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O artigo 175 do Código Penal japonês proíbe a representação explícita dos órgãos genitais na esmagadora maioria dos produtos culturais (algumas raras excepções são feitas de acordo com a interpretação legal). Este tipo de censura percorre os últimos 150 anos japoneses e afectou principalmente o cinema, uma arte tão velha quanto a aplicação desta lei que, por sua vez, remonta à Era Meiji. Podemos argumentar que a proibição cria a transgressão e a negação social do explícito engendra o simbólico e o subliminar. Com três exemplos diferentes, veremos a seguir como os realizadores de cinema japoneses conseguiram contornar a censura.
1. Kenji Mizoguchi e Tai Kato: os poderes do phallus
Em Os Amantes Crucificados, um filme carregado de tensão erótica sem haver sequer um único beijo, Kenji Mizoguchi opta pela sugestão fálica para descrever o momento em que Mohei e Osan se entregam à paixão interdita e violam as regras sociais da época.
O poder erótico é-nos introduzido através de um invasão progressiva de elementos no plano. A ponta fálica da canoa começa por romper a serenidade da água, surge-nos depois a frágil Osan e finalmente Mohei fitando-a com desejo. Podemos argumentar que Mizoguchi já aqui queria estabelecer uma hierarquia simbólica: primeiro, o phallus como entidade pairante e unificadora dos destinos dos amantes, segundo, o objecto do desejo visto por Ele e, terceiro, o sujeito embriagado que não aguenta mais toda a tensão lancinante. A descarga emotiva vem logo a seguir como seria de antever.
Mohei faz os seus avanços silenciosamente, mantendo sempre o papel de servo e é, pela primeira vez, reciprocado. Quando isso sucede, a canoa que estava agora subentendida (pois percorria o plano de uma ponta a outra) começa a erguer-se e volta a liderar pictoricamente o plano como um símbolo fálico. A reacção extática de Mohei mais o plano que fecha a sequência com um fade (a canoa vazia, a água e a carnalidade suposta na cabana) confirma que os personagens tornam-se amantes pela primeira vez.
Tai Kato foi outro realizador que preferiu optar pela sugestão para contornar a obscenidade, mas ao contrário de Mizoguchi que queria remeter o acto sexual para a imaginação e estava interessado na catarse erótica, ele configurava os planos de maneira a que os elementos fálicos ilustrassem as profundezas (o id, se quisermos ser psicanalíticos) de personagens estóicos que nunca chegavam a cumprir os desígnios das suas tentações carnais.
Na longa série de filmes Hibotan Bakuto (Jogadora da Peónia Vermelha), Junko Fuji interpreta Oryu, uma mulher yakuza que encontra várias peripécias e vários companheiros masculinos que a auxiliam a repor a justiça por onde passa. Todos os filmes terminam com a integridade a vencer o poder rastejante e suprimido do eros e Fuji acaba sempre como começou: sozinha e itinerante. No sexto capítulo da saga, Oryu Regressa, Tai Kato materializa os desejos ocultos da heroína, configurando exoticamente os planos com elementos fálicos.
No primeiro encontro entre os dois personagens, Aoyama e Oryu mal se encaram e olham com distância para o horizonte. Uma chaminé no canto esquerdo denuncia a geometria linear do enquadramento de Kato: todos os planos implicam uma certa rectidão que relembra, mais uma vez, a tensão silenciosa e sexual entre os dois estóicos. Quando os olhares se cruzam pela primeira vez, outra chaminé (desta vez a fumegar) surge no plano seguinte. Aoyama, não querendo cair em tentação, não volta a cruzar mais o olhar e sai de plano pelo lado esquerdo. Oryu observa-o expectante enquanto o som dos motores dos barcos fora de campo remete para o batimento cardíaco da sua ansiedade.
Já no final, depois do típico massacre dos vilões que une Aoyama e Oryu não no amor, mas na violência, Kato teve ainda a coragem de terminar o seu filme com mais um símbolo fálico.
Aoyama abandona Oryu depois de a ter ajudado. A sua reacção de agonia e rejeição é paralisada com um freeze-frame e o plano que encerra o filme é simplesmente uma torre, o que destoa completamente do melodramatismo da cena. Kato usa, portanto, os símbolos fálicos como último resquício carnal da perpetuação de um estado de autocensura e castidade. Para os santos, a sexualidade só pode ser vivida através dos símbolos, dos sonhos, das alucinações.
2. Beladona da Tristeza: a perversão do não-explícito
Parafraseando James R. Alexander no artigo «Obscenity, Pornography, and the Law in Japan»: «In Japanese law obscenity is defined in terms of the explicitness of visual images rather than anticipations of aberrant behavioral consequences.»
Isto quer dizer que a censura que provém do artigo 175 do Código Penal japonês facilmente, e no decorrer das décadas, se identificou com uma censura formal em vez de ser de conteúdo. No filme de animação vanguardista Beladona da Tristeza, a crueldade e perversidade das imagens prescindem totalmente da presença explícita do órgão para imprimir uma sensação porventura mais sensual, aterrorizadora e obscena do que se ele estivesse figurado. E, ainda assim, a censura não agiu. Muito mais preocupados com a imagem real e literal do que com transfigurações metafóricas, alquimias pictóricas, as entrelinhas da lei permitiram a sobrevivência e a revitalização da perversidade por vias do que está explícito no não-explícito.
Na cena em que Jeanne é brutalmente violada pelo rei e os seus súbditos, a vontade do legislador pudico está feita: não há órgãos sexuais chocantes e mesmo a vagina da personagem resume-se à sua insignificância lívida, como que apagada pela borracha do censor que aqui é o próprio realizador, Eiichi Yamamoto. Mas a dilaceração gráfica do corpo (que corresponde ao contraste cromático entre o vermelho e o branco da violação) deixa-nos sentir, sem ver, a abertura forçada do órgão e a penetração que aniquila, literalmente, a vida da mulher que jorra morcegos de sangue.
Levando o não-explícito ao limite do explícito, mas negando o grafismo genital, considerado por lei obsceno, Yamamoto na senda do seu mestre Osamu Tezuka introduz na animação (na arte desenhada) um local privilegiado onde as potencialidades de expressão e desdobramento metafórico ultrapassam qualquer constrangimento legal de obscenidade.
3. Tatsumi Kumashiro e a censura provocatória do não-censurável
Durante os anos 70 e face à explosão do exploitation, a indústria japonesa viu-se forçada a democratizar as barras de censura: quer fossem mosaicos desfocados, barras pretas ou mesmo ligeiros apagões na película. Isto parecia condicionar a capacidade subliminar de certas imagens, já que o explícito passava a ser meramente escondido. Com Tatsumi Kumashiro, realizador infelizmente esquecido que fabricou durante toda a sua vida películas eróticas para a Nikkatsu, a iconoclastia era exercida no campo oposto ao de Yamamoto, embora a desaprovação no que dizia respeito à censura fosse em tudo semelhante. Um aproveitava a animação para nada censurar, outro censurava em demasia, com pompa e circunstância.
Como é possível observar nesta plongée de Deusa Yakusa – Sensualidade e Honra, a barra negra, muito mais extensa do que o habitual, tem vida própria e inclusive acompanha o movimento dos amantes na cama.
Noutro caso, censura-se mesmo aquilo que não seria necessário censurar, pois o corpo do protagonista claramente cobre o órgão da amante. As barras da censura permanecem entre o casal, nada censurando ou, se quisermos, censurando o ar.
De maneira mais provocatória ainda, Kumashiro chega a usar a barra negra como um phallus que dilacera a imagem em dois.
Qual a razão da censura sobrecarregada na obra de Kumashiro? Em primeiro lugar, parece ser uma mera paródia dos regulamentos que os realizadores de películas eróticas tinham de cumprir para ver o seu filme distribuído comercialmente. Neste sentido, a ocultação é subversiva pois ri de si própria, hiperbolizando as regras do sistema e da lei, mas também funciona a outro nível: ela denuncia a actividade ambígua do censor. As barras pretas associam os modos de escondimento a um conteúdo obsceno. Ao censurar, umas vezes aleatoriamente, outras com um significado claramente simbólico, Kumashiro tencionou colocar o espectador numa zona indiscernível onde ele é forçado a questionar o cabimento da censura, o conteúdo detrás das barras num descontrolo formal. Mais, ele subverte o olhar ao fazer-nos cair num impasse entre conteúdos legalmente censurados e conteúdos sem nexo, criados por si por capricho. No limite, pretende esvaziar a questão da censura, uniformizar o legal com o absurdo, e sublinhar este simples facto: a obscenidade está nos olhos de quem a perscruta, imagina ou projecta. E, portanto, o seu controlo estatal é nada mais do que uma piada.