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Prólogo
Cada parte de mim é uma máquina que funciona ao acaso segundo um sistema organizado na ordem da patafísica. Os quartos cheiram a passado. Qualquer coisa que ali se passou já aconteceu. Entrar no atelier é dar um passo atrás sem sair do presente. Cada quarto é uma voz arqueológica que ganha vida fazendo o fazer. Esse fazer – que anseia Ser – é um oxímoro: presente e passado em simultâneo.
A pintura ganha corpus e revela – num fulgor eléctrico – memórias que andam de frente para trás e de trás para a frente como uma cassete VHS manchada pelo tempo e pelo espaço. A pintura desdobra-se em múltiplos planos e torna-se objecto.
Hoje há chuva e o atelier tem esse cheiro das pegadas molhadas que entraram e não saíram. O poço aguarda-me. Exala o odor adocicado das tintas.
Pede-me para dançar em torno dele e cair de exaustão:
Danço, danço, danço, DANÇO!
Em queda, ele liberta-me da carne, do corpo dormente, dos pêlos e por fim da chuva. No não-espaço sou um não-corpo, um organismo reprodutivo morto-vivo. Sou voz sistémica, órgão e sem órgãos.
Shhhhh….
Aqui, exige-se silêncio!
A chuva parou.
3 O[s] – equação para uma máquina
A palavra «organizar» deriva do termo «órgão», e é aparentada com o termo «organismo». Organizar é, pois, fazer de qualquer coisa uma entidade que se assemelhe a um organismo, e como ela funcione. (…) O organizador de um conjunto deve começar por traçar a organização exclusivamente em linhas gerais (…) Feito isto, põe-se o organismo em marcha; e do contacto com a prática, com os acidentes e contingências da realidade da vida, se vai dando a «definição» do conjunto, se vai enchendo o simples contorno inicial, se vão estabelecendo e concatenando os órgãos e sub-órgãos do todo. – Arquivo de Fernando Pessoa
Este breve ensaio é um exercício para pensar toda a estrutura do meu atelier, sendo que este é a coluna vertebral que sustenta toda a praxis da minha obra tanto plástica como literária. Chamo-lhe Caverna. Por vezes chamo-lhe Cávrica, quando a minha dislexia vence. Uma mistura entre Caverna e Fábrica. Talvez a dislexia esteja sempre certa. A organicidade do atelier requer textos. Requer terreno fértil para brotarem novos conceitos. Exige água e o absurdo aliado a uma estranha racionalidade. Uma composição sonora, onde o silêncio ressoa grave: uma nota perfeita que funde corpo e espaço.
Proponho neste ensaio uma abertura: é urgente.
O mundo definha no conservadorismo e a arte morre cada vez mais. É necessário religar. Encontrar a religiosidade dentro do atelier. Cair de amor. Repensar tudo através de uma recolha arquivística, estética e linguística. Cair na obsessão. Não nos podemos esquecer da poesia. Evita o afogamento. Eleva-nos quando já não suportamos mais. Pairamos. A arte tem destes terrores: afunda-nos. Retira-nos a pele, o corpo e doa os órgãos aos demónios.
A estrutura do atelier é um Sistema. Uma máquina. E, mais do que uma metodologia de trabalho, é parte conceptual da obra. O atelier é aqui reconhecido como obra de arte – talvez a obra de arte final, parte integrante da vida. Para Artaud não deveria haver separação entre arte, vida e cultura[1]. Para ele são a mesma coisa. E este ensaio-atelier pode corroborar esta teoria.
Com esta breve nota introdutória pretendo também contextualizar este ensaio dentro da minha investigação de doutoramento sobre a heteronímia na minha obra e o atelier enquanto palco e obra de arte. Tanto a um como ao outro dou o nome de Maquinas Epilépticas.
Mas que máquinas são estas?
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari tudo são máquinas[2], processo e produção. Todas as máquinas estão ligadas a uma máquina-origem que se liga a uma máquina-órgão, surgindo na prática artística, o processo do processo, ou seja, um processo constante que está dentro de outro processo, e assim sucessivamente. O atelier, como prática ou como objecto, é este processo desejante que permite a criação e a espontaneidade plástica, conceptual e filosófica do artista. À obra de arte, imutável e estagnada dá-se o nome de máquinas celibatárias, apesar de alguma controvérsia entre alguns historiadores de arte.
Mas, o que acontece quando o próprio autor é a obra?
O performer?
O que acontece quando o atelier é um palco, mutável e que gira com a trepidação do contexto e dos humores?
A heteronímia e o atelier (talvez o verdadeiro Teatro da Crueldade) funcionam assim numa espécie de convulsões. Ora estagnam, ora produzem. Ora são a obra de arte ora produzem obras de arte. E mesmo estas podem continuar a produzir a partir de si próprias. Por isso este Sistema nunca se poderia reger pelas regras e conceitos mais tradicionais. Deste modo, o conceito de Máquina Epiléptica foi criado para descrever esta produção em convulsões. Este sistema nervoso epiléptico. A minha identidade exponencia o Múltiplo. O trauma provocou fragmentações no eu. Esta pele foi fragmentada por todo um outro Sistema a que se dá o nome de contexto. Ou história. Ou civilização. Ou capitalismo. Alinhando-se assim com a ideia de Derrida de que «não há fora de texto» logo tudo é contexto.
As Máquinas Epilépticas, partindo dos princípios enunciados por Deleuze, são aparentemente desejantes, no entanto, as suas convulsões traem completamente esse fundamento. Ou seja, operam na medida que produzem arte e são simultaneamente a obra de arte em si: uma obra aberta[3]. Ao mesmo tempo uma obra viva, que cresce, evolui, deseja, reproduz, aprende e morre. Assim sendo, os conceitos desenvolvidos neste breve ensaio habitam, em grande medida, o plano abstracto e, tal como Fernando Pessoa refere: «(…) abstractas, porém, são as coisas essenciais, e a própria compreensão de qualquer coisa é uma abstracção.»[4]
O meu atelier-máquina, com a sua aparência non sense e abstracta, é um organismo vivo dentro de processos e sistemas complexos perfeitamente organizados entre si sob a equação 3 O[s].
Ao enunciar o meu atelier como obra de arte deve ter-se em consideração um glossário do mesmo, pois aqui, entenda-se, o fazer artístico e a obra final crescem de tal forma que se torna urgente a criação de novas palavras e linguagens para descrever o sistema dos 3 O[s]. O glossário, a partir da ideia de obra de arte, torna-se aqui parte integrante dela, por isso também opera como uma máquina mas de texto e contextualização no tempo e no espaço.
Assim sendo, o que é a Equação dos 3 O[s]?
Para começar – subentendemos a partir do que foi dito anteriormente – que é um Sistema. Uma espécie de mapa metodológico do atelier onde se ensaia teoricamente e plasticamente a Organização, o Organismo e os [com ou sem] Órgãos. Estes são elementos basilares da máquina de criação (o atelier-caverna), por si mesma sistémica/sintomática, na medida em que é um reflexo directo do eu e do contexto social, político e cultural, do qual é impossível ter distanciamento.
No atelier, entre a luz e a sombra, surgem os objectos-memória, objectos-texto, objecto-desenho, objectos-pintura, cada um anunciando a chegada ou a partida do outro, em última instância pode até surgir a morte.
O atelier carece de um sistema próprio de organização e organismo.
A organização parte de um sistema de glossário e de um sistema espacial, onde cada elemento do atelier, como num mecanismo de roda dentada, tem o seu próprio lugar/espaço no atelier.
Em termos espaciais, a organização inicia-se a partir do centro, onde se encontra um círculo que é o Útero. Este Útero é uma piscina circular com 480 cm de diâmetro onde se mergulham objectos e tintas com fórmulas (al)químicas, que dão origem a membranas de tinta translúcidas e muito finas a que dou o nome de Peles. O secretismo nas fórmulas ditas alquímicas deve-se também ao ênfase do mito, e este mito é também parte da dobra[5]da obra. As peles de tinta, são apenas a continuidade da Pele que habito e me transporta.
Tudo o que é mergulhado naquele líquido «amniótico» (chamemos-lhe assim pela profunda ligação do processo ao símbolo da maternidade) são objectos mnemónicos que partem de um saber ancestral, consciente ou inconsciente. Ou seja, são peças feitas para o efeito ou objectos encontrados na rua, em casas abandonadas ou no ferro-velho. Estas obras materializam sensações, sentimentos, desejos, pulsões, histórias e estórias. Nenhum objecto fica aquém da sua própria identidade. Traz dentro dele já uma vida. O lixo é o Templo da Memória.
Fora do Útero – o grande O – os objectos são re-trabalhados, perdendo qualquer carácter do ready-made proposto por Marcel Duchamp. A sua existência requer um encontro, uma essência de instinto, que deambula entre inércia e o fazer acontecer, entre morte e vida, até à sua sublimação, quando é mergulhado na água transforma-se quase sempre numa máquina celibatária, pois passa a ficar inerte, exposta num outro lugar. Evidentemente que o seu estado celibatário pode sofrer alterações se à sua instalação for associado um mecanismo que o obrigue a ser desejante ou epiléptico.
No processo, e friso, na organização, existe uma persistência da forma O como uma ressonância do arquétipo feminino.
No espaço em volta do Útero surge, circularmente, desejante e fervilhante (talvez mais ainda!), o Multro.
O Multro é uma amálgama que surge, tal como a Cávrica, da junção de duas palavras (múltiplos + útero) e é um conceito criado para descrever os lugares de criação em torno do Útero, como se fossem múltiplos espaços gestacionais. Assume-se por isso que o espaço fora do atelier onde se realizam instalações in situ como em museus e galerias, também é Multro. É uma autêntica mise en abyme[6]onde a performance está dentro da pintura que por sua vez está dentro da escultura, que por sua vez está dentro de textos escritos, que por sua vez está dentro do som e assim sucessivamente, variando esta ordem entre si.
Neste espaço ocorrem multricidades, ou seja, múltiplos movimentos de criação, happenings e/ou interacções dos heterónimos com múltiplas variantes plásticas desde a pintura, a escultura, o vídeo, o som e a escrita.
Multricidade é um neologismo conceptual que engloba o desdobramento de personalidades (heteronímia), produção (desejante) e a utilização de múltiplos media de expressão artística (o hibridismo), ou seja, pode ser sintetizada na equação seguinte:
Multricidades = heteronímia + Multro + hibridismo
A Máquina Sistémica, sendo um sintoma da identidade, ou seja da Pele, expande-se assim do Útero para o Multro, de um órgão para um sistema de múltiplos órgãos, para uma multricidade transtextual. No Multro surgem os Quartos de algumas das minhas identidades heteronímicas, irmãs umas das outras, corpos sem órgãos, segundo a definição de Antonin Artaud. Cada quarto é um reflexo do consciente, do inconsciente e de todo o contexto que subjaz a biografia de cada personalidade heteronímica. São também o pelagus da máquina-atelier reprodutiva que num vai vem epiléptico, ora cria ora mata o objecto.
O Corpo sem Orgãos, na medida em que se pode imaginar e extrapolar – reductio ad absurdum – no plano ‘patafísico (segundo a definição de Alfred Jarry), cada heterónimo pode ser um corpo sem órgãos ou talvez, quem sabe, um órgão em si. Este órgão, do organismo Máquina-atelier, tem a capacidade de absorver ou até retirar de si pequenos pedaços, como novos órgãos.
O atelier, mais do que um sistema, que altera entre o ficcional e o real, é uma metáfora para o avesso da pele, para o conteúdo que está escondido e escrito dentro do eu como um sintoma do contexto que me envolve. Portanto é um organismo vivo que, da sua multricidade mecânica e metafísica, permite ao real e ao ficcional fundirem-se num lugar patafísico, numa espécie de órgão colectivo: um coração que é intestino, estômago, pulmão, fígado, rim, e que afunila numa vesícula ainda saudável.
O que é a equação dos 3 O[s]?
A fórmula alquímica que permite a minha [nossa] existência.
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Nota: Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia no âmbito do projeto SFRH/BD/146774/2019.
Footnotes