – ostenta na retaguarda uma ‘Declaração de autenticidade’ cujo teor termina com as seguintes palavras: «Obra de notável valor piquitório.» (sic)
Esta ‘anedota’ real não é aqui vertida de modo gratuito, mas sim porque nos diz algo importante sobre as ‘marcas de desejo cultural’ do país que somos, e que choca com alguns estereótipos que povoam as nossas mentes transvisualmente ‘remediadas’ (Bolter e Grusin, 2000) por toneladas de glamorosa ficção criminal: um país com um passado recente de elevadíssimo grau de analfabetismo e índices relativamente elevados de iliteracia na época contemporânea, índices aos quais naturalmente a criminalidade portuguesa – assim como o seu mercado – não escapam. Continuando com o anedotário nacional, muitos portugueses gostam de anunciar que têm um «Malhoa» por cima do sofá da sala, de preferência adquirido como autêntica ‘pechincha’. Mas não estão sós no mundo: a nível internacional são comuns os ditos humorísticos, como aquele que afirma que, dos cerca de 3.000 Corots que este artista pintou, 10.000 se encontram nos EUA.
Bibliografia
BOLTER, Jay David and Grusin, Richard. (2000). Remediation. Cambridge Massachusetts and London: MIT Press.
BRANDT, Per Aage. (2004). «Art, Technique, and Cognition» in Spaces, Domains and Meaning. Essays in Cognitive Semiotics. Bern etc.: Lang, 211-218.
JONES, Mark. (1990). Fake? The Art of Deception. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.
SÁ, Leonor. (2013). «A performance do falso e a coleção do ilícito: fétiches, mercado - e museus» in Mendes, Paulo & Jürgens, Sandra Vieira (eds.), Collecting, Collections and Concepts – Uma viagem iconoclasta por coleções de coisas em forma de assim, Guimarães: Fundação Cidade de Guimarães / IN.TRANSIT Editions. https://www.academia.edu/21868900/A_performance_do_falso_e_a_cole%C3%A7%C3%A3o_do_il%C3%ADcito_fetiches_mercado_-_e_museus
STEINER, Wendy. (1990). «In London, a Catalogue of Fakes» in New York Times
http://www.nytimes.com/1990/04/29/arts/art-in-london-a-catalogue-of-fakes.html?pagewanted=all (Consultado a 03.03.16)