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Numa cultura predominantemente dominada pelo culto ao sucesso e à eficiência, e onde se impele de modo cada vez mais compulsório a uma incerta condição de «felicidade», como a em que vivemos, a noção de fracasso ou falhanço apresenta-se de saída como um termo malvisto. Ou ao menos fora de lugar, pois muitos dos modos que caracterizam a sociedade contemporânea baseiam-se na ideia de sucesso; na lógica inexpugnável do capital, para situar um exemplo máximo, um «vencedor» afirma-se sobretudo a partir da realização financeira.
Do fracasso como vetor de potência
Associado de modo geral a expectativas ou objetivos não atingidos, o fracasso é, de há muito, um aspecto caro à prática artística; poder-se-ia dizer mesmo que o ato de falhar é ancestralmente indissociado desta atividade, aí operando em diferentes modos de discurso e definição. Seja propondo-se a realizar ações supostamente impossíveis, por sua abstração, seja aplicado às inadequações e insuficiências da linguagem e da representação, o falhanço vê-se tematizado ou mesmo incorporado como modus operandi na produção de diversos artistas contemporâneos. Estes possuem um sentido particularmente apurado em relação ao potencial das imperfeições oferecido pelo fracasso, adoptando a dúvida e a livre experimentação como motes de trabalho; e dentre os diversos fatores que podem conjugar o falhanço, o valor do erro impõe-se e manifesta-se em todas as suas variações – rascunhos, ensaios, ideias falhas, enganos e acidentes. Artistas não são estranhos ao fracasso, como se vê; para muitos, este – em todas as suas facetas, que não se esgotam no erro ou na falha – apresenta-se como instância não apenas inevitável como mesmo necessária em seus processos criativos, um vetor de potência para sua práxis. E o falhanço tem lá seus rigores: fracassar bem pode exigir o compromisso de toda uma vida.
É portanto a partir desta perspectiva que detemo-nos aqui sobre o potencial do fracasso no âmbito da atividade artística, enfocando a produção em vídeo do artista holandês Bas Jan Ader e os filmes de Buster Keaton, ícone da comédia cinematográfica muda.
Bas Jan Ader e Buster Keaton: Sob o signo do fracasso
De finais dos anos 1960 até seu desaparecimento precoce em 1975, Bas Jan Ader produziu um escasso mas significativo conjunto de trabalhos sob a égide do que poderíamos chamar uma poética do fracasso. Em um corpo de obras que incluía desenhos, séries fotográficas, filmes e instalações, sua práxis era alimentada por questões mais vinculadas à linguagem e a natureza do fazer artístico – mediadas pela filosofia – do que por procedimentos ou filiação a linhas temáticas definidas. Desta produção, iremos deter-nos sobre alguns short films de início dos anos 1970, realizados a preto-e-branco em 16mm, e que apresentam o próprio artista em situações diversas, executando atividades prosaicas – performances, se quisermos – , mas em contextos incomuns. São filmes curtos e mudos, ou antes silenciosos, em que Ader desenvolve uma série de ações que apresentam-se a um só tempo como imbuídas de um grau de risco e não destituídas de certo humor, em um registo que flerta com o nonsense e o absurdo.
Em Fall I (1970) ele surge sentado em uma cadeira na cumeeira do telhado de sua casa, típica habitação suburbana norte-americana, numa situação que já prenuncia os atos subsequentes. O artista parece esperar, ou ansiar pela queda, que afinal ocorre. A câmera acompanha o desabamento daquele corpo esguio e algo desengonçado rolando telhado abaixo. A ação é rápida e económica de elementos: o protagonista deixa-se levar pela gravidade e despenca, rolando, até sumir de cena, quando o vídeo termina. Tudo se dá sem motivo aparente, apenas obedecendo a um processo detonado por uma ideia. Proposta e execução são extremamente simples. Mas o acto é também dotado de comicidade, num registo de humor característico e presente em todos os trabalhos em vídeo de Ader. Trata-se, contudo, de uma comicidade «oblíqua», incerta, a meio caminho entre o humor físico clássico (um dos sapatos é descalçado durante a queda, enquanto o corpo desaparece desajeitadamente por trás de um arbusto em frente à casa na etapa final de sua queda) – e aquele tipo de riso perverso e quase involuntário que emerge quando nos defrontamos com pequenas tragédias cotidianas (alheias, naturalmente).
Em outra peça, Fall II (1970), o artista surge passeando tranquilamente de bicicleta ao longo de um canal de Amsterdam, até que subitamente, sem qualquer aviso ou motivo aparente, executa uma guinada e atira-se ao rio, juntamente com seu veículo, que parece ter ganho vida própria. O absurdo discreto da situação, e o modo «casual» como a ação é executada – e captada pela câmera – contém os atributos exatos de uma qualquer gag clássica de uma comédia muda dos anos 1910. Assim como na obra anterior, trata-se de ações que se dão sem uma explicação evidente; mas despontam indícios de uma convergência possível entre estas peças pelo modo como Ader combina esse registo trágico-cómico com a melancolia invocada por sua figura solitária, condenada a consumar estes exercícios de atração abismal, sempre a perseguir a queda e o falhanço.
Parece-nos que é no intervalo existente neste registo ambivalente, percebido ou contido pelo filtro do humor e a economia gestual da ação, que reside parte da potência destes trabalhos; as figuras do trágico e do herói romântico são aqui recuperadas em um contexto onde definitivamente não são esperadas. A imagem do artista sofrido, tão distante da sensibilidade contemporânea, é usada como mote e exemplo – incutindo no espectador uma reflexão acerca de sua relação e grau de expectativas com as referências trágicas e românticas tão presentes na cultura popular e no cinema. A economia de meios e a natureza esquemática das ações dificultam o estabelecimento de uma relação puramente empática ou apaixonada com os trabalhos de Ader. O sofrimento só ganha corpo porque é apresentado, ou representado como esquema ou estratégia. Reduzida a uma ideia de queda, a ação de Fall I conecta o experimento mecânico ao universo do doméstico, assim trazendo à baila as noções de gravidade e graça que perpassam quase toda a produção de Bas Jan Ader. O artista usa a gravidade como um meio tateante de conceber uma forma de graciosidade. E quando cai, há também ali um movimento contraposto, de atenção para sua própria fraqueza.
Já em Broken Fall (Organic) nosso protagonista encontra-se pendurado em um galho de árvore, tentando resistir — indefinidamente? — à ação da gravidade. Sua figura esbelta e longilínea pende verticalmente da árvore a baloiçar como um fruto estranho, acompanhando o ritmo dos galhos em que se segura e de certa forma confundindo-se com a paisagem. Seu corpo oscila de um lado para o outro, chutando o ar, tentando talvez sentir-se mais confortável; luta para manter-se suspenso até que, já agarrado ao galho com apenas uma das mãos e assumindo a futilidade de seu esforço, cede ao cansaço e cai dentro do que parece ser um córrego. Mais uma vez a gravidade se mostra implacável, puxando o artista para a terra.
Ainda sobre a relação estreita entre as componentes trágica e cómica, o próprio Ader terá assinalado que as questões relacionadas com as quedas que protagonizou estavam diretamente conectadas ao fracasso e à tragédia[1]. Figuras basilares dos primórdios da comédia cinematográfica como Chaplin, Harold Lloyd e Buster Keaton trabalharam sempre com a tensão presente entre o incidente cómico e uma tragicidade latente, e é a esta tradição que a obra de Ader parece se apegar. Estudioso da obra do artista holandês, Jan Verwoert sustenta, com pertinência, que em última análise Bas Jan Ader recorre ao modelo grego clássico do herói trágico que «toma a decisão consciente de seguir adiante com o plano que inevitavelmente conduzirá a sua ruína»[2] . Em outras palavras: o artista expõe-se deliberadamente ao risco, como ao escalar uma árvore e baloiçar sobre o rio, ou a despenhar-se do alto de uma casa. O risco, no entanto, não é a meta; o que leva Verwoert a situar o trabalho de Ader entre o acto heróico e sua própria paródia. E se o herói trágico decide cumprir seu destino a todo custo, o comediante geralmente fracassa em seu intento ou o consegue por meio de um encadeamento rocambolesco de erros[3].
A presença da bicicleta como veículo activador do evento cômico – em Fall II – evoca um elemento típico da comédia slapstick de época: uma estrutura esquemática onde seres humanos são constantemente confrontados com objetos quotidianos mecanizados que por algum motivo escapam ao controle e parecem ganhar vida, desestabilizando a ordem normal dos acontecimentos. Estas narrativas cómicas são amplamente baseadas em fatores como o improviso, o acaso e o imprevisto e exploraram regularmente esta polaridade do «humano vs. mecânico» que tanto fascinava o próprio Keaton. Tal aspecto será analisado mais detidamente por Gilles Deleuze em seu basilar A imagem-movimento sob o viés a que instigantemente chama «o gag maquínico». Ali o pensador francês desenvolve uma inventiva e precisa tipologia de alguns procedimentos criativos calcados nesta relação homem-máquina, a partir da análise da obra de ícones do cinema burlesco como Chaplin e Keaton[4].
Voltando às peças de Ader: o artista agora encontra-se em pé ao lado de um cavalete, ao centro de uma via pavimentada de paralepípedos e emoldurada por arbustos em Westkapelle, na Holanda. É um dia de fortes ventos, o que se nota pelo movimento das árvores que circundam a cena. O trabalho é Broken Fall (Geometric).
Ader começa então a oscilar, como que à mercê da força do vento, depois a pender de modo incerto, tentando contrapor-se à força da gravidade que ele parece desejar, numa espécie de mantra físico. O corpo do sujeito da ação aceita os solavancos, que seguem ora mais intensos, ora mais brandos, e cujo movimento acompanha aquele dos arbustos que o cercam. Nota-se que o corpo resiste, chegando a apoiar-se em apenas um dos pés na tentativa, de resto vã, de manter-se íntegro. A expectativa aumenta à medida em que ele se inclina mais e mais sobre o cavalete – em uma dinâmica típica das comédias mudas, novamente. Ao fundo, no horizonte, é possível divisar os contornos do farol de Westkapelle. Passados mais alguns momentos, Ader afinal acaba por completar sua queda lateral – ou melhor, diagonal já antecipada, despencando sobre o cavalete, e o filme termina.
É possível observar nestes últimos dois trabalhos que permanece latente o desejo ou a pulsão de queda, mas, diferentemente das propostas anteriores, é nítida alguma resistência em aderir à inexorabilidade da ação. Broken Fall (Geometric) também empresta claramente seus movimentos e dinâmica de cena da comédia slapstick, endereçando indiretamente questões acerca da carga de melancolia existente na busca do comediante pelo riso largo da audiência. Nestas peças «de quedas», o assunto e o meio de Ader é primeiramente a força da gravidade, que tanto o lança ao desconhecido — arrancando-o do fardo da vida cotidiana — como o traz de volta ao mundo, ainda que numa conciliação que se mostra sempre áspera. Como o próprio artista declara de maneira célebre em uma entrevista de 1971: «I do not make body sculpture, body art or body works. When I fall off the roof of my house, or into a canal, it was because gravity made itself master over me»[5]. Se de fato pudesse haver, como sugere sarcasticamente Marcel Duchamp em uma nota em sua Green Box (1934), algo como um «Ministério da Gravidade», Bas Jan Ader deveria ser um sério candidato ao posto, sem dúvida.
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De qualquer modo, desponta sempre em sua produção uma faceta do absurdo ou tragicómico que também permite relacioná-la com as tipologias específicas do universo do burlesco. Como já pontuado, seus trabalhos evocam diretamente elementos de comédia slapstick, género clássico e dominante nos tempos que antecederam o cinema falado. Nos seus filmes silenciosos em que o vemos sempre a experimentar situações de quedas, de modos diversos e em diferentes contextos, Ader emprega as técnicas e meios simples desta antiga tradição para reformular a performance conceptual, bem como para comentar o cânone da abstração modernista cujos postulados foram marcantes na sua formação como artista. Mas, para além disso, conecta-se também a toda uma tradição de humor fundado na economia de ações e na visualidade pura da comédia pastelão, o que inevitavelmente nos leva a aproximar sua obra à de Buster Keaton. Aspectos formais ou compositivos, como o uso que faz de seu corpo como um medium em si mesmo, e o modo como o figura no espaço, em momentos encenando a perda do controle físico, também colaboram para essa aproximação. E o ponto talvez mais importante: nestes trabalhos, Ader claramente pré-disponibiliza-se a falhar, chegando mesmo a apresentar-se, à maneira de um Sísifo extemporâneo, como um irremediável incompetente, incapaz de segurar-se, manter o equilíbrio ou sustentar-se em pé verticalmente – e aí aproximando-se definitivamente da persona e do legado artístico de Keaton.
Em ensaio sobre este grande nome da comédia muda, o realizador francês Erik Bullot refere a figura do «homem que nunca sorria» como a de um «herói da fotogenia»[6]– uma descrição que em boa medida também poderia ser extensiva a Bas Jan Ader – e um performer cujo mundo é governado pelas leis do cinema; o que já não se aplica tanto ao caso de Ader. A abordagem do autor é pautada por seu interesse em estabelecer paralelos visando caracterizar os movimentos de Keaton como imbuídos da tradição modernista, guiados pelo medium, e nesse sentido Bullot detém-se sobre aspectos como a relação meticulosamente planeada que as personagens de Keaton mantinham com o espaço da ação. O estudo detalhado das condições espaciais onde o ator e diretor desempenhava suas atividades e a habilidade com que as compunha uma vez em cena são aspectos que Ader também dominava em suas peças. Basta pensarmos em certas cenas de One Week (1920), The Electric House (1922), Our Hospitality (1923) e The Goat (1921), já para não mencionarmos a antológica sequência final de Steamboat Bill Jr. (1928).
Ao contrário de Ader, contudo, as personagens de Keaton usualmente tendiam a ser construídas numa progressão que ia da (aparente) completa incompetência ou inaptidão à perícia extrema. Já para o holandês o registo é outro: suas breves peças performativas são caracterizadas pela aparente ausência de um arco narrativo que forneça uma causa ou motivo para aquelas ações – ou antes inações – terem lugar. Seus trabalhos mais conhecidos nunca incluem uma causa para seu efeito. Pode ser então aí o lugar da introdução de um componente poético. As peças de Ader – e não só suas ações em filmes, mas também as séries fotográficas e instalações intimistas – parecem transmitir uma sensação de inegável e despojada sinceridade. Como em Keaton, sua dinâmica de movimentação é dotada a um só tempo de um sentido dramático e clássico – um rigor quase geométrico –, tendo sempre plena consciência do modo como seu corpo ocupa e anima o espaço da composição, seja fílmica ou fotográfica. Talvez ainda mais efectivo, Ader usa seu corpo e rosto como um tipo de receptador; ele não é nunca o agenciador ou portador de uma emoção ou de determinado efeito, mas apenas o objeto de seu impacto.
A propósito do domínio da linguagem cinematográfica e as peculiaridades do género da comédia, Deleuze assinalaria que:
«se é verdade que o burlesco pertence à pequena forma, há em Keaton algo de incomparável [...] A originalidade profunda de Buster Keaton é a de ter preenchido a grande forma com o conteúdo burlesco que ela parecia recusar, de ter reconciliado contra qualquer verossimilhança o burlesco e a grande forma.» (2004: 232)
Associa a este dado a figura do herói apequenado, «minúsculo, abrangido num meio imenso e catastrófico, (...) vastas paisagens cambiantes e estuturas geométricas deformáveis, quedas d’água, grande navio à deriva no mar, cidade varrida pelo ciclone...». Nos filmes de Keaton, o efeito cómico é de modo geral detonado pelas aparentemente intransponíveis forças com as quais seus personagens se defrontam. Em Our hospitality, nosso herói vivencia uma verdadeira saga através do país – ainda selvagem, na trama do filme –, e a presença da paisagem e elementos da natureza é generosa e grandiloquente, culminando na fantástica e acrobática sequência final do resgate na cachoeira. No clássico Steamboat Bill Jr. (1928), Keaton encarna o frágil Willie, que inadvertidamente – registo sempre característico – salva o dia quando um ciclone e uma inundação atingem uma pequena cidade. O filme tem seu clímax na antológica sequência em que a fachada de um pequeno prédio despenca sobre nosso herói, que escapa de ser esmagado ao posicionar-se «casualmente» no exato local que corresponde ao frame vazado de uma janela, permanecendo assim intacto.
Outro traço de aproximação direta entre a obra de Ader e Keaton está no registo de humor presente nas duas produções. Em diversos momentos nos filmes de ambos se observa este sentimento pelas ações difíceis ou ridículas ali apresentadas, despertando no espectador certa incredulidade frente ao caráter desnecessário e absurdo com que as mesmas aparentemente se desenrolam. As situações de quedas, recorrentes nos filmes de um e de outro, prestam-se especialmente para acentuar esta impressão, aproximando-se de um tônus da ordem do patético: um sentimento híbrido, marcado pelo teor de comicidade mas que também convoca certa empatia vinculada ao fracasso das veneráveis empresas que nossos artistas buscam levar a cabo. Boa parte do êxito de comediantes como Keaton, como aponta o crítico Javier Hontoria, reside no controlo que possuem sobre sua produção; o protagonista tem sempre recursos para resolver os problemas que surjam, por mais difícil que sua solução pareça[7]. Controlo perceptível na maneira minuciosamente desajeitada com que Keaton compõe sua personagem e nela imprime sua marca, bem como no modo com que conjuga o registo da fragilidade à fisicalidade intensa que lhe é exigida constantemente em cena; controlo total do espaço, demonstrando um impressionante sentido de colocação e deslocamento. Além, naturalmente, do controlo facial que se tornará sua marca distintiva, sua assinatura – e que não deve nunca ser confundido com uma lacuna expressiva.
Conclusão
Para encerrar, voltemos ao tópico do riso. Como observado, o humor é um fator de destaque na aproximação entre a produção dos artistas aqui enfocados, ainda que em chaves diversas. No cinema de Buster Keaton, inserido na tipologia e demandas tradicionais do entretenimento — na forma de comédias mudas — ele irá consistir no próprio leit-motiv, elemento primordial a ser buscado a serviço da lógica sob a qual se desenvolve a narrativa. Apesar da estrutura essencialmente esquemática característica da modalidade, em que se ressalta a fisicalidade das ações, trata-se de um humor «sofisticado», em boa medida conseguido pela caracterização discreta que mimetiza os dotes atléticos e acrobáticos da personagem de Keaton – de quem «não se espera» tais atributos, poder-se-ia dizer. Já em Ader as questões são outras. Trata-se, afinal, de proposições artísticas, e portanto obedecem desde sua concepção a outro tipo de lógica – uma que prescinde da ideia de função, por exemplo. Suas breves desventuras solitárias filmadas, apesar da simplicidade de meios e gestos que as definem são destituídas de um aparente «porquê» em seus enunciados, assim como é incerto o endereçamento das mesmas. O dado de comicidade é mais rebaixado, menos anunciado, e manifesta-se por uma via oblíqua: emerge como um impulso quase involuntário, a partir do inevitável momento de colapso que caracteriza suas ações. Ora informado por certa melancolia, ora por um componente de patético, e sempre marcado pela ação da gravidade.
Em 1855, Charles Baudelaire indagava sobre o motivo de as pessoas terem a propensão a rirem-se tanto quando testemunham outras pessoas sofrendo pequenos acidentes ou experienciando outras inesperadas e desagradáveis ações físicas quotidianas, especulando sobre se tal riso seria gerado pelo choque entre os sentidos concorrentes de «infinite grandeur» e «infinite misery». A dada altura, afirma que:
«…the man who trips would be the last to laugh at his own fall, unless he happens to be a philosopher, one who had acquired by habit a power of rapid self-division and thus of assisting as a disinterested spectator at the phenomena of his own ego.»[8]
Ora, se tomarmos esta assertiva à letra e nos permitirmos adentrar o território da divagação, ela parece se ajustar à perfeição ao próprio Bas Jan Ader. Sobretudo se lembrarmos que ele próprio era um aplicado estudioso de filosofia, que chegou a ensinar em universidades na Califórnia... E sendo assim, Buster Keaton poderia decerto ter um lugar a seu lado; afinal, ele, o homem que nunca ri, seria certamente o último a «rir-se da própria queda», como sugere o poeta francês. Ambos expoentes de delicadas poéticas da falência, constituem, cada qual a seu modo, casos exemplares das potencialidades do mote do erro e do fracasso quando aplicado ou assumido como vetor de potência no processo criativo.
* Este texto é uma versão reduzida e com pequenas alterações de artigo homónimo de 2013, do mesmo autor.
Footnotes