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No Instituto Inhotim, maravilhoso museu brasileiro dedicado à relação entre arte e natureza, há uma galeria transparente chamada Sonic Pavilion, obra do artista Doug Aitken. É um cilindro de vidro, onde nos sentamos no abraço da paisagem enquanto escutamos a amplificação de um som, um único som, composto de múltiplos ruídos. É uma espécie de sopro grave, encorpado. Provém de um ponto no chão que é a porta de saída de uma captação sonora, o último troço de um canal escavado na terra através de um poço com 202 metros de profundidade. A soma dos ruídos produzidos ao longo do percurso, do fundo até à superfície, é a vida interior do corpo da terra (areia, rochas, tremores e choques) captada através de um microfone, ou melhor, de uma sequência de microfones colocados em pontos sucessivos do canal. Aquilo que ouvimos é a voz do subsolo, um poderoso registo sónico que atravessa o silêncio, literalmente, para chegar até nós. Um silêncio resgatado. A escrita — penso — não é mais do que esse microfone, o instrumento que utilizamos para sondar o lugar mais profundo do nosso universo, permitindo que um som indefinido atravesse o vazio e seja partilhado, partilhável. Melhor ainda: a escrita é o conjunto todo dos microfones, posicionados em sítios diferentes ao longo do canal para que possam captar os diversos instantes materiais do sopro. O som que nos alcança depende do lugar onde posicionamos o microfone — do lugar onde nos situamos na carne do texto ao captarmos a ressonância das coisas. Assim, do ponto a partir do qual decidirei posicionar a minha escrita, dependerá a ressonância que conseguirei dar às palavras. Eis a razão por que este relato decidi situá-lo precisamente aqui: nesta carta que te dirijo.
Mãe, mamma, mamã: escrevo-te nesta língua que não é minha, nossa, porque uma língua que seja inteiramente nossa não há, nem nunca houve. Somos a utopia da linguagem, tu e eu. Nunca terei uma língua materna, suponho, porque nunca falei contigo, para ti, de forma consciente. A última vez que estiveste ao meu lado, viva, eu tinha 2 anos e tu 39. Que palavras me terás dito? Que palavras terei eu tentado? Bastarão para compor uma língua – uma língua materna? Agora sou mais velha do que tu a cada dia que passa (estranho, sabes? profundamente estranho), tenho a vida cindida em dois idiomas, vivi metade dos anos em cada um e já não sei qual é a primeira língua, qual a segunda. O que sei, com certeza, é que entre uma língua e outra há fronteiras, picos de montanhas seguidos de vales, e no meio túneis que se atravessam por vezes instintivamente, outras vezes a custo. A soma desses atravessamentos é o meu idiolecto quotidiano.
Por isso fascinam-me tão intensamente todas as grafias do mundo que conseguem trazer à luz o trabalho – feito, in fieri, por fazer – de atravessar o espaço do silêncio, e a urgência de o fazer, feroz o suficiente para alcançar a beleza. Porque todo o sinal que se produz, vindo do fundo da terra, do fundo da nossa carne-texto, é fruto, o fruto de uma explosão, um incêndio. O que chegamos a ver, nem sempre revela o incêndio que o detona. A caminho da linguagem, todo o signo é um rebento. E o que interessa, verdadeiramente, a arte, é o momento em que a vida da matéria produz o rebento: o caminho que se percorre entre o vazio e a ressonância. E o que se consegue assim resgatar. Por esta razão comecei a copilar uma colecção de peças classificáveis sob o rótulo de “figuras que atravessam o silêncio”.
Coisas ditas para o silêncio, coisas caladas, é um verso de Paul Celan. E é também o nome que resolvi dar a esta minha colecção de epifanias, imagens instantes que conseguem resgatar a vida interior da linguagem. É uma colecção que vou compondo há muitos anos, mas antes não tinha nome. Antes de se encontrar com este verso de Paul Celan, antes da explosão que o embate com este verso provocou.
Não vou poder aqui mostrar-te a colecção inteira. Seria impossível no tempo de uma carta só. Mas prometo continuar a visita guiada no futuro, fazer desta colecção o espaço inacabado da nossa correspondência. Por enquanto tens aqui uma pequena selecção de peças, organizadas por ordem de aparição na minha memória. — Sim, a memória é outra forma de atravessar o silêncio, claro!
A primeira coisa que te quero mostrar é uma colagem de Nina Fraser chamada Escape. Na sua prática artística, Nina reflecte sobre questões como reparação, reconstrução, percepção do trauma, mundanidade e casa. As suas criações nascem de mini implosions and sometimes the opposite, para usar as palavras dela, na língua dela. No embate com esta colagem da Nina, produziu-se em mim uma detonação que demorei diversos dias a verbalizar. Depois compreendi que o desassossego, o espanto que a imagem me causara, era um silêncio que devia habitar. Atravessá-lo. E aqui vou eu. Pego na tua mão, e deixo-me levar por esta sensação de desamparo – na verdade a palavra certa para descrever esta sensação seria smarrimento, mas não encontro um termo que seja o seu perfeito equivalente em português. A palavra certa…
Como te disse, o título desta colecção é um verso de Celan. Outro verso do mesmo poema dá o título ao volume Tempo do Coração, que regista a correspondência (ou a utopia de um discurso amoroso) entre Bachmann e Celan, editado pela Antígona em 2020, com tradução de Claudia J. Fischer e Vera San Payo de Lemos. Numa carta que Ingeborg escreveu — de Nápoles — a Paul Celan em julho de 1958 lê-se: «e eu, só por agora, não sei a palavra que consiga abarcar tudo o que nos contém». Tudo o que nos contém: esta colecção que ora te mostro é a procura de uma palavra onde o corpo da vida possa encontrar-se, por instantes, inteiro, atravessando o limiar do trauma, ou do apagamento.
A propósito de apagamentos, há aqui uma coisa muito especial que te quero mostrar. São animais, vês? Animais resgatados ao processo de tradução. É verdade. No domínio das traduções há muitas coisas que se perdem durante a passagem entre as línguas. Estes animais, por exemplo, estavam num poema. Na tradução de um idioma para outro, o tradutor - embora hábil - tinha optado por privilegiar o ritmo e a rima, mas essa opção alterara de tal forma o original que no fim, na língua de chegada, tinham desaparecido por completo os animais que habitavam os versos. O trabalho de revisão serviu para repor na paisagem crepuscular pintada pelo poeta o que na tradução se perdera: uma ternura esparsa de balidos e agonias d’ave. Isto é, o som da paisagem. O que verdadeiramente importa é que doravante no poema traduzido vai ser novamente possível encontrar balidos e guinchos ecoando na vida dessa paisagem, o que importa é que ovelhas e aves conseguiram furar o buraco do silêncio e sair à luz da leitura.
Outros animais que tenho aqui guardados são estes coelhinhos. Levei-os de um conto de Cortázar chamado Carta a uma senhorita em Paris. O protagonista do conto gerava incontrolavelmente coelhinhos, tão numerosos e inesperados que era incapaz já de os gerir e de repente, sem se dar conta, deixou alguns escapar para o meu livro, enquanto o lia. E agora aqui estão, vivem comigo, a relembrar-me sem descanso o poder invasivo da imaginação.
Aqui, imediatamente ao lado da imaginação, tens um interstício, vês? É a ironia: toda a distância que voluntariamente instalamos entre o que dizemos e o que queremos significar, todos os efeitos, as figuras de estilo, as piruetas que uma frase pode assumir para chegar a entregar uma mensagem sem a entregar por completo.
Ah, olha: este é o frasco dos segredos. Ao passo que vamos crescendo, o tempo tem cada vez mais sigilos. E, mesmo assim, o meu é um tempo sem segredos. Toda a gente expõe em sítios partilhados a sua vida interior, os afectos mais recônditos, numa montra constante de intimidades. Eu nunca seria capaz de te partilhar numa rede, mãe, de te mostrar a desconhecidos sem ter a certeza de que saberiam ler a tua história com a atenção que mereces. Escrever-te aqui é outra coisa, aqui há outro tempo, um hiato, um lugar íntimo que consegue preservar aquilo a que Derrida chamava O Gosto do Segredo. É uma forma de pudor à qual não sei renunciar. Talvez a única. De resto, não sou assim muito pudica, como podes ver pelo conteúdo deste frasco! Tu és o meu segredo maior. Mas há outros, que eu própria desconheço. Desses falar-te-ei em sonhos…
Por falar em sonhos, há uma última coisa que te quero mostrar. Fica no caminho entre os segredos e as coisas reveladas, fica na lista preciosa das explosões que conseguem quebrar o vidro do silêncio, ferozes o suficiente para alcançar a beleza. É uma obra da Isabel Zarazúa, uma artista admirável que durante longos anos tem cultivado um sonho vivo: na carne profunda do seu corpo, quer ser mãe. Iniciou-se num processo complexo, sequência de empreendimentos e derrotas, tentativa após tentativa, determinação tenaz. Olha para esta aguarela magnífica: quem diria? Isabel decidiu mapear as suas ocasiões perdidas, intitulando a peça Pérdidas espontáneas (em espanhol, sua língua materna). A obra de Isabel faz parte de um projecto colaborativo de mapa incompleto concebido por Costança Arouca e Madalena Parreira numa exposição chamada ƧPAM. A artistas e cientistas de áreas diferentes foi entregue uma gravura contendo um mapa-base e foi-lhes pedido que registassem no gráfico branco algo que gostariam de ver mapeado, qualquer coisa, servindo-se de qualquer processo de inscrição. Isabel mapeou gestações incompletas, agravadas pela maternidade tardia. Partilhou uma experiência que é bastante comum para muitas mulheres da sua geração, que é também a minha. Considera que são vivências de que ainda não se fala com naturalidade, ficam atrás do véu das coisas caladas como algumas camadas do subsolo que ainda não conseguem ver a luz nem atravessar o silêncio.
Resta dizer que o quadro da Isabel Zarazúa e o da Nina Fraser são para mim dois pontos de um mesmo percurso de inscrição: encontrei-os ambos ao longo de um passeio, numa tarde de Inverno. E pareceu-me logo que estavam a dialogar profundamente entre si. Qualquer coisa como o Ulysses de Joyce (Dedalus /Bloom) no feminino: uma criança no encalço de uma mãe indistinta, uma mãe perseguindo a imagem de um filho indefinido. Duas cosmogonias impossíveis, a utopia de uma língua que se possa dizer materna, juntaram-se na mesma narrativa durante uma deambulação pela mesma cidade, no nosso caso Lisboa, a 10 de dezembro de 2021.
O percurso de inscrição onde elas surgiram foi o texto de um passeio. Porque um passeio é evidentemente um texto, onde a grafia do nosso corpo em movimento é a palavra que se encontra com outras palavras, formando frases densas de sentido, narrativas comuns. O som que emerge desse encontro é o coração de um terreno profundo, a vida que acontece secreta e mesmo assim sabe contar uma história colectiva. Ao mapear as suas explosões, duas artistas conseguiram atravessar um silêncio que vai muito além da sua própria carne.
É preciso saber pegar a mão dos signos, quando nos encontramos com eles a caminho da linguagem. Para atravessar o silêncio, é preciso tocar de perto o coração de cada signo, a sua essência. Tocar-lhe o coração, com mão segura, para que o corpo inteiro da vida possa caber nele. Procurar o coração do signo apenas faz sentido se conseguimos assim auscultar o coração do mundo, a voragem do nosso solo comum. Chegaremos assim ao ponto onde coincidem a nossa história e uma história que poderia ter sido a nossa.
O que emerge desse encontro é o oriente de uma pérola cruzando a escuridão. Por esse brilho voltarei a escrever-te, muito em breve.
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