A questão que me é frequentemente dirigida depois de referir que sou um violinista, é se toco numa orquestra sinfónica para ganhar a vida.
Acabo sempre por responder que na realidade já não toco música clássica desde há algum tempo e por isso, também não toco nesse tipo de orquestras. Então, a questão inevitável é «nesse caso, que tipo de música toca?», que acaba por ser a pergunta que se segue.
Para a colocar em «caixas de género», eu refiro que toco música improvisada ou a normalmente chamada de música experimental. Dito isto, não creio que isso diga algo específico acerca do estilo ou estética da música.
O que quer dizer em relação a ser música improvisada?
Na música improvisada, não se sabe ao certo o que vai acontecer e nós (as pessoas que estão a tocá-la dessa forma) normalmente não decidimos a priori o que irá acontecer.
Por vezes, não se conhecem as pessoas com quem se está a tocar; cada um ou uma tem o seu humor do dia; sente o espaço envolvente de formas diferentes. Os músicos podem vir de estéticas e realidades culturais radicalmente diferentes. Mas à partida, todos são livres – de tocar o que quiserem e quando quiserem.
Se estiveres a tocar com alguém pela primeira vez (por conhecimento ou no palco) ou se tocares com pessoas que conheces desde há algum tempo, ou com quem já tocaste, ou se conheces o seu trabalho, estas condições podem, claro, influenciar o que pode acontecer. Por vezes, quase consegues adivinhar o que vai acontecer e, outras vezes, as coisas não acontecem como esperavas e ficas com as expectativas baralhadas.
Não podemos dizer como ou que tipo de música irá soar.
Pessoalmente, estou interessado em livrar-me de alguns parâmetros que definem e identificam a «música» –- como os parâmetros melódicos, harmónicos e rítmicos. Os meus trabalhos focam-se principalmente no timbre, duração (ou tempo, que pode ser relacionado e considerado enquanto ritmo) e a dinâmica. Focando sobre estes parâmetros diferentes obviamente afecta de alguma forma a estética da improvisação e desfoca as fundações das nossas percepções e conhecimentos daquilo a que chamamos música. Desta forma, quando alguém improvisa música, o estilo não pode ser definido ou cristalizado.
Ainda assim, o guitarrista britânico Derek Bailey chama-lhe música «não-idiomática».
Este termo, num certo sentido, tomado enquanto definição estilística ou resultado, pode ser problemático, já que de alguma forma redefine alguns enquadramentos. Pessoalmente entendo este termo como um processo e gosto de analogia que podemos criar com o conceito de anarquia. Muitas vezes, quando alguém ouve a expressão «anarquia», rapidamente associa à ideia de caos – caos no sentido em que as pessoas não se relacionam, ou que possam estar num estado de espírito individualista, que não existam regras, etc.
Eu gosto de olhar para a noção de anarquia como um processo que regenera formas de diferentes de interacção, de relacionamento uns com os outros e que volte a «baralhar as cartas». A noção de anarquia questiona as nossas relações com a hierarquia/igualdade, domínio e liberdade. Estas palavras e conceitos são um pouco «palavrão», que são altamente conotadas, mas tanto a prática da improvisação musical (enquanto prática artística e social) e a/o anarquia/ismo (enquanto prática e movimento social e político) lidam com essas noções.
Como improvisador, não me considero acima de nenhum dos outros músicos ou do público. Não tento dominar nem a situação, nem os outros músicos. É suposto ser livre de tomar as minhas próprias decisões durante o momento da performance, tanto quanto os outros músicos que fazem parte da mesma. Isto não significa que estou fechado ao que se passa à minha volta, pelo contrário. Irei ouvir tanto quanto puder, sentir os outros tão profundamente quanto possível, tentar interagir com a situação global, mas sem necessariamente estar na situação em consenso e de seguir os outros. Serei capaz de afirmar o que tenho a dizer – poderá ser completamente contrastante ou distanciado do resto, mas será contido, em relação com o que se está a passar. Isto poderá ainda ser um certo caminho para interpretar o anarquismo.
É uma forma de relacionamento sem ser dominado.
Relativamente à noção de realidade, considero-a difícil, porque eu acredito em determinismo. Ou seja, liberdade de decisões, mas de alguma forma, no contexto do determinismo.
Anarquia/ismo carrega esta conotação politicamente muito forte, e eu pergunto a mim mesmo se a prática de improvisação musical pode ser uma forma de afirmação política? Ou se esta prática musical e a política devem ser separadas?
O que importa afirmar aqui é que a anarquia, enquanto processo, é diferente do anarquismo, que é (são) projecto(s) definido(s). Se eu olhar para o anarquismo enquanto ideologia, o que vejo são alguns enquadramentos. Enquadramentos que são definitivamente diferentes e em oposição às ideologias capitalistas, mas contudo, enquadramentos. Como diria o filósofo Francês Frédéric Lordon, eles também construíram as suas bandeiras e instituições. A anarquia, mais que uma ideologia, expressa um processo. Está relacionado com questionamento, com o empurrar e alagar dos limites que colocamos a nós mesmos. Sempre que improviso, desafio-me, coloco-me em diferentes situações e o resultado será afectado por isso. De certa forma, é uma prática que te força a empurrar constantemente por ti fora das caixas das tuas expectativas e trazer-te a zonas imprevistas.
Claro, não é porque estás a tocar música improvisada que esta actividade irá mudar ou afectar qualquer tipo de situação política ou decisão. Mas o que é fundamental é partilhar/mostrar e activamente fazer e criar um processo que volta a baralhar enquadramentos estabelecidos. O significado da prática de improvisação musical está no processo. O resultado conta, claro, mas não acredito que seja o seu objectivo. Penso que se pode apreciar um concerto de música improvisada apenas quando está a acontecer ao vivo, porque este é o momento em que se testemunha de facto e se é parte da acção – sendo activo, o que é único naquele específico momento, porque junta todos os elementos (o lugar e a sua geografia, a sua história, as pessoas que estão presentes, os músicos, etc.) que estão presentes naquele preciso momento. É uma prática inclusiva. O que tento fazer como músico improvisador é experienciar novos sentimentos, novas formas e novas situações, em todos os momentos. Estou a tentar injectar algum não-idiomático/anarquia na minha própria prática, nas minhas próprias expectativas, para estar constantemente a tropeçar, estar em movimento e não cristalizar num certo estado em que começam a formar-se enquadramentos, que auto-cristalizam.
O processo, assim como as perspectivas, estão em evolução constante e eu gosto de referir o poeta e filósofo Édouard Glissant que trouxe a noção de creolidade. Ele escreveu: «A Creolização não é esta mistura disforme (uniforme) onde cada um vai para se perder a si próprio, mas uma série de resoluções surpreendentes, cuja fluidez máxima diria o seguinte: ‘Eu mudo, mudando o outro, sem me perder a mim mesmo, contudo não me desnaturando.’ Devemos atribuí-lo, oferecendo-o, sempre.» Ou também «Creolização é o juntar de diversas culturas ou de pelo menos diversos elementos de culturas distintas, num local do mundo, resultando uma nova característica, totalmente imprevisível em comparação com a soma ou simples síntese desses elementos»
Pessoalmente sinto que não só a minha prática artística, mas também a minha prática de vida, digamos, está relacionada com os pensamentos de Glissant. A forma como processamos as nossas vidas (relacionamentos, trocas, mudanças) e a nossa prática artística seriam políticas nesse sentido em que, mudando ou alterando, elas questionariam e resistiriam quaisquer normas, formatos e esquemas institucionais ou globalizados do fazer e do pensar. Enquadrar-se seria como cristalizar a nós mesmos num determinado estado.
Estar desenquadrado é uma forma de resistência.