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«Sem saudades na lembrança, eu disse adeus à terrinha e mais ao lar. Levo na alma a luz da esperança e fé em Deus, parto a rir e a cantar. Despedi-me das ovelhas, do meu cão das casas velhas, do lugar onde nasci. Não me importo de ir à toa que o meu sonho é ver Lisboa mais o mar que eu nunca vi. Adeus ó terra, adeus linda serra de neve a brilhar, adeus aldeia, que eu levo na ideia não mais cá voltar. Diz que a sorte das pessoas – sempre ouvi – vem do nome que elas têm. Coisas más ou coisas boas, vem daí, e comigo calha bem. Eu no monte era moçoila, tinha o nome de Papoila, que no campo anda a lidar. Mas a Graça bem dizia, como sou também Maria tinha que ir pró pé do mar.» «A Canção da Papoila» de Raul Portela e Raul Ferrão
Pensar Maria Papoila (1937) como uma fenda na produção cinematográfica portuguesa do Estado Novo é no mínimo um esforço. Aliás, pensar no filme de Leitão de Barros como um objecto de insinuação, subentendidos políticos e de morais desviantes é um trabalho equivalente a procurar as potencialidades bélicas de uma luva branca. Ainda assim, optei por Maria Papoila em detrimento de tantos outros títulos que mais facilmente se apresentariam como fendas abertas na política do espírito de António Ferro: certamente que alguns dos filmes de Manuel Guimarães totalmente desmembrados pela censura seriam bons exemplos e os trabalhos de Oliveira desses tempos contêm também elementos de fissura, ou o caso notório de Catembe (1964) – que sofreu 103 cortes da censura reduzindo a metade os metros de película exibível – e de tantos outros filmes dos inícios do cinema novo português, como sejam Pássaros de Asas Cortadas (1963) ou os primeiros títulos de António Macedo e Paulo Rocha. Exactamente por serem esses títulos notórios na sua função disruptiva e nas suas intenções políticas, creio que a força subversiva de uma «comédia popular» como Maria Papoila é tanto mais forte quanto mais discretos se apresentam os seus desvios e os seus intentos (muitos deles involuntários talvez – mas não é toda a obra de propaganda um objecto representativo das próprias fraquezas do regime que defende e protege?), como hoje em dia são os «filmes comerciais», os blockbusters, que melhor glosam os nossos dias e cristalizam em arquétipos perfeitamente polidos aquilo que é a sociedade capitalista que os produz, distribui e consome – sendo tanto melhores quanto mais conscientes são dessa engrenagem e a exibem sem pudores e de modo verdadeiramente reaccionário, veja-se Furious 7 (2015).
Regressando ao filme que aqui me traz, há nele uma singularidade que o torna um caso de excepção no cinema nacional por uma variedade de motivos que não custa elencar: (1) trata-se da única aparição (relevante) de Mirita Casimiro no cinema, como nos explica Félix Ribeiro no sua bíblia Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português; a jovem artista desceu das Beiras a Lisboa em meados da década de 1930 onde se estreia nos palcos da capital no Teatro Maria Vitória com a revista Viva a Folia onde interpreta uma versão de si mesma, um cantadeira das tradições beirãs, alegre e despretensiosa, que entre cantorias lança as amáveis ferroadas aos costumes da «grande cidade», tornando-se imediatamente numa das figuras mais queridas do público; (2) Leitão de Barros, ao compreender o sucesso da artista e tendo em vista a capitalização dessa popularidade, junta-se a Campos Figueira que detinha grande poder sobre o Parque Mayer e ambos produzem o filme (numa produtora de um único filme, a Filmes Lumiar – o que não é incomum na nossa história cinematográfica), que funciona acima de tudo como veículo à recém-aparecida estrela do espectáculo nacional; (3) é o primeiro filme em que Vasco Santana participa na escrita do argumento e a única comédia [sonora – houvera Lisboa, Crónica Anedótica (1930)] realizada por Leitão de Barros, que se aperfeiçoaria nos «filmes de barbas» durante a década seguinte e nos documentários institucionais; (4) é um dos primeiros filmes nacionais a sofrer cortes de censura – note-se que só com o início da guerra civil espanhola se apertou o crivo nas exibições cinematográficas em Portugal –, cerca de quatro minutos, que a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema restaurou (juntamente com uma limpeza digital), acrescentando à metragem conhecida a deserção do exército por parte do «namorado» magala de Maria Papoila.
Mais do que ser um caso de excepção, o que interessa em Maria Papoila é o facto de nele sentirmos um projecto ainda muito incipiente de propaganda e que por isso mesmo se denuncia a cada motivo mais marcadamente político. Se o desejo era construir um retrato do mundo urbano como local de vícios e devaneios imorais por oposição à pureza do campo na sua bondade altruísta – basta considerar a forma como a cidade é vista em Gado Bravo (1934) ou Aldeia da Roupa Branca (1939), antro perigosamente desviante, especialmente para os homens... –, esse mesmo intento sai furado pelo desejo da própria personagem de conhecer a grande cidade e de se deixar fascinar por ela; mais, como refere Leitão Ramos no seu dicionário, o filme introduz um «corte no ruralismo róseo» ao retratar a necessidade da migração dos pobres para a cidade – «adeus aldeia, que levo na ideia não mais cá voltar». A acrescentar a isto, e diferentemente do que se haveria de cimentar nas «comédias à portuguesa» daí em diante, o centro não é a pequena burguesia de pátio que reconstitui na cidade o microcosmos de aldeia que Salazar tanto presava para o «seu» país é, pelo contrário, a faixa de população pobre, as sopeiras e os magalas que servem e obedecem à classe rica das Avenidas Novas e do Estoril – não por acaso se dizia em Lisboa deste, e de outros que tais, se tratar de um «filme de saloios». Curioso será notar a diferença de tom com que Barros trata o novo monumento do regime, o Instituto Superior Técnico, por oposição a António Lopes Ribeiro na sua encomenda de nome A Revolução de Maio (1937) – patrocinado pela Presidência do Conselho de Ministros, Ministérios dos Negócios Estrangeiros, do Interior, da Agricultura, da Marinha e da Guerra, União Nacional e PVDE. Num, é através da visita ao Instituto Nacional de Estatística que se convence o perigoso comunista das maravilhas do regime ao passo que Mirita Casimiro olha o monumento – o Prior Ténico como lhe chama – como um grande templo católico, o que convenhamos não estará arquitectonicamente muito longe da verdade, evidenciando o provincianismo e o gosto pela exibição das grandezas que o Estado Novo nunca soube ostentar.
Dentro da própria obra de Leitão de Barros, Maria Papoila surge como síntese dos seus trabalhos anteriores: o clímax resume-se a um mesmo sacrifício da honra por parte da pura campónia que ama o pecaminoso rapaz polígamo que ocorria em Pupilas do Senhor Reitor (1935); segue uma proximidade ao bas-fond lisboeta de Lisboa, Crónica Anedótica – os bares, os gatunos, as mulheres que fumam, as sopeiras (nesse filme era Beatriz Costa) e os seus magalas (o «pobrete mas alegrete» do «fatalismo sem revolta») e, de certo modo, o desvio para o filme de tribunal e do misterioso roubo, pode encontrar-se (de modos distintos, claro) no inacabado O Homem dos Olhos Tortos (1918). Há pois uma sensação de ponto (final) tonal na obra de Leitão de Barros que seguiria a forma e o estilo de Bocage (1936) para quase todas as ficções que se seguiriam: Camões (1946), Inês de Castro (1944), Vendaval Maravilhoso (1949).
Por tudo isto não é por acaso que nas suas Histórias do Cinema João Bénard da Costa se refira ao filme de Leitão de Barros como «a obra mais interessante das quantas que nos ficaram desses negros middle-thirties». É que a proximidade a uma certa Lisboa das pessoas que vindo de fora se sentem alienadas é nem mais nem menos que a força do novo cinema dos anos sessenta – altura em que finalmente se começou a dar a devida (sempre pouca) atenção a esta obra. Não vive Maria Papoila, na nova cidade, um drama como o de Júlio em Os Verdes Anos (1963) ou da outra Maria de Dom Roberto (1962) e de tantas mais figuras do cinema dessa época? Um mesmo desejo de conhecer mundo, de abandonar a pequenez da sua terra para logo depois descobrirem a estreiteza do país e dos que o fazem todos os dias parecer mais pequeno. Há pois um desejo de mudança e um muro terrível que se chama Estado Novo. Maria Papolia é então muito mais um retrato triste de um país pequeno que tenta disfarçar a sua pequenez e muito menos uma «lição dirigida às massas com o objectivo de ensinar que o cosmopolitismo e a sofisticação existentes nos Estoris iam pouco além de acessórios exteriores e fúteis (...)»[1].
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Não posso deixar de terminar, em forma de post scriptum alargado, sem uma nota sobre as conotações homossexuais presentes no filme de Leitão de Barros. Em Homossexuais no Estado Novo, São José Almeida refere-se a uma entrevista em que Mário Cesariny descreve «um famoso cineasta» que distribuía dinheiro pelos marçanos da Rua do Arsenal – e que esse cineasta era, explicou o entrevistador mais tarde, o nosso Leitão de Barros. Com isso em mente não se pode olhar da mesma forma para certas tiradas de diálogo («No meu tempo um boi era um boi e um gato era um bicho» ou ainda «[na grande cidade] algumas mulheres até se vestem como homens, está o mundo às avessas») e para as sequências de militares em poses à Pudovkin ouvindo «O Fado do Ganga» cantado por Amarante. Nessa última sequência ouve-se «Soldado que foste às sortes/ vai para o quartel, não te importes/ que lá ninguém te faz mal./ Não tremas que não te comem/ vais aprender a ser homem /p’ra defender Portugal», enquanto se intercalam os rostos de jovens soldados fumando ou olhando em silêncio com os focinhos de poderosos cavalos reluzentes. Parece-me que mais homo-erótico seria impossível, mas talvez só o seja hoje como o é também a homossexualidade latente em certos filmes de Rock Hudson e James Stewart (veja-se o cinema de Mark Rappaport para mais eloquentes esclarecimentos); aliás, nem para Leitão de Barros essa câmara sedutora se deveria fazer sentir de forma consciente já que na véspera da estreia do filme ele explicava que não pretendia renovar a técnica cinematográfica, que apenas desejava «realizar um espectáculo acessível» e que a forma melhor do cinema é o «espectáculo de multidões». Certo é que essa estética da clareza e da transparência hoje se encontra vidrada de muitos e incontáveis desvios, tresmalhos, claudicâncias, deslizes, e obsessões pessoais. Se não foi uma fenda à época, pode-se ver nele hoje uma fenda na imagem que o Estado Novo tentou criar para si e, mais importante, a semente de uma diferença e de uma consciência social que décadas depois acabaria por ver a luz do projector.
Footnotes