Faltam quatro anos para ter a idade que o meu pai tinha quando morreu. As lembranças que tenho dele são muito poucas, apenas completadas com as ficções em torno dos álbuns de família. Lembro-me do almoço em que o nosso periquito verde, a quem por vezes era permitido esvoaçar pela casa, caiu no copo de cerveja e ele o retirou de pernas para o ar, todo encharcado. Sobreviveu o suficiente para mais tarde fugir numa dessas evasões que provavelmente lhe vinham a estimular a confiança. Meses depois foi o meu pai quem se precipitou no fluido turvo do rio, mas ninguém o trouxe de volta, de pernas para o ar, todo encharcado.
Depois da sua morte tinha muitos sonhos repetidos. Num deles encontrava-me a dormir no meu quarto e um caldeirão cheio de um líquido espesso, tinto na cor, borbulhava assente em cepos incandescentes, mesmo ao lado da minha cama. Via cobras nos cintos pendurados do cabide da porta, vultos escabrosos feitos de roupa amontoada na cadeira e caía no vazio quase todas as noites. Como tinha pouca informação sobre ele, fiquei especialmente íntimo de alguns objectos do dia-a-dia de sua pertença. Imaginava como os manusearia e quais os seus favoritos.
Esta vida em torno dos objectos tornou-se tão forte que hoje me custa dissociar de qualquer objecto que trespasse a minha vida e é com alguma pena que os vejo desaparecer ou, pura e simplesmente, perder a sua utilidade. A questão é que há uma vida que fervilha nos objectos que nos rodeiam. Essa vida vem do facto de sermos, não só, definidos pelo nosso meio ambiente, mas em especial definidos ou definindo-nos através de todos os itens pelos quais escolhemos estar rodeados.
Tenho amigos que possuem poucos bens materiais e embora tenha empatia por essa ideia, é-me impossível mimetizar por completo o seu desprendimento. Mesmo nos meus momentos mais libertadores.
Os objectos são o que são, mas nós também somos o que somos, em parte por causa deles. Não precisamos deles para estar vivos, mas precisamos deles para ir vivendo.
Quando nos surge um objecto do qual não é fácil vermo-nos livres por questões emocionais, e se esse objecto por alguma razão já não está apto para continuar a sua vida funcional, parte do nosso processo inconsciente de conservação revela-se na sua elevação acima do materialismo. Torná-lo objecto de consolo interior, atribuir-lhe um sentido metafísico, é uma forma de apaziguar o nosso ímpeto de colectores e assim conservar na proximidade o fruto do nosso desejo por todas essas coisas que acumulamos sem necessidade prática.
É comum que objectos de entes falecidos, ou mesmo do dia-a-dia, sejam alvo de exacerbação. A arte do objecto, da sua manipulação simbólica e formal, está enraizada na nossa cultura, no ritual religioso, nas manifestações primitivas ou, pura e simplesmente, no mofo de um quarto fechado, mausoléu de um ente querido ou dispensa de arrumos. Está também nas colecções de provas da juventude e nas inúmeras estampas que detemos dos nossos percursos de vida.
Fotografamos para evitar a morte de um momento e acreditamos que essa imagem retém impressa parte da emoção desse mesmo momento. Também nos materiais fica impressa, de alguma forma, uma vivência e assim como a fotografia é veículo de um estado de espírito, também o objecto é dotado de um inexplicável espírito metafísico que lhe foi gravado pelo tempo e pela sua condição. Rodeamo-nos de objectos que nos dão conforto, porque nos identificamos com eles. E assim vamos construindo o nosso auto-retrato inanimado, configurado pelo carácter daquilo que nos rodeia. A escolha do que nos circunda é não só fruto de uma constante definição de nós próprios, mas é também, em último caso, uma constante projecção que nos é devolvida como que acedendo à nossa memória, mas aqui de forma tangível. Torna-se memória física e nessa reminiscência estão os mais variados estados de nós próprios. O nosso catálogo de condições emocionais, imagéticas e por aí adiante, espelhados nas escolhas que fazemos, quando elegemos algo para ter diante de nós.
Mas existe uma consequência nefasta que este processo pode desencadear e que remete para a possibilidade de virmos a amar mais ferozmente um desses artigos, em detrimento de uma relação humana. Existe uma doença caracterizada precisamente por esse estado, um sentimento de paixão que pode igualar-se à mesma condição, quando projectada numa pessoa, mas neste caso a fonte das emanações refere-se a um item particular.
É mais fácil amar uma projecção de alguém, mesmo que seja de nós próprios, do que amar cegamente esse precipício que é imiscuirmo-nos no outro. É mais fácil amar aquilo que não nos responde provocatoriamente e que não nos desvia do agradável trajecto quotidiano. Assim, amam-se colecções de selos, carros desportivos, canecas, artigos fora de moda e uma ou outra obra de arte. Amam-se também pessoas, que são elevadas ao estatuto de objecto, só porque ficam bem com as cortinas da sala de estar.
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Nota: «Objectofilia», parte do livro La cosa che vuoi dirmi è bella o brutta? de João Ferro Martins, publicado pela 3+1 Arte Contemporânea, Lisboa, 2014