Pedro Lira - O falso enquanto falha
O falso enquanto falha, assincronia, incumprimento.
Vontade e acção. Qual a potência existente na falha enquanto possibilidade para, através do sensível e do erro, alcançar parte de uma verdade?
«Last night I dreamt I went to Manderley again.»
Assim como no sonho de Mrs. De Winter em que esta contemplava Manderley através do portão principal recordo-me desse nosso último dia em Paris. Fechámos a sólida e grande porta vermelha. Atravessámos um estreito e longo pátio interior desviando-nos de motas, alguidares com água, vasos de plantas e roupa estendida. Um dos lados era composto por barras de ferro burguesas e infinitas janelas que se estendiam até ao alto onde, a descoberto, por entre um pequeno rectângulo azul viam-se cinzentas nuvens. Saíamos pelas traseiras da casa de Jamal, um confortável palacete no centro de Paris. Eram nove e meia da manhã e a branca e forte luz do sol carimbava as sombras dos prédios, de uma arquitectura demasiado bem sucedida, sobre largas avenidas. Apercebo-me de quão inadequada é a única muda de roupa que escolhi para esta viagem quando o frio descobriu passagem entre o meu cachecol e o colarinho e fiquei com as costas geladas. Esse sentir das coisas fez-me lembrar Portugal e de como me sinto após uma semana de trabalho. Iniciámos marcha depositando toda a nossa confiança num muito rasgado pedaço de papel com ilustrações das ruas e na nossa cómica capacidade de o interpretar. Se não nos tivéssemos separado deste, certamente que, esta expedição teria demorado metade do tempo porém, pela metade, igualmente perdida seria a experiência. Desconhecíamos até então o facto de estarmos a pelo menos três horas do local que inicialmente não pretendíamos. Passo a explicar, a BNF, a Biblioteca Nacional Francesa, é um arquivo constituído por cinco edifícios, e encontra-se implementada pela cidade de Paris em locais diversos. São estes a Rez de Jardin F.M. Library, a Arsenal Library, a Open House Library, a Maison Jean Vilar the Avignon e a Richelieu Library.
Este texto poderia ter sido uma simples nota sobre o encontro de dois homens com o local por onde andou Walter Benjamim. E de como esse cândido encontro, com esses corredores e espaços labirínticos de reflexão, proporcionaria uma ligação com algum vestígio sensível de um mestre, capaz de operar sobre estes de forma potencialmente reveladora acerca da arte e do real.
Rue Cardinet, Rue de Courcelles, Pont des Invalides, Boulevard Saint Germain, Fondation Cartier... «..., at the time I could no more believe my eyes than I can now trust my memory» (Boulevard du Montparnasse, avenue des Gobelins, Rue de Croulebarbe, Place d'Italie, Boulevard Vincent Auriol, Avenue de Choisy, Rue Nationale, Rue Jeanne d'Arc, Rue Thomas Mann, 45 Quai François Mauriac) BNF.FM Cedex13
Continuar em linha recta pode tornar-se um desafio. Porquê essa disposição para andar em elipse e perder-se ainda que rodeado de pontos de referência? Em 2009, Jan Souman e um grupo de investigadores debruçou estudo sobre o sentido de orientação humana. Procuraram responder a uma simples questão. «Porque não conseguimos andar em linha recta?». Concluiu-se que não era devido a uma falha motriz ou de assimetria corporal. Mas por acção e decisão do caminhante que, a pouco e pouco, altera a rota. Desse ajuste, o progressivo dessincronizo. Como é sabido, ter conhecimento da causa não conduz necessariamente a uma solução e, dessa forma, como observadores do nosso próprio estar, continuámos!
Passadas três horas de percurso alcançámos o suposto destino. O que encontrámos foi um edifício diferente, incrivelmente avassalador, porém outro. Estávamos em frente às torres da BNF.FM e não do histórico e desejado BNF Richelou que Alain Resnais contempla em Toute la mémoire du monde (1956).
Quanto mais cedo me libertar, desse não enunciado, desse sentir ser necessário fazer, desse incómodo de escrever, desenhar, pintar, incidir acção sobre matéria, quanto mais cedo dissipar essa pulsão, mais cedo me tornarei livre e feliz. Quero propor um brinde ao findar desses mecanismos. Adeus aos óleos, aos pastéis, à fita cola, ao plástico, ao grafite, às incompreensíveis leituras. E a cada passo dado por esses íntimos labirintos afigura-se uma ilusão. Nem tudo se explica, nem tudo é acessível, por vezes até para quem próprio escreve.
«No poem is intended for the reader, no picture for the beholder, no symphony for the listener.»
Na nova biblioteca, o edifício outro a que chegámos, encontrámos uma verdadeira passagem templária para o conhecimento entre o antigo e o novo, o triunfo do esforço humano que Walter Benjamin certamente teria escolhido para esconder os seus textos dos Nazi. Encontrámos uma invejável montra da cultura e civilização francesa, que demonstra confiança no valor do conhecimento e confiança no futuro.
Procurei escrever sobre busca e percurso. Procurei escrever sobre resolução de termos propostos e da possível potência para, através do encontro, imbuir via atmosférica. Quis acreditar que, naqueles não alcançados corredores, algo haveria capaz de me redimir, restituir, algo válido, antes parte de mim, algo sensível e erudito.