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A repetição diferente
Esta é uma reflexão sobre parte dos escritos teóricos e artísticos de Michelangelo Pistoletto (Biella, 1933), que vive e trabalha em Turim. Um dos expoentes da Arte Povera, Pistoletto começou na pintura, tendo passado à recuperação de materiais pobres. Interessa-nos a sua actividade a partir da segunda metade dos anos sessenta, quando começa a incluir figuras humanas nas suas obras. As suas instalações de espelhos em quartos, em 1975-76, questionam as várias realidades possíveis criadas pelos reflexos das superfícies polidas e interrogam o indivíduo sobre as suas infinitas personalidades latentes.
Este breve ensaio relaciona principalmente os escritos teóricos de Pistoletto com o texto L’instauration du Tableau, estudo da evolução da arte flamenga no século XVII pelo historiador e crítico de arte Victor Stoichita (Bucareste, 1949). E incide sobre a ocorrência cíclica na história da arte dos paralelismos constantes entre a arte de Pistoletto e a dos artistas que Stoichita considera na sua obra de 1989.
Na base da «viagem temporal» que propomos está a ideia de uma lei quase constante na vida das artes: a de que uma vez atingido um extremo, este desencadeia um movimento de compensação numa direcção oposta. Portanto, um «pico explosivo» dá à luz um outro igual e contrário de «implosão», uma corrida «atrás» na busca de recuperação das próprias origens e da própria história. O caminho não se desenvolve sempre em frente: a certa altura entra num ritmo circular, em espiral, que é de retorno. A presente viagem temporal convoca a possibilidade de deslocação no tempo e de existência de universos paralelos proposta pela física quântica. Possibilidade que Pistoletto parece ter interiorizado e cruzado com outro tipo de viagem, a interior, numa busca identitária que, no seu caso, começou aos 14 anos de idade.
A propósito da Quinta exposição de Le Stanze (Os Quartos), Pistoletto fala de um «projéctil que viaja no vazio interestelar», explicando que «cada exposição se materializa à semelhança de um jacto de gás, ao qual sucede um outro, e um terceiro, e por aí fora, para permitir a deslocação do veículo.»[1] A exposição como veículo, não só artístico e expositivo, mas também temporal, o projéctil que conduz a uma viagem sem tempo, carregada de reflexão sobre a identidade individual e o desejo de um novo Humanismo.
Na teorização dos seus trabalhos, Pistoletto cita o espelho como elemento essencial. O espelho é um portal aberto no tempo porque, como ele explica: «transporta-me no futuro mostrando-me o passado. Na verdade, mostra-me que tenho um espaço limitado por ser limitada a minha perspectiva frontal, mas projecta-me não apenas numa perspectiva única e tradicional (...) ele é bidireccional: mostra-me o que está à frente e o que está atrás.»[2] A passagem-espelho é então um instrumento que duplica a perspectiva, abrindo a possibilidade de transitar nos dois sentidos.
Este texto é uma tentativa de atravessamento do espelho pistolettiano e de deslocação entre vários presentes históricos: o de Michelangelo Pistoletto (em diferentes etapas), o de Victor Stoichita, o da Holanda do século XVII. Com as teorias da física quântica em diálogo com os conceitos pistolettianos propostos, a justificar uma viagem fisicamente impossível.
1989 Victor Stoichita
Em 1989 Victor Stoichita escreve L’Instauration du tableau, análise de obras da pintura, sobretudo flamenga, entre 1522 a 1675. Estas duas datas correspondem à revolta iconoclasta de Wittenberg e à realização do Quadro Invertido por Cornelius Norbertus Gijsbrechts, simbolicamente a morte da antiga concepção da imagem e o nascimento de uma nova, criada a partir de um esgotamento das reflexões sobre a arte e as suas possibilidades. A complexidade do discurso de Stoichita, onde a auto-referencialidade assume um papel sempre importante, é ela mesma reflexo da integração do elemento especular.
1524 Parmigianino
Para perceber como Parmigianino conseguiu o seu Auto-Retrato ao Espelho, visitamos outra obra, de 1646: o auto-retrato de Johannes Gumpp, no qual o pintor representa-se de costas a trabalhar no seu auto-retrato, enquanto se olha ao espelho. A metapintura de Gumpp pode ser a explicação-revelação da obra de Parmigianino.
Em Parmigianino o observador é colocado à frente do artista mas do outro lado do espelho, como se estivesse a olhar por uma janela que liga dois mundos diferentes. Mas, ao passo que o observador pode mudar a sua posição, o sujeito preso no espelho fica imóvel como representação pictórica. Mais, o observador não tem acesso ao acto pictórico, da obra in fieri. Em Gumpp o observador, que está atrás do pintor, pode ver o que este faz e como, mas ao mesmo tempo é-lhe ocultada a visão do rosto do pintor. O que é ocultado em Gumpp é revelado em Parmigianino. Podemos então falar de obras complementares ou até equivalentes se considerarmos o formato dos quadros. Ambas as telas são ovais, mas se Parmigianino consente uma aproximação extraordinária, até ao limite da fronteira-espelho (entre o irreal da representação pictórica e o real do observador), Gumpp deixa-se observar à distância e remete ao observador uma possível problemática pitagórica nas formas dos objectos representados, englobados e unificados no oval da tela. Oval pode ser considerada também a forma de um mundo, o do pintor, em que este consente ao observador espreitar, mas sempre segundo as suas próprias regras.
Através das dimensões não realistas da obra, Gumpp induz no observador a percepção de que o que está a ver é a reprodução de uma realidade (verdadeira ou imaginária). A obra de Parmigianino, pelo contrário, constitui um fantástico trompe l’oeil. O pintor faz com que os limites da representação pictórica coincidam com os do espelho em que ele próprio se representa: o quadro é o espelho.
Gumpp é o texto pictórico, Parmigianino a sua síntese. Nesta síntese a representação, que quer alcançar o estatuto de objecto do real (espelho no espaço-realidade), identifica-se com o objecto real (espelho como objecto material), tornando-se assim objecto em toda a sua materialidade.
A pintura torna-se máquina ilusória, pintura (-espelho) reflectora do talento do artista que, na sua auto-referencialidade, se reclama criador da sua produção, rei do seu mundo.[3] A pintura torna-se acto de vaidade humana na tentativa de eternizar a matéria que se quer presente num futuro do qual o autor estará ausente. Se a pintura tem este poder então ela tem o poder do paradoxo que, fundando-se na técnica, leva o receptor a verificar a validade da asserção e a demonstrar o mecanismo que a tornou possível.
1670-1675 Cornelis Norbertus Gijsbrechts
O paradoxo materializa-se na obra de Cornelis Norbertus Gijsbrechts, Quadro Invertido, representação pictórica do verso de um quadro: a parte do quadro-matéria, normalmente ocultada, passa a ocupar o primeiro plano, o da observação, da contemplação. Devido à sua perfeita técnica, o fruidor é impelido à verificação da representação, a virar a obra-objecto para descobrir a realidade.
Tal como a imagem especular de Parmigianino, a imagem de Gijsbrechts ocupa todo o espaço possível: ela é tudo. O único elemento que difere da realidade é um número, «36». Talvez faça parte de uma colecção, talvez seja só um número de uma série que a definiria como uma obra qualquer. Na história da arte, como Stoichita propõe, esta obra deveria ser numerada com o «0». Neste caso a sua forma não significaria a ausência mas, pelo contrário, seria forma psíquica com a sua própria forma gráfica. Não é nada, mas ele significa o nada. O paradoxo então será que o acto mesmo de falar do «nada» eleva-o ao estado de «algo». O nihil que interessa em Gijsbrechts é o nihil negativum em virtude do qual, citando Stoichita: «o nihil negativum da imagem é a imagem da ausência da imagem.»[4]
Michelangelo Pistoletto
1967 Le ultime parole famose
«Quando na minha vida surgiu a necessidade de compreensão, identifiquei instintivamente todos os contrastes no sistema de desdobramento das coisas. E olhando a arte senti a forte oscilação à qual me forçava entre uma parte mental e abstracta e uma parte concreta e física. E individuei no meio representativo os dois pólos em repulsão e atracção recíproca: a minha presença literal, proposta pelo espelho, e a intelectual, proposta pela minha pintura. Estas minhas duas presenças eram as duas vidas que, rasgando-me em dois, apelavam com urgência à sua unificação.»[5]
Passados cerca de três séculos, Michelangelo Pistoletto reúne na sua experimentação duzentos anos de pintura flamenga, que partem da pintura de Jan van Eyck, com Os Cônjuges Arnolfini de 1434 e vão até Gijsbrechts com o Quadro Invertido de 1675.
Pistoletto é Van Eyck, Vermeer, Velásquez, Parmigianino, Rembrandt e todos os artistas sobre os quais Stoichita escreve ao longo do seu L’instauration du Tableau. Pistoletto é também Stoichita. O ponto de partida teórico é longínquo e mítico: «O homem tentou sempre o desdobramento de si próprio para tentar conhecer-se. Reconhecer a própria imagem, na água da lagoa como no espelho, talvez tenha sido uma das primeiras verdadeiras alucinações encontradas pelo homem.»[6]
Pistoletto é Parmigianino que em vez de alargar os bordos da tela para coincidirem com os do espelho, leva «a arte aos bordos da vida para verificar o inteiro sistema em que ambas se movem.»[7]
Pistoletto é Rembrandt que em vez de dar três passos atrás, se põe ao lado da tela libertando-se do seu poder esmagador. «No meu novo trabalho cada produto nasce de um imediato estímulo do intelecto. (...) O trabalho ou a acção seguinte são o produto do estímulo intelectual e perceptivo contingente e isolado no momento seguinte. Depois de cada acção eu dou um passo ao lado e não continuo na direcção retratada pelo meu objecto, porque não o aceito como resposta. Uma direcção pré-estabelecida é contrária à liberdade do ser humano.»[8]
Pistoletto é Velásquez no jogo especular entre paredes-confins e personagens homónimas, nas infinitas especulações possíveis sobre as suas Meninas, nos pontos de vista abordáveis e na auto-referencialidade: «A parede existe como princípio e como fim desta minha história. Nas paredes penduram-se sempre quadros, mas é nas paredes que se põem os espelhos também. Creio que a primeira verdadeira experiência do homem é a de reconhecer a própria imagem ao espelho, que é a primeira ficção mais aderente à realidade. Mas logo depois o reflexo do espelho recomeçará a reenviar as mesmas incógnitas, as mesmas questões, os mesmos problemas que a realidade põe; incógnitas e questões que o homem é levado a reproduzir nos quadros. A minha primeira questão sobre a tela foi a reprodução da minha imagem, uma vez aceite a arte como uma segunda realidade. O meu trabalho, numa certa altura, consistiu intuitivamente na tentativa de aproximar as minhas duas imagens, a proposta pelo espelho e a proposta por mim.»[9]
«A conclusão foi a sobreposição do quadro ao espelho» como em Parmigianino, assim que «a pintura se sobrepõe e adere à imagem da realidade»[10] como em Gijsbrechts.
«O objecto figurativo que nasce dá-me a possibilidade de prosseguir na minha pesquisa dentro do quadro como dentro da vida, dado que as duas coisas estão figurativamente ligadas.»[11]
Parte da diferença entre o auto-retrato como descrição de si e autobiografia como vida posta em história, é que o auto-retrato nada conta, descrevendo somente o estado do eu autoral que pode, a posteriori, tornar-se história da personalidade do artista. Pistoletto é então Stoichita a falar do corpus dos auto-retratos de Rembrandt considerados, em última instância, uma história autobiográfica.
Pistoletto prossegue: «De facto encontro-me no quadro, do outro lado da parede furada pelo espelho, embora não materialmente. Antes, sendo fisicamente impossível entrar nele, para indagar na estrutura da arte devo fazer sair o quadro da realidade, criando a ficção de me encontrar do outro lado do espelho.»[12]
O discurso evoca a data de 15 de Maio de 1871, quando Rimbaud escreve uma carta a Paul Demeny na qual declara «je est un autre (...) J’assiste à l’éclosion de ma penseé: je regarde, je l’écoute...»[13] No contexto italiano da Arte Povera dos anos sessenta e sobretudo depois do advento do urinol duchampiano, «é fácil o equívoco na identidade entre objecto-real e objecto-arte. Uma ‘coisa’ não é arte, a ideia expressa da mesma ‘coisa’ pode sê-lo.»[14] Conceito válido também no caso de uma pintura que representa o seu verso. «A intrusividade física do quadro no ambiente real, trazendo consigo as representações do espelho, permite-me a minha introdução entre os elementos decompostos da figuração.»[15] Continuando a teorização da sua poiesis, entre 1975 e 1976 Pistoletto reflecte ainda mais sobre os Quadri Specchianti e o fenómeno constante que os caracteriza: a relação entre a imagem estática, fixada pelo autor, e as imagens dinâmicas da reflexão.
1975-1976 Le Stanze
O quadro specchiante funciona como porta para os quartos, Le Stanze[16], que unem a instalação do artista e o percurso do visitante da Galleria Stein de Turim em 1975. «Vi numa destas passagens a típica dimensão dos meus Quadri Specchianti, ou seja 125 x 230 cm, e imaginei uma superfície reflectora colocada na parede do quarto do fundo, como uma continuação virtual do desfile de passagens e de quartos. Antes disto, nunca encontrei motivação para expor uma chapa reflectora sozinha e sem outra intervenção. Esta oportunidade encontro-a aqui, mesmo pela particularidade da sequência de ambientes e de passagens. (...) Ora, sobre este trabalho poderia dizer muitas coisas, como por exemplo que não pode ser transportado para outro lugar sem voltar a ser um banal espelho; que este quadro ‘magnetiza’ todo o espaço da galeria imobilizando-o, (devido ao facto de a galeria imobilizar o espelho durante o período da exposição). Poderia continuar falando do espectador e criando uma hipótese sobre a imobilidade em que ele próprio poderia encontrar-se, mesmo mexendo-se, caso se apercebesse de que a sua relação com o fenómeno em que está imerso é apenas de ‘registo’. Pois o seu ponto de vista em relação ao quadro é imaterial, já que cada ponto dos três quartos foi considerado em perspectiva.»[17]
Pistoletto é ao mesmo tempo Velásquez, na criação de um cenário que admite infinitas possibilidades de leitura, e Stoichita, na especulação dessas possibilidades.
O espelho-representação ganha estatuto material e introduz-se na realidade como objecto capaz de a reflectir tornando-a obra de arte. Por isso, os seus quadros são irreproduzíveis: «Não são transferíveis para nenhum outro meio senão eles próprios, pois a reprodução anula a dinâmica que é a sua essência.»[18] O factor de reflexão da superfície-espelho enquanto objecto aumenta exponencialmente os pontos de vista que se poderiam considerar. «(...) Diria sobre Le Stanze que o único meio exacto de registo e documentação é o olho vivo de quem a percorre fisicamente.»[19]
A performance muda de sujeito. Se nos Flamengos (e não só) é o autor que, pintando-se no acto de criação, regista na tela a sua acção numa tentativa de cristalização temporal, na instalação do artista piemontês o visitante é ao mesmo tempo protagonista e testemunho. O que é dado é só o material para uma experiência de que o artista já não faz parte.
«A experiência do visitante consiste em chegar a um passo do espelho, no quarto mais escuro e descobrir-se no espelho assim plano contra a luz da saída onde entrou, quase como se o ultimo passo o pudesse achatar na superfície reflectora, sem mais corpo nem reflexo.»[20]
Esta aparente tentativa de voltar à bidimensionalidade parte de um estudo profundo da perspectiva, que vai de Piero della Francesca e dos artistas renascentistas até à elaboração, por parte dos flamengos, de uma apuradíssima técnica de trompe l’oeil. Na segunda parte do percurso expositivo encontra-se a reprodução fotográfica da mesma exposição, agora revelada em dimensões reais e posta na mesma passagem, que é representação técnica do espaço percorrido anteriormente. «O observador reparará agora que o espelho ficou preso na armadilha fotográfica, a qual o obrigou a reproduzir definitivamente Le Stanze.»[21]
A máquina fotográfica como a tela, o dedo no seu botão como a mão com o pincel. Em duas épocas tão distantes mudam os meios mas permanece a vontade de cristalizar num instante eterno a realidade. A vaidade continua presente: o artista pode, assim, contemplar sem limites a sua própria criação.
O raciocínio de Michelangelo Pistoletto acrescenta sempre mais um ingrediente e apresenta um terceiro momento no qual reflecte sobre o uso dos media na reprodução afirmando que «(…) numa pesquisa cada dado é precioso. Por isso, devemos perceber que um medium ‘subvertido’ para servir a expressão criativa, além de tornar-se útil, declara também os seus limites, fragilidade e precariedade.»[22]
Nestas palavras ecoa a mensagem das obras de Gijsbrecht que, antes de inverter a tela, mostra a fragilidade do suporte artístico nas suas vanitas. Três etapas de um percurso à rebours:
– A vanitas de 1669, representação em trompe l’oeil de uma natureza morta num nicho, que retoma e amplifica a tradição dos antigos pintores flamengos;
– A vanitas de 1668, mais complexa na sua mensagem. O trompe l’oeil, definido pela coincidência entre os limites do nicho e os da tela, é cortado pelo canto superior direito descolado do suporte: trata-se da representação da representação;
– A vanitas de Boston, em que se representa uma parte de um quarto, mostrado como uma pequena parte de um espaço muito maior, não mais um simples objecto pendurado na parede do atelier do artista.
Na terceira exposição da série Le Stanze, o autor explica a intenção meditativa. «A palavra ‘filho’ está escrita no topo de cada entrada, repetindo-se até o limiar que leva além do último quarto. Mas, desta vez, a ilusão de que o reflexo do espelho continue simplesmente o desfile de passagens e quartos é dissipada, porque no reflexo estará a palavra ‘pai’ a prosseguir de passagem em passagem e de quarto em quarto. O reflexo nunca devolve o seu lado, mas o oposto. Assim temos, em virtude desta abertura ou limiar, a que eu chamo o ponto criativo, a possibilidade de ver quer a nossa ida, quer a nossa volta. Mas eu diria ainda (...) que não podemos considerar-nos inteiramente ‘pais’, sem ter percorrido inteiramente o caminho dos filhos.»[23]
O artista está consciente da importância das experiências dos seus predecessores mas inevitavelmente os ultrapassa. Ele é filho não só do processo de evolução da história da arte, mas também da sociedade em que nasceu e em que opera. É filho de um momento histórico diferente, em que a evolução dos meios técnicos de reprodutibilidade da obra de arte oferece soluções múltiplas. É filho de um mundo em que a noção de subconsciente alarga o espectro de especulações sobre a verdadeira natureza do ser humano enquanto tal, assim como a teoria da relatividade remete tudo em discussão.
É no acto quarto de Le Stanze que esta ultrapassagem do filho ao pai se concretiza, tanto no nível prático, como no teórico. «Eu queria realçar uma questão em particular: há três passagens, que através do reflexo tornam-se sete». E acrescenta: «É recente a descoberta científica de que todos os fenómenos podem verificar-se na sua especularidade menos um, que não respeita esta lei»[24]. Admite-se sempre o limite do ser humano porque «sempre que se realiza uma descoberta através dos instrumentos da arte, ela nunca é microscópica ou macroscópica, mas de dimensão humana.»[25]
O raciocínio vai beber às fontes dos pitagóricos e ao domínio da física quântica:
«O número três é composto da paridade dos dois (pai e filho) que se reflectem no ponto díspar, central (espelho). O Quatro é par e não revela disparidade. No quatro o ponto central em que se verificam os opostos origina uma cruz, porquanto já não é atravessado por uma linha de projecção mas por duas, que formam quatro ângulos idênticos. Os pontos encontram-se nas extremidades de dois espelhos que se intersectam. Cada ponto projecta-se em diagonal, e não frontalmente, na superfície do espelho. (...) esta simetria da paridade impedir-nos-ia a verificação óptica do nosso duplo, desviando o olhar para os dois pontos laterais que representam a largura do espelho à nossa frente, enquanto a nossa imagem reflectida configurar-se-ia na extremidade oposta de um outro espelho, que veríamos só em diagonal e que teria a nossa própria espessura, assim como tem a espessura de um ponto.»[26]
A imaginação entra numa outra dimensão: «Opticamente, então, veremos somente as duas dimensões: mas depois de ter experimentado a terceira, podemos imaginar a quarta»[27] onde o espaço-tempo submete-se à dilatação e à aceleração: «à velocidade mínima temos o máximo do espaço e com o máximo da velocidade chegamos aos quatro pontos que aderem firmemente ao central, ainda escondido. Por esta razão a exposição número quatro só pode ser ‘O Tempo’ que nós empregamos, e que os nossos instrumentos empregam, para ir de um para outro ponto de Le Stanze.»[28] Nos Quartos pistolettianos viaja-se numa realidade outra que prevê leis físicas próprias; viaja-se no tempo da história da arte que acelera até um futuro imaginado noutra dimensão, mas também num universo que é o pessoal, interior, íntimo que cada um protege dentro de si, no subconsciente que o artista estimula a sair e a explorar através do raciocínio.
«Na exposição, os períodos do tempo são levados ao extremo além da dinâmica sem imaginação que reveste o lugar. Mas aqui a imaginação apresenta-se em simultâneo com a sua explicação. Carreguei de memória o futuro e esta memória descarrega-se automaticamente a cada instante que entra no passado; enquanto os instrumentos que marcam mecanicamente a passagem do tempo não se movem para além do próprio mecanismo.»[29]
Considera-se o texto na sua função retórica de écfrase e no seu papel documentativo antes e depois da realização material da obra: «(...) Assim a pesquisa investiga também os mecanismos que avançam o pensamento. Cada um destes escritos, de facto, precede a realização física da exposição de que trata e segue o momento em que foi imaginada e decidida. Cada escrito passa funcionalmente a fazer parte da obra, porque as suas palavras ajustam a rota da imaginação, ao mesmo tempo que cada exposição ajusta a rota de cada escrito.»[30]
Os meios artísticos trabalham juntos na criação, concretização e conceptualização da instalação. Mas cada meio tem um papel definido: «a página escrita não passa de uma parte do motor, que não pode ser substituída por qualquer outra parte do mecanismo.»[31] Esta a razão pela qual Michelangelo Pistoletto não escreve muito mais sobre a quarta experiência de Le Stanze. A escrita não pode ser a materialização da imaginação particular de cada indivíduo.
Tal singularidade, juntamente com a centralidade, protagonizam a quinta exposição. Nesta «as dimensões variam conforme a expansão ou a contracção dos volumes em torno desse centro em que todas as linhas convergem. Assim como um cubo pode ter qualquer dimensão mantendo sempre o mesmo centro, também os quartos contraem-se e expandem-se fisicamente à volta do seu ponto central.»[32] Tal como actua esta redução-dilatação, na sexta exposição teoriza-se a dilatação do raio de expressão do pai no próprio filho. A imagem poética criada pelas palavras toma vida na Galleria Stein, agora microcosmo que reflecte o macrocosmo da vida e das relações familiares. «(...) o verdadeiro título desta exposição deveria ser O Afastamento. (...) A despedida é o símbolo deste destaque. O pai que se afasta vê os filhos cada vez mais pequenos até ao desaparecimento. Mas na realidade os filhos não minguam nem desaparecem: algures, continuam os mesmos.»[33]
O real e o virtual são assim como que fenómenos a dividir para duplicar os quartos, como se entrassem no mecanismo da perspectiva óptica. «A reprodução renuncia à substituição total da galeria, e o espaço verdadeiro absorve a reprodução»[34], tal como a parede seiscentista de um atelier de artista absorve um notável trompe l’oeil executado por Gijsbrechts. A parede revela sempre o limite entre a ficção representativa e o real da matéria.
A sétima exposição exacerba este conceito. Sendo a reprodução especular da primeira, nela o performer parte um rectângulo do espelho colocado ao fundo dos quartos e aplica às aberturas material para dar ao seu vazio a nova forma do espelho. «Assim as passagens resultarão ‘falsas’ de um lado e do outro do espelho, enquanto este se apresentará na sua forma real.»[35]
E complica-se na oitava, em que «o positivo e o negativo, assim como o pleno e o vazio, interceptam-se sem permitir visualizar o ponto de passagem entre realidade e imagem», que o autor identifica com o espelho. «Assim, mesclando a visão imaginada com a visão física, o olhar pode partir quer da entrada quer da parede oposta, para lá das três passagens.»[36] Justifica-se a imagem apresentada como «correspondente às dimensões da primeira passagem» do ponto de vista que é o «do lado oposto dos quartos.»[37]
Na nona exposição o positivo é o mundo dos vivos e o negativo o dos mortos. «A minha nona exposição é a visita ao Inferno. Mas o seu título é A Aproximação (...) A lápide que sela o mundo em que agora vive a minha mãe será colocada na última parede da galeria. Esta lápide apresentar-se-á como limite virtual que separa duas formas de uma mesma realidade.»[38]
Exploram-se todas as realidades verdadeiras e imaginárias que o artista conhece: parte da realidade real dos quartos da galeria expostos na sua nudez e naturalidade na décima exposição; e passamos por uma realidade onírica em que as paredes da Veneza barroca sugerem perfeição de estilo e saturação do espaço disponível. «(...) A visita a alguns interiores de casas venezianas, barrocas, onde encontrei a mesma perfeição da imagem (com que sonhei paredes completamente decoradas). Aqui também, nenhuma parte de nenhuma parede foi deixada sem a intervenção coerente e constante que forma o estilo. Estes ambientes reais concretizam o sonho unitário de quem os imaginou (...) A Transferência é o título deste décimo primeiro capítulo.»[39] No momento da produção literária, Pistoletto toma consciência do processo «alquímico» pelo o qual a tinta torna-se palavra no suporte branco que é o rectângulo da folha de papel, assim como a branca parede rectangular da Galleria Stein é suporte ideal à realidade das palavras escritas.
No último capítulo, ao branco do papel-parede opõe-se o negro de uma folha de papel sem qualquer texto, enviada pela galeria aos destinatários dos onze convites precedentes «como anúncio e realização da décima segunda exposição.»[40]
O monocromatismo da folha de papel encaixa no meio artístico contemporâneo de Pistoletto. Nos anos sessenta toma-se como ponto de partida «a característica factual da matéria configurada»[41] para alcançar uma eficácia expressiva impossível nos traços pessoais e emotivos. O fruidor torna-se extremamente importante porque cabe a ele completar a obra, ele é chamado a participar activamente, através de uma contínua interacção com a obra de arte que neste caso específico é o papel preto.
A colaboração entre fruidor e obra de arte não é em si inovação. Esta foi sempre requerida por parte do artista. O próprio trompe l’oeil de Gijsbrechts não faria sentido sem a reacção do observador. Mas em Pistoletto surgem novas condições que são diferentes das que existiam no passado flamengo. Admite-se que a obra de arte é somente em parte a definitiva criação do artista porque ela precisa de ser completada e definida no processo de fruição.
2009 Bienal de Veneza
Michelangelo Pistoletto parte 20 dos 22 espelhos alinhados numa das salas do Arsenal de Veneza.
«No espelho partido ficam formas negras, o documento de um acto, uma fotografia instantânea memória de um passado. O espelho que representa o ‘aqui e agora’ remete a um acto criativo que é já ‘passado’. Aquele negro foi um ‘presente’. O paradoxo está em o espelho tornar-se testemunha do que já foi e do que será. (…) é o nada que contém o tudo, e também o que deverá ser.»[42]
É o paradoxo de Gijsbrechts e o número «0». O «negro» é o negro da carta monocromática enviada pela décima segunda exposição de Le Stanze.
Lendo as partes negras na óptica da física quântica, estas poderão ser imaginadas como buracos negros que «podem ter passagens para outros mundos. Se quiséssemos mergulhar num buraco negro, poderíamos reemergir, pensa-se, numa parte diferente do Universo e noutro tempo...»[43]
No fundo, o próprio Pistoletto escreve, a propósito da instalação de 2000 [44] que «o espelho faz de ponte entre o visível e o invisível. (…) Reflecte potencialmente qualquer lugar e continua a reflectir também na ausência do olho humano.»[45]
A reflexão, longe de puro fenómeno da física, torna-se interior e privada. Se a arte é depositária de uma possibilidade quase infinita de reflexão, reprodução e recriação da realidade universal, não é então o espelho o meio mais adequado para a actividade contempladora do homem?
A imagem reflectida do homem é o homem mas num outro espaço, o do espelho. Se o presente é na prática o único momento em que vivemos, é então o nosso mundo. Logo, a imagem reflectida vive num outro mundo, um mundo paralelo.
Se os buracos negros podem ser entradas para um País de Maravilhas, será que os espelhos pistolettianos podem ser considerados portais para o conhecimento do ser? Será que a imagem reflectida pode ser um alter ego?
2010 Palazzo Strozzi, Florença
Metro Cúbico de Infinito num Cubo Espelhado é o nome de uma entre as mais recentes instalações que Pistoletto coloca no pátio renascentista do Palazzo Strozzi, em Florença. Trata-se de uma estrutura cúbica recoberta externamente por chapas opacas de aço e revestida internamente por espelhos. Ao seu centro, um outro cubo: Metrocubo de Infinito, obra realizada em 1966, também constituída por superfícies espelhadas.
«Além do título técnico, a ideia é que o indivíduo que entre no meu cubo espelhado faça uma experiência de tipo universal. Quem se reflecte, vê a sua imagem reflectida até o infinito. (…) É um ir longe real, não divino ou metafísico, para voltar ao presente. E há um outro cubo que, por sua vez, se reflecte»[46] levando até ao limite as possibilidades de reflexão.
«Quem entra encontra dentro um outro cubo que também se repete ao infinito, mas onde não pode entrar, pois é intangível. Fica um mistério que todavia logo se revela, porque dentro do grande cubo faz-se a experiência do que está dentro do cubo intangível. Ou seja, faz-se a experiência de conhecer, de imaginar.»[47]
A moldura renascentista da instalação ajuda na reflexão sobre um passado glorioso que se deve redescobrir porque importante para perceber quem somos e para onde vamos. A multiplicação e a divisão já exploradas em 1978 aparecem aqui de forma diferente mas com a mesma intenção de unificar o uno e o todo. O homem como ser de múltiplas facetas mas também elemento-indivíduo parte do todo-sociedade, ou todo-mundo, todo-universo. Um homem que deve conhecer o seu passado para reflectir sobre o seu presente e melhorar o próprio futuro.
A nível estrutural, Metro Cúbico de Infinito num Cubo Espelhado é um hipercubo. Um hipercubo é a proposição teórica de um poliedro de quarta dimensão. Para perceber a representação geométrica de um hipercubo, deve-se recorrer a uma analogia: para formar um quadrado, unem-se dois segmentos de recta paralelos e de mesmo comprimento através dos seus extremos por outros dois segmentos de recta. Para representar um cubo, unem-se os vértices de dois quadrados por quatro segmentos de recta. Para representar um hipercubo, unem-se todos os vértices de dois cubos por segmentos de recta. Esse cubo tem dimensões superiores às três comummente conhecidas e percebidas: comprimento (ou profundidade), largura e altura. A quarta dimensão (espacial) é ortogonal às outras dimensões espaciais e deveria ser identificada com o tempo (ou dimensão temporal). Mas a consideração de que o tempo coincide com a quarta dimensão advém da pesquisa nos estudos de funções na física matemática. Foi em 1754 que se formulou pela primeira vez a possibilidade de o tempo poder ser considerado uma quarta dimensão. A aceitação chegou em 1895 com A Máquina do Tempo de H. G. Wells. O viajante no tempo ilustra o seu conhecimento ao público: «Prestem atenção: deverei contradizer um par de ideias quase universalmente aceites. Por exemplo, a geometria como vos foi ensinada na escola baseia-se numa concepção errada. (...) Não quero que tomem por adquirido nada que não tenha fundamento; cedo irão admitir, por vós próprios, o que vos pergunto. Sabem com certeza que uma linha matemática, uma linha de espessura zero, não tem real existência. Ensinaram-vos isto, certo? A mesma coisa se pode dizer para um plano matemático: trata-se de simples abstracções. (...) Nem um cubo que tenha só o comprimento, largura e altura, pode ter real existência. (...) Um cubo que não dura nem por um instante, pode ele ter uma existência real? (...) Obviamente – continuou o viajante no tempo – qualquer corpo real deve estender-se nas QUATRO direcções: deve aliás possuir comprimento, largura, altura e também duração. Todavia, devido a uma natural fraqueza da carne, de que já falarei, somos inclinados a descurá-lo. Existem a sério quatro dimensões; três podem ser definidas como os planos do espaço, enquanto a quarta é o tempo. Mas há, além disso, a tendência de estabelecer uma distinção ilusória entre as três primeiras e a última, porque a nossa consciência continua a mover-se de uma maneira intermitente na mesma direcção do tempo desde o princípio ao fim da nossa vida.»[48]
Wells reconheceu todavia que o fascínio do discurso não estava simplesmente no conceito do tempo, mas também no espaço, a quarta dimensão onde se vive mas de que se não tem a percepção. Uma obra como a de Pistoletto põe o observador a raciocinar sobre quem ele próprio é e sobre a sua posição no mundo ou até em vários mundos. É um cubo delimitado por paredes de aço que ao mesmo tempo abre dentro de si a possibilidade, aceitando que a vida no espelho possa ser real, de explorar milhares de mundos possíveis. É um universo num quarto que lembra o espaço de Misner, mas que procura uma memória do passado capaz de abraçar o presente para criar um futuro melhor. No espaço de Misner, onde tal espaço é idealizado, o cubo pode conter um universo inteiro. As paredes opostas identificam-se todas umas com as outras, pelo que, ao atravessar uma parede, emerge-se imediatamente da parede oposta. O tecto também se identifica com o soalho. Assim, se passássemos através das paredes do cubo voltaríamos ao mesmo quarto. Sendo as paredes espelhadas, cada uma delas é limite entre o quarto interno ao cubo e outros quartos idênticos que se reproduzem ao infinito. De facto, há um clone exacto do espectador em cada quarto, que agirá de maneira igual e que contraria cada acção sua. O espaço de Misner é muitas vezes estudado, porque tem a mesma tipologia de um buraco de verme.[49] Se as paredes se movessem, então as viagens no tempo talvez fossem possíveis no Universo de Misner. Se a viagem temporal não é fisicamente possível para o fruidor de arte, em compensação é-lhe possível uma viagem de introspecção, do macro universal ao micro pessoal. A análise interior admite a dificuldade de um observador se observar a si mesmo. O espelho é um meio porque «duplica» o indivíduo, na tentativa de ultrapassar a dualidade que Pistoletto refere, numa evocação comtiana.[50] Na esperança de um mundo utópico que lembra o de Giordano Bruno, o mestre da Arte Povera italiana deixa uma mensagem: «O passado tem partes boas e positivas, e uma parte negativa que é um aviso. Ele conduz avante, mas o progresso actual revela a parte negativa desse passado. Eis a razão pela qual penso que a revisitação do passado tem em si as sementes do futuro: permite libertar-nos, se soubermos construir bem, do que é negativo.»[51]
Conclusões
Michelangelo Pistoletto é portador de um conceito quase definível como «comunismo da arte». A arte que hoje em dia já não é elitista mas acessível a todos, porque todos nós formamos a sociedade, um só indivíduo dividido em milhares. Despertar a consciência destes através da reflexão especular e introspectiva é um meio para alcançar a construção de um Novo Mundo baseado num novo Humanismo de sabor renascentista. A viagem no tempo através das épocas é assim inevitável para a formação de uma consciência social, histórica e artística. Mas também o próprio indivíduo não pode fazer parte de um todo sem a percepção do que ele próprio é verdadeiramente. Logo, a viagem nas épocas passadas é também viagem nas várias alturas da vida de uma pessoa, que tenta a exploração de si através do meio de reflexão que é o espelho. O espelho liga o eu consciente ao eu subconsciente e tenta, através da imagem, unificá-los para viverem em harmonia: consigo próprio, com o outro, com o todo. A arte torna-se crucial porque «embora a vida possa imitar a arte, é igualmente verdade o contrário.»[52]
Footnotes