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Matter never makes jokes: it is always full of the tragically serious. Who dares to think that you can play with matter, that you can shape it for a joke, that the joke will not be built in, will not eat into it like fate, like destiny? Can you imagine the pain, the dull imprisoned suffering, hewn into the matter of that dummy which does not know why it must be what it is, why it must remain in that forcibly imposed form which is no more than a parody? Do you understand the power of form, of expression, of pretense, the arbitrary tyranny imposed on a helpless block, and ruling it like its own, tyrannical, despotic soul? – Bruno Schulz, The Street of Crocodiles, 1934, pg. 64
A casa cheirava a cimento húmido, pó e chá. Não havia espaço vazio nas paredes e muito raramente havia um espaço vazio no chão. Uma marcha de animais de madeira apressava-se a descer as escadas, esculturas fálicas com a aparência de comboios, barcos e casas de boneca emergiam inesperadamente das paredes e toda uma plétora de pinturas selvagens, violentas e coloridas fundiam-se na sua própria massa de besta vibrante – uma besta que contava histórias.
Todos os cantos e recantos estavam preenchidos até ao seu limite: bonecas de madeira com faces e formas estranhas; máscaras aterrorizadoras que te olhavam fixamente; pedaços de pedras tumulares e cruzes de madeira, que um dia assinalaram o lugar do último sono de alguém no deserto africano, agora servindo como um género de peças decorativas no meio de outras lápides; uma estátua de Santa Ágata pilhada de uma igreja num sítio qualquer, os seus seios colocados numa bandeja (o meu avô costumava dizer que eram merengues); um crocodilo esgueirado por debaixo do sofá, pronto para petiscar os calcanhares dos convidados, ou até um monstro de duas cabeças fantástico servindo de cesta de costura...
Este lugar era ao mesmo tempo aterrorizador e fascinante. Estávamos de volta ao prestigioso Wunderkammer do connoisseur. Um coleccionador que acumula objectos como um símbolo de prosperidade e estatuto torna-se num coleccionador que se define pelos seus próprios objectos. O meu avô costumava caminhar pela sua casa, de mãos bem juntas atrás das costas, como um pequeno lord Fauntleroy caminhando entre os seus brinquedos.
Amâncio Guedes nasceu em 1925, em Lisboa, mas viveu a maior parte do tempo em Moçambique. O seu pai, que era médico, e quis trabalhar nas antigas colónias, perto do seu cunhado que fora deportado pelo regime de Salazar. Pancho (Amâncio) decidiu tornar-se um artista/pintor depois de ter terminado a escola, mas os seus pais não concordaram e antes o encorajaram a estudar arquitectura. No início ficou assustado com a ideia, mas depressa percebeu que a arquitectura era uma arte igualmente libertadora e decidiu ir estudar para Witwatersrand, na África do Sul.
Tanto o meu pai como o meu avô cresceram numa África que já não existe. Mas foram ambos dolorosamente uma parte desta África, que agora tão justamente desapareceu e deixou para trás os seus orfãos perdidos e desenraizados.
Pancho era um arquitecto, artista e patrono da arte africana, mas para mim era um coleccionador de objectos. Porque é que o coleccionador colecciona? Será um impulso para preservar algo que poderia eventualmente perder-se sem a sua intervenção? Para acumular e proporcionar associações de coisas, que outros ignorariam se ele não as tivesse construído? Não haverá algo de profundamente narcísico no próprio conceito de coleccionar? Não será demasiado óbvio dizer que se trata do exercício de preencher o vazio, de reencontrar o objecto perdido ou pelo menos de o trocar? Podemos encontrar o nosso caminho até Freud, com a sua noção de que um objecto perdido só pode ser substituído por um objecto encontrado. A criança que sente a falta do seio materno e que descobre a linguagem como um substituto. Mas será sempre assim? Será que coleccionar pode ser, num certo sentido, uma ocultação? Uma forma de nos ocultarmos por trás de todos os objectos, de nos escondermos a nós próprios? Ou simplesmente de não lidar consigo mesmo?
Os meus avós não gastavam muito ou desnecessariamente. Viviam de forma bastante humilde e tanto quanto me lembro, eram cautelosos e cuidadosos com o dinheiro. O grande orgulho do meu avô era o seu Citroen «2 cavalos» que se movia desengonçadamente para cima e para baixo, atravessando o conturbado caminho até à sua «casa do topo», perto de Colares. O dinheiro era suposto ser gasto apenas em alguma coisas – a arte constituía uma grande quota parte delas.
O que continham estes objectos que tanto atraíam o meu avô? A sua colecção era incrivelmente ecléctica abarcando não só arte africana mas também arte sacra/ religiosa, art nouveau e peças de art déco, desenhos infantis e rabiscos... só para nomear algumas coisas. Há certamente um grande valor nesta aglomeração de objectos, mas entre eles existem também alguns que não valem nada. O meu avô era, sem dúvida, profundamente atraído pela própria arte e tinha por ela uma grande paixão. Cada objecto era escolhido cuidadosamente, as relações entre eles não eram sempre aparentes. Não parecia ter sido Pancho a construir o espaço onde eles se encontravam, mas antes os próprios objectos a construí-lo e a moldá-lo.
Bruno Schulz escreveu: «there is no dead matter, lifelessness is only a disguise behind which hide unknown forms of life. The range of these forms is infinite and their shades and nuances limitless.» (Bruno Schulz, The Street of Crocodiles, pg. 59-60)
Havia muito nestes objectos; quer fossem as assustadoramente realistas máscaras e bonecas Maconde, usadas em rituais de iniciação ou as caricaturas que lhe eram oferecidas ou que eram compradas (uma até foi feita para ele por prisioneiros); as lápides que o meu avô extraiu de um cemitério de escravos abandonado no deserto em Angola, as máscaras de iniciação Lomwe usadas para uma arrepiante cerimónia de passagem a idade adulta, que Pancho documentou (estas máscaras eram muitas vezes descartadas depois de serem usadas e o meu avô pedia que algumas fossem guardadas para ele).
Seriam os próprios objectos que chamavam por ele? Pancho falou dos edifícios como seres vivos. Não se podia visitar uma cidade com ele sem que as paredes dos edifícios ganhassem vida. Umas vezes as casas dançavam rua abaixo, outras as catedrais olhavam com desaprovação as igrejas pomposas, exibindo-se de forma vulgar.
O interior da sua casa fermentava com vida própria. Todos estes objectos que um dia tiveram passado e memória enchiam a casa com peso. Era difícil pensar lá dentro. Havia tantas histórias a querer ser contadas – mas talvez para aqueles que conheciam as histórias já não havia «rumor» a emanar dos próprios objectos. Talvez depois de terem contado a sua história, os objectos se tivessem tornado silenciosos e modestos.
Quem se lembrará destas histórias? Eu própria sei apenas muito poucas delas.
De acordo com Alexandre Pomar, «os objectos que ele (Pancho) coleccionava, como ele próprio afirmou, ajudaram-no a libertar-se, ‘da visão dominante eurocêntrica do homem branco que vive em terra alheia’»[1].
O meu avô falava com sarcasmo dos valores europeus que determinam o que deveria ser ou não considerado arte e do aspecto que deve ter. Defendia que a arte africana era tão valiosa, criativa e vibrante quanto a sua correspondente europeia. Para Pancho, toda a arte africana era tribal ou folclórica, incluindo a produzida pelos colonialistas portugueses que viviam lá nessa altura. É um ponto de vista interessante e muito no seguimento de outra opinião que defendia que um bom artista não precisa de ser «educado», e sobretudo não na tradição europeia. Acreditava que a educação excessiva de um artista e a sua sobreexposição o afastavam das suas raízes e portanto da sua capacidade de expressar o que ele é verdadeiramente e o que realmente tem em si.
A colecção do meu avô era tanto uma parte de si mesmo quanto o seu trabalho. Ele tinha escolhido tão cuidadosamente aqueles objectos por entre massas de produtos turísticos, encontrados em mercados nas suas muitas viagens pelo continente africano. Ele também cultivou jovens artistas africanos e artesãos de quem se rodeou. Não há dúvida que fez um grande esforço para incentivar e apoiar jovens artistas e artesãos.
Muitas das pinturas de Malangatana, da colecção inicial do meu avô, foram expostas por todo o mundo, incluindo na Tate Modern, em Londres, e acredito que também no Pompidou, em Paris. Muitos dos outros artistas africanos que foram seus contemporâneos são menos conhecidos. Os seus trabalhos nunca alcançaram o prestígio internacional que Malangatana teve, que naquela altura abriu caminho para muitos deles. Os desenhos «escritos» de Tito Zingo eram do mais excepcional – com molduras de madeira que o meu avô fez especialmente como se fosse uma continuação do trabalho do próprio Zingo, com aviões e casas – junto com obras de artistas portugueses que nessa altura viviam no país, tais como as pinturas resplandecentes e coloridas de Rosa Passos ou o estranho universo de António Quadros.
Artesãos e artistas locais costumavam juntar-se no seu estúdio/atelier em Moçambique e ele encorajava-os a criar bordados a partir dos seus desenhos ou de desenhos de crianças (coleccionar desenhos feitos por crianças era uma grande paixão de Pancho). Ele tem na sua colecção alguns feitos por Pedro Josefa Menge. O meu próprio pai tem alguns dos seus desenhos de tiroteios de cowboys que se tornaram almofadas.
Esta exposição de arte africana foi mostrada no espaço expositivo do Mercado de Santa Clara, na Feira da Ladra, em Lisboa. As obras de arte retiradas da casa e colocadas em exibição pareciam demasiado descontextualizadas e frias, em comparação com a mistura muito ecléctica de objectos presentes na casa.
Ainda existe uma grande quantidade de arte sul-americana, arte religiosa e até art nouveau e art déco que nunca foi exposta. É difícil catalogá-los ou até darmo-nos conta da escala de todos os objectos que ele com tanto cuidado seleccionou e com os quais escolheu partilhar a sua casa. Esses objectos eram os seus companheiros vivos e de certa forma poderiam ser chamados a sua outra família.
‘Can you understand,’ asked my father, ‘the deep meaning of that weakness, that passion for colored tissue, for papier-mâché, for distemper, for oakum and sawdust? This is,’ he continued with a pained smile, ‘the proof of our love for matter as such, for its fluffiness or porosity, for its unique mystical consistency. Demiurge, that great master and artist, made matter invisible, made it disappear under the surface of life. We, on the contrary, love it’s creaking, its resistance, its clumsiness. We like to see behind each gesture, behind each move, its inertia, its heavy effort, its bearlike awkwardness.’ – Schulz, Bruno The Street of Crocodiles, p. 62
Bibliografia
Bruno SCHULZ, The Street of Crocodiles. Nova Iorque: Viking Penguin Inc., 1977 (a partir do texto original publicado em polaco em 1934).
Alexandre POMAR, «An African collection» in As Áfricas de Pancho Guedes: Colecção Dori e Pancho Guedes. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2010.
Pancho Guedes Vitruvius Mozambicanus. Lisboa: Museo Colecção Berardo, 2009.
Footnotes