Subversão do artigo 175 do Código Penal Japonês: três casos
Miguel Patrício
O artigo 175 do Código Penal japonês proíbe a representação explícita dos órgãos genitais na esmagadora maioria dos produtos culturais (algumas raras excepções são feitas de acordo com a interpretação legal). Este tipo de censura percorre os últimos 150 anos japoneses e afectou principalmente o cinema, uma arte tão velha quanto a aplicação desta lei que, por sua vez, remonta à Era Meiji. Podemos argumentar que a proibição cria a transgressão e a negação social do explícito engendra o simbólico e o subliminar. Com três exemplos diferentes, veremos a seguir como os realizadores de cinema japoneses conseguiram contornar a censura.
1. Kenji Mizoguchi e Tai Kato: os poderes do phallus
Em Os Amantes Crucificados, um filme carregado de tensão erótica sem haver sequer um único beijo, Kenji Mizoguchi opta pela sugestão fálica para descrever o momento em que Mohei e Osan se entregam à paixão interdita e violam as regras sociais da época.
Kenji Mizoguchi, «Os Amantes Crucificados», 1954
O poder erótico é-nos introduzido através de um invasão progressiva de elementos no plano. A ponta fálica da canoa começa por romper a serenidade da água, surge-nos depois a frágil Osan e finalmente Mohei fitando-a com desejo. Podemos argumentar que Mizoguchi já aqui queria estabelecer uma hierarquia simbólica: primeiro, o phallus como entidade pairante e unificadora dos destinos dos amantes, segundo, o objecto do desejo visto por Ele e, terceiro, o sujeito embriagado que não aguenta mais toda a tensão lancinante. A descarga emotiva vem logo a seguir como seria de antever.
Kenji Mizoguchi, «Os Amantes Crucificados», 1954
Mohei faz os seus avanços silenciosamente, mantendo sempre o papel de servo e é, pela primeira vez, reciprocado. Quando isso sucede, a canoa que estava agora subentendida (pois percorria o plano de uma ponta a outra) começa a erguer-se e volta a liderar pictoricamente o plano como um símbolo fálico. A reacção extática de Mohei mais o plano que fecha a sequência com um fade (a canoa vazia, a água e a carnalidade suposta na cabana) confirma que os personagens tornam-se amantes pela primeira vez. Tai Kato foi outro realizador que preferiu optar pela sugestão para contornar a obscenidade, mas ao contrário de Mizoguchi que queria remeter o acto sexual para a imaginação e estava interessado na catarse erótica, ele configurava os planos de maneira a que os elementos fálicos ilustrassem as profundezas (o id, se quisermos ser psicanalíticos) de personagens estóicos que nunca chegavam a cumprir os desígnios das suas tentações carnais. Na longa série de filmes Hibotan Bakuto (Jogadora da Peónia Vermelha), Junko Fuji interpreta Oryu, uma mulher yakuza que encontra várias peripécias e vários companheiros masculinos que a auxiliam a repor a justiça por onde passa. Todos os filmes terminam com a integridade a vencer o poder rastejante e suprimido do eros e Fuji acaba sempre como começou: sozinha e itinerante. No sexto capítulo da saga, Oryu Regressa, Tai Kato materializa os desejos ocultos da heroína, configurando exoticamente os planos com elementos fálicos.
Tai Kato, «Oryu Regressa», 1970
No primeiro encontro entre os dois personagens, Aoyama e Oryu mal se encaram e olham com distância para o horizonte. Uma chaminé no canto esquerdo denuncia a geometria linear do enquadramento de Kato: todos os planos implicam uma certa rectidão que relembra, mais uma vez, a tensão silenciosa e sexual entre os dois estóicos. Quando os olhares se cruzam pela primeira vez, outra chaminé (desta vez a fumegar) surge no plano seguinte. Aoyama, não querendo cair em tentação, não volta a cruzar mais o olhar e sai de plano pelo lado esquerdo. Oryu observa-o expectante enquanto o som dos motores dos barcos fora de campo remete para o batimento cardíaco da sua ansiedade. Já no final, depois do típico massacre dos vilões que une Aoyama e Oryu não no amor, mas na violência, Kato teve ainda a coragem de terminar o seu filme com mais um símbolo fálico.
Tai Kato, «Oryu Regressa», 1970
Aoyama abandona Oryu depois de a ter ajudado. A sua reacção de agonia e rejeição é paralisada com um freeze-frame e o plano que encerra o filme é simplesmente uma torre, o que destoa completamente do melodramatismo da cena. Kato usa, portanto, os símbolos fálicos como último resquício carnal da perpetuação de um estado de autocensura e castidade. Para os santos, a sexualidade só pode ser vivida através dos símbolos, dos sonhos, das alucinações.
2. Beladona da Tristeza: a perversão do não-explícito
Parafraseando James R. Alexander no artigo «Obscenity, Pornography, and the Law in Japan»: «In Japanese law obscenity is defined in terms of the explicitness of visual images rather than anticipations of aberrant behavioral consequences.» Isto quer dizer que a censura que provém do artigo 175 do Código Penal japonês facilmente, e no decorrer das décadas, se identificou com uma censura formal em vez de ser de conteúdo. No filme de animação vanguardista Beladona da Tristeza, a crueldade e perversidade das imagens prescindem totalmente da presença explícita do órgão para imprimir uma sensação porventura mais sensual, aterrorizadora e obscena do que se ele estivesse figurado. E, ainda assim, a censura não agiu. Muito mais preocupados com a imagem real e literal do que com transfigurações metafóricas, alquimias pictóricas, as entrelinhas da lei permitiram a sobrevivência e a revitalização da perversidade por vias do que está explícito no não-explícito.
Eiichi Yamamoto, «Beladona da Tristeza», 1973
Na cena em que Jeanne é brutalmente violada pelo rei e os seus súbditos, a vontade do legislador pudico está feita: não há órgãos sexuais chocantes e mesmo a vagina da personagem resume-se à sua insignificância lívida, como que apagada pela borracha do censor que aqui é o próprio realizador, Eiichi Yamamoto. Mas a dilaceração gráfica do corpo (que corresponde ao contraste cromático entre o vermelho e o branco da violação) deixa-nos sentir, sem ver, a abertura forçada do órgão e a penetração que aniquila, literalmente, a vida da mulher que jorra morcegos de sangue. Levando o não-explícito ao limite do explícito, mas negando o grafismo genital, considerado por lei obsceno, Yamamoto na senda do seu mestre Osamu Tezuka introduz na animação (na arte desenhada) um local privilegiado onde as potencialidades de expressão e desdobramento metafórico ultrapassam qualquer constrangimento legal de obscenidade.
3. Tatsumi Kumashiro e a censura provocatória do não-censurável
Durante os anos 70 e face à explosão do exploitation, a indústria japonesa viu-se forçada a democratizar as barras de censura: quer fossem mosaicos desfocados, barras pretas ou mesmo ligeiros apagões na película. Isto parecia condicionar a capacidade subliminar de certas imagens, já que o explícito passava a ser meramente escondido. Com Tatsumi Kumashiro, realizador infelizmente esquecido que fabricou durante toda a sua vida películas eróticas para a Nikkatsu, a iconoclastia era exercida no campo oposto ao de Yamamoto, embora a desaprovação no que dizia respeito à censura fosse em tudo semelhante. Um aproveitava a animação para nada censurar, outro censurava em demasia, com pompa e circunstância. Como é possível observar nesta plongée de Deusa Yakusa – Sensualidade e Honra, a barra negra, muito mais extensa do que o habitual, tem vida própria e inclusive acompanha o movimento dos amantes na cama.
Tatsumi Kumashiro, «Deusa Yakusa – Sensualidade e Honra», 1973
Noutro caso, censura-se mesmo aquilo que não seria necessário censurar, pois o corpo do protagonista claramente cobre o órgão da amante. As barras da censura permanecem entre o casal, nada censurando ou, se quisermos, censurando o ar.
Tatsumi Kumashiro, «Deusa Yakusa – Sensualidade e Honra», 1973
De maneira mais provocatória ainda, Kumashiro chega a usar a barra negra como um phallus que dilacera a imagem em dois.
Tatsumi Kumashiro, «Deusa Yakusa – Sensualidade e Honra», 1973
Qual a razão da censura sobrecarregada na obra de Kumashiro? Em primeiro lugar, parece ser uma mera paródia dos regulamentos que os realizadores de películas eróticas tinham de cumprir para ver o seu filme distribuído comercialmente. Neste sentido, a ocultação é subversiva pois ri de si própria, hiperbolizando as regras do sistema e da lei, mas também funciona a outro nível: ela denuncia a actividade ambígua do censor. As barras pretas associam os modos de escondimento a um conteúdo obsceno. Ao censurar, umas vezes aleatoriamente, outras com um significado claramente simbólico, Kumashiro tencionou colocar o espectador numa zona indiscernível onde ele é forçado a questionar o cabimento da censura, o conteúdo detrás das barras num descontrolo formal. Mais, ele subverte o olhar ao fazer-nos cair num impasse entre conteúdos legalmente censurados e conteúdos sem nexo, criados por si por capricho. No limite, pretende esvaziar a questão da censura, uniformizar o legal com o absurdo, e sublinhar este simples facto: a obscenidade está nos olhos de quem a perscruta, imagina ou projecta. E, portanto, o seu controlo estatal é nada mais do que uma piada.