No interior do estado de aparente excepção, no campo da experiência do consumidor, têm surgido serviços bastante curiosos. Uma empresa de turismo começou a oferecer caminhadas remotas na natureza. Funciona do seguinte modo: o cliente, fechado em casa, está ligado pela internet a uma pessoa (que tem uma câmara colada à cabeça) que caminha em vez dele, numa montanha, num deserto ou num lugar qualquer. O cliente pode comunicar com a pessoa e pedir-lhe que se dobre para apanhar uma pedra, que vire à esquerda, corra, olhe para a linha do horizonte e assim por diante.
Há pouco tempo, uma reportagem efectuada por um dos canais de informação generalistas portugueses mostrava uma maestrina a conduzir uma orquestra à distância, a partir de um espaço diferente. Tratava-se de uma manobra de publicidade comercial de uma empresa de telecomunicações para promover a tecnologia 5G – que está a ser instalada neste momento. Para além de associar a marca à tecnologia de última geração (do «state-of-the-art»), a estratégia é estabelecer uma rede de validação em camadas tradicionalmente mais críticas da sociedade, confundindo a agenda do negócio com a arte, para um processo lento de habituação e, mais tarde, de dependência.
Nos últimos tempos, e pelas circunstâncias do isolamento físico, o «online» ganhou ainda mais preponderância como plataforma de comunicações, transacções e serviços, a um quase ponto de não se poder questionar as condicionantes e o preço do seu uso, as suas limitações e violência.
Marshall McLuhan, que anteviu a criação da rede, assim como algumas das disrupções e dores associadas ao ambiente electrónico e tecnológico, num texto de 1968, sobre as experiências anteriores do fisiologista russo Ivan Pavlov no campo dos reflexos condicionados (efectuada com cães) escreveu: «The portentous discovery he made was that any controlled environment, any man-made environment, is a conditioner that creates non-perceptive somnambulists.»
Esses ambientes electrónicos, com «gadgets» e imagens flutuantes, fragmentadas, opacas, com uma agenda própria, são os facilitadores da manuntenção. Por todo o lado, a cada rasgo de oportunidade para se aprofundar e desenvolver a cultura, a ecologia, a coabitação e diálogo entre sentidos e estados, surgem novos retrocessos políticos, alimentados por interesses financeiros. É desenvolvida uma nova «app» para distração instantânea. O adormecimento e o consumo das imagens e sistemas (muitos dos quais já perderam qualquer tipo referencial simbólico) continua. Mas o artista não cede e exulta com as novidades da percepção. Acede à plataforma de venda de arte online, preenche o critério e alimenta o conteúdo da sua auto-representação na rede social. Comenta os tópicos do momento, que por sua vez são capitalizados pelo espectáculo, bem articulados pelos curadores, directores de museus, teatros e outros lugares onde o «feedback» e a justificação do ruminar da espécie confundem-se com a publicidade dos próprios imitadores.
De volta à rede social, tudo pode ser novamente facilitado. Desde o convite para a última exposição, passando pela leitura de publicidade e desinformação em forma de «newsfeed» ou até o prolongamento de regimes totalitários no poder. No meio da actividade online, promove-se ainda o acesso livre ao conhecimento, a dados (actividade financeira, económica e política), ao jornalismo independente e a ferramentas e canais de activismo.
Operar, actuar, funcionar no «online» é, tendencialmente e na sua maioria, estar envolto em imagens, numa amputação de vários sentidos (que a Realidade Virtual e a Inteligência Artificial ainda estão longe de colmatar, se algum dia esse seja o objectivo). E estar nessa constante relação com as imagens é estar também numa contínua redefinição de relação com tudo o que está «offline». No limite, quando toda a actividade humana, artística, comunicativa, relacional intra e entre espécie, tiver como objectivo preencher espaços de conteúdo e servir o «online» (composto por uma rede de dispositivos, máquinas comunicantes, vias de alta velocidade, «apparatus», implantes neurológicos), o «online» como um mapa (e como num certo conto de Jorge Luis Borges), cobrirá o «offline» do mundo, até se tornar o mundo.
O filósofo Vilém Flusser na sua obra anteviu algumas destas dinâmicas impressas na dificuldade que temos, actualmente, em decifrar, desmontar e criticar o que definiu como a «imagem técnica». Explicou-nos que ao contrário da imagem tradicional (que ontologicamente é uma abstracção de acontecimentos no mundo e que precede o texto), a imagem técnica é uma abstracção de terceira ordem (dos símbolos derivados das imagens tradicionais derivados do mundo). Ao parecerem fins em si mesmo, ao reterem uma qualidade e definição que aparenta significar o mundo sem necessidade de decodificação, as imagens técnicas ocultam a realidade, iludem-nos com uma suposta objectividade.
Neste número dedicado ao «offline», importa-nos perceber que discursos artísticos e críticos operam na desmontagem destas imagens técnicas «on» e «offline». Que tipo de produção analógica, subversiva, invisível acontece fora da rede, alternativas aos mecanismos de auto-representação e justificação vigentes? E que contributo e espaço ainda tem a actividade artística para questionar o paradigma do capitalismo visual, caracterizado por uma ligação de desligamentos, num ambiente que aniquila parte da percepção, imaginação, racionalidade e magia que caracterizam o ser humano?
Bruno Humberto