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Breves notas a partir dos Espelhos Sonoros de Dungeness
(Kent, U. K.)
A evocação das ruínas de um complexo militar concebido para prever ataques aéreos – que, todavia, não chegou a funcionar – serve como ponto de partida para se questionar o intervalo que separa a intenção da realização de uma obra. A possibilidade de erro que se joga nesse intervalo determina implicações técnicas e estéticas que se podem extrair da obra, assim como uma perspectiva mais geral sobre as condições que fazem com que algo persista no curso do tempo.
«This then, I thought, as I looked round about me, is the representation of History. It requires a falsification of perspective. We, the survivors, see everything from above, see everything at once, and still we do not know how it was.» (W. G. Sebald. (1995). The Rings of Saturn, p. 125)
1.
Um invulgar conjunto de colossais estruturas de betão coloniza o horizonte do cabo de Dungeness, na costa sudeste britânica de Kent. Um largo muro flanqueia dois blocos ovais e côncavos. O impacto visual das estruturas não resultará apenas da sua grande escala. A par daquilo que de arcaico se possa ver nelas, na solidez e na austeridade que ostentam, as estruturas apresentam uma arquitectura curvilínea e abaulada que as reveste de uma plasticidade vanguardista, como se tratassem de construções abandonadas que já assim nos tivessem chegado do futuro. A sua marca na paisagem de Dungeness sugere uma estranheza ambivalente: estas estruturas parecem deslocadas temporalmente. Como diz Tacita Dean, a propósito de uma obra que lhes dedica (Sound Mirrors, 1999), e a que voltaremos mais à frente, a paisagem configurada por aquelas estruturas parece «que não funciona no agora»[1].
As estruturas a que nos referimos ficariam conhecidas como Espelhos Sonoros. Concebidas durante a Primeira Guerra Mundial, quando o perigo dos primeiros ataques aéreos colocava novos desafios à segurança nacional, as estruturas foram desenhadas como grandes dispositivos de alerta que pudessem captar, a distância considerável, o som de aviões alemães a aproximarem-se da costa[2]. Como uma espécie de sistema de monitorização pré-radar, as estruturas seriam desenhadas para captar o som como se de grandes estetoscópios se tratassem. A forma côncava concentraria as ondas sonoras nestes espelhos acústicos e um operador, na base da estrutura, analisaria essas ondas de modo a emitir o alerta. A Primeira Guerra acabaria antes que este projecto fosse materializado e as estruturas só seriam construídas entre 1928 e 1930. Defraudando a expectativa inicial, a sua suposta eficiência rapidamente se mostrou falível. O seu poder de auscultação, apesar de funcionar na captação de som, não proporcionava o detalhe suficiente para distinguir entre o som de um barco, do tráfico local, de um conjunto de pessoas num piquenique ou de um avião. Em suma, o projecto fracassou à partida quando se percebeu o desacerto relativo ao objectivo essencial: distinguir aquilo que fosse hostil daquilo que não o fosse. Qualquer investimento posterior na procura da correcção deste erro acabaria também por se ver injustificado. A década de 30 do século XX assistiria ao surgimento da tecnologia do radar, com o seu revolucionário poder de monitorização, e os espelhos de Dungeness, em vez de se tornarem um projecto de investigação ou de aperfeiçoamento, tornar-se-iam, praticamente à nascença, estruturas obsoletas condenadas ao esquecimento. Os serviços militares ainda os mantiveram activos durante algum tempo mas abandonaram-nos pouco tempo depois. A ordem de destruição, entretanto decretada, foi esquecida com o despoletar da Segunda Guerra Mundial. Sentenciados a permanecerem firmes no horizonte de Dungeness, mas inabilitados para sondarem os prenúncios dos traumas históricos do século XX, os espelhos continuariam solenemente, ainda que sem utilidade, pelo menos do ponto de vista militar, a reflectir o som daquela zona costeira.
2.
O fracasso técnico dos espelhos sonoros de Dungeness começa por reflectir a margem de erro que sempre se joga no intervalo irredutível entre a concepção teorética e a realização prática de um objecto. A passagem da idealização abstracta de um projecto para a sua materialização concreta encerrará sempre essa descontinuidade inerente àquilo que implica inserir algo no mundo e nos limites do real. Os investimentos técnicos do cálculo, da matemática aplicada, das ciências da verificação e da previsibilidade trabalham incessantemente na procura de reduzir, quase à insignificância, esse intervalo. Mas, em termos absolutos, nunca o conseguem eliminar. Um objecto técnico, para funcionar e para se afirmar como instância útil, não pode escapar à preservação de uma certa margem de indeterminação e de contingência[3] que permita a reacção e a abertura necessárias para integrar, no seu funcionamento, variáveis imprevistas ou comandos que excedem o planeamento estrito da sua concepção teorética. Em certa medida, foi este um dos problemas essenciais que despoletou os estudos da cibernética, em meados do século XX. A análise dos processos de automatização, que orientavam as dinâmicas de controlo do homem sobre as máquinas, procurava um equilíbrio na margem desse intervalo, de modo que a indeterminação potencial do funcionamento do objecto não ultrapassasse ou violasse o seu projecto inicial abstracto. À luz destas ideias, o exemplo dos espelhos sonoros é, no entanto, mais particular. O diagnóstico precoce da sua inutilidade expôs esse intervalo de uma forma explícita: a margem de desvio entre o intencionado e os efeitos do realizado revelou-se irreparável.
A ideia de intervalo, ou de potencialidade para um desvio que pode resultar, negativamente, em falha ou, positivamente, em capacidade de resposta ter-se-á, de várias formas, afirmado como uma ideia central em vários domínios ao longo do século XX. Para além do domínio técnico, no domínio da arte, por exemplo, continua a ser paradigmática a ideia de coeficiente artístico, enunciada por Marcel Duchamp: «a relação aritmética entre ‘aquilo que não está expressado mas que estava projectado’ e ‘aquilo que está expressado inintencionalmente’»[4]. Ao se radicalizar a ideia de Duchamp, e se colocar a ênfase na luta inerente ao acto criativo que impede que o autor exprima completamente a sua intenção, pode-se entender que qualquer obra é um certo tipo de falhanço entre intenção e realização.
Mas num século marcado pela tensão entre a evolução tecno-científica e a crise dos discursos positivistas, a evocação da ideia de intervalo pode ser ainda mais transversal. Os espelhos sonoros de Dungeness, na forma como expõem o desvio falhado entre intenção e realização, remetem para esse intervalo mais primordial: o das condições de acesso ao real. Sendo o objectivo inicial detectar apenas o som de ataques aéreos inimigos, de o filtrar entre o universo de sons possíveis, os espelhos acabariam por falhar nessa filtragem, acabando por captar o caos sonoro que os rodeia. Trata-se, mais uma vez, de ver frustrada a ilusão de que é possível uma matrização exaustiva do real a partir da qual se possa extrair apenas o pretendido. A resistência em aceitar que o mundo nos excede e que, consequentemente, os nossos dispositivos de captação tenderão sempre para a insuficiência manifesta-se dramaticamente aqui. A dificuldade não residirá nas condições de captação. O problema coloca-se na possibilidade de ordenação e de categorização daquilo que é captado, inultrapassável que é a anulação absoluta dessas descontinuidades[5].
3.
As noções de intervalo e de descontinuidade, para além de estarem implicadas no destino fracassado das estruturas de Dungeness, ecoam também na carga simbólica que lhes foi atribuída enquanto espelhos – pela própria configuração côncava da sua arquitectura e pela função de reflectirem o som. Os dispositivos especulares, desde o rio em que se fixou Narciso até aos espelhos adornados do quotidiano, implicam uma divisão originária na forma como desdobram o real e o multiplicam[6]. O efeito de algo que se reflecte, esse momento em que o real nos é devolvido, corresponde a um exemplo sintomático de uma interrupção. Nesse efeito, deparamo-nos com uma espécie de dobra que não acrescenta nada à realidade, apenas a reproduz ou a devolve. Os espelhos são, assim, sintoma maior dessa divisão originária do mundo, não apenas entre os objectos e os seus duplicados, mas entre a esfera do útil e a esfera do inútil.
O útil, da ordem do técnico, deve acrescentar alguma coisa ao real, deve construir alguma coisa. O inútil, da ordem do estético, apenas pode reproduzir simbolicamente o real, apenas o duplica, deixando à subjectividade individual a responsabilidade de prolongar o seu efeito. Oscar Wilde deu consistência a este dualismo quando assertivamente escreveu que «toda a arte é completamente inútil»[7]. Antes desta afirmação basilar, o escritor irlandês fundamentara a sua hipótese: «Podemos perdoar um homem por fazer uma coisa útil enquanto ele não a admirar. A única desculpa para fazer algo inútil é que possa ser admirada intensivamente.»[8]
Prolongando esta leitura, também os espelhos de Dungeness podem reflectir este dualismo e o intervalo que separa os polos do útil e do inútil. Concebidos como dispositivos de alerta, a utilidade destas estruturas residiria em tornar efectivo esse sistema, conseguindo prever os ataques aéreos. Seria esse o seu papel no sentido de acrescentar ou construir algo, de prolongar artificialmente a relação com o real, como qualquer invento técnico o faz. No entanto, no momento em que essa suposta utilidade se deu como fracassada, quando se provaram os erros do sistema, os espelhos sonoros libertaram-se de qualquer carácter utilitário. Foi esse o momento de transformação em que se disponibilizam para, já sem utilidade, serem iconizados ou estetizados como edifícios simbólicos entre a condição de monumento e a de ruína. Nesta fase, apenas poderiam replicar aspectos do real, reflecti-lo ou reproduzi-lo como qualquer objecto estético. Poderiam prolongar a paisagem de Dungeness mas não lhe acrescentariam nada nos termos de uma finalidade utilitária. Com efeito, o nome de espelhos, que seria dado às estruturas, encerra o vaticínio prematuro de que a sua inutilidade apenas as poderia tornar instâncias estéticas. Esquecidas para a estratégia militar, não o seriam através do alcance simbólico que lhes viria a ser atribuído. Esse alcance, entre outros exemplos citáveis, constituiria o mote da obra que Tacita Dean dedicaria às estruturas no seu filme de 1999 Sound Mirrors[9]. Ao longo de cerca de sete minutos em fita a preto e branco, o filme de Dean mostra vários ângulos das estruturas de betão, descontextualizando-as da sua possível utilidade inicial para insistir na tensão entre a sua decadência e a sua aura remanescente. O som que acompanha as imagens foi integralmente gravado através de um microfone integrado no espelho maior, oferecendo a possibilidade de testemunhar a acústica que estes monólitos continuam a reflectir do meio envolvente de Dungeness.
4.
Apesar do fracasso técnico inicial, os «espelhos» resistiram ao esquecimento e a sua memória foi inscrita numa forma de registo simbólico. Paradoxalmente, terá sido a sua inutilidade técnica a fazer, justamente, com que não fossem esquecidos. Recuperando as ideias de Walter Benjamin sobre a passagem do obsoleto ao estético, os espelhos sonoros de Dungeness foram inscritos num gesto de coleccionismo. Para o autor alemão, o coleccionador é aquele que se interessa pelos objectos que já não funcionam e, nesse gesto utópico de compilação e de admiração, os pode libertar do carácter utilitarista e mercantilista que o elemento cínico da história lhes impõe[10]. A partir da leitura de Benjamin, Rosalind Krauss prolonga essas ideias e acrescenta que «nada traz à luz, de forma tão eficaz, a promessa codificada no nascimento de uma forma tecnológica como a queda na obsolescência dos seus estados finais de desenvolvimento.»[11] O que a nota de Krauss parece acrescentar à tese de Benjamin é que, na concepção dos objectos técnicos, mesmo na fase ainda abstracta do seu planeamento, há uma dimensão estética ou, pelo menos, uma promessa que excede a suposta eficiência das suas funções e dos resultados a obter. E, se tal promessa está contida desde o nascimento de um projecto, é no erro ou na falha que a sua revelação se manifesta mais evidentemente.
A concepção dos espelhos sonoros de Dungeness, mesmo que tenha sido desenvolvida no âmbito de uma estratégia militar, certamente que não deixou de reflectir critérios que não foram estritamente funcionais. Poder-se-á pensar, por exemplo, na sensibilidade ao lugar e à paisagem de Dungeness, nas condições em que tal inserção aconteceu, ou na configuração que o seu desenho arquitectónico representa no prolongamento daquele lugar. No entanto, esses critérios manifestam-se de uma forma mais evidente quando as questões funcionais são eliminadas ou dadas como falidas. É nesse reenquadramento que as estruturas expõem a rede de ligações que não existia antes do seu aparecimento e que persistiu para além da sua capacidade de operar tecnicamente. A falha técnica veio adensar a reticulação de várias realidades que se reflectem simultaneamente: passado e presente, técnica e estética, eficiência e admiração, desvio e expansão. São estas ligações, já perfeitamente excluídas da ordem do técnico, que permitem encarar aquele local colonizado pelos espelhos sonoros como um ponto de excepção[12].
5.
Hal Foster, num texto sobre o impulso arquivístico da arte contemporânea, considera os espelhos sonoros de Dungeness, mediados pela câmara de Tacita Dean, uma visão futurista falhada: ao serem estetizados «servem como arcos encontrados de momentos perdidos em que o aqui e o agora da obra funcionam como um portal possível entre um passado inacabado e um futuro reaberto.»[13] A afirmação de Hal Foster joga com a heterogeneidade da linha do tempo e com o seu carácter sempre incompleto ou, mais radicalmente, com algo que possa exceder essa linha do tempo. É nesse excesso que se pode considerar o trabalho da arte. Se a técnica, nos constantes esforços em prol da eficiência dos resultados, tenta encurtar os intervalos, a estética apenas os tenta suspender, revelando a insuficiência da medida cronológica. Nesse gesto de suspensão, de carácter descontínuo, tal como os espelhos que dobram o real e apenas o replicam, os objectos, os edifícios, os monumentos ou as ruínas podem ser percebidos através da multiplicidade de ângulos cronológicos que forma aquilo que foram e aquilo que não chegaram a ser. Voltando a Duchamp, e às suas famosas notas sobre o processo criativo, «a luta em direcção à realização é uma série de esforços, de dores, de satisfações, de recusas e de decisões que não podem nem devem ser plenamente conscientes»[14].
Apesar das tensões e das contradições implicadas, aquilo que foi realizado é, no entanto, aquilo que permanece. A suspensão, com tudo aquilo que pode revelar esteticamente e com todo o seu poder de questionamento, não pode ser permanente pois, nesse caso, perderia o seu efeito. O duplicar do real, que a arte trabalha, confronta-nos também com a importância de, através do trabalho da técnica, se continuar a acrescentar algo ao real, de construir e de o moldar tectonicamente – mesmo com a vicissitude do erro. É esse acrescentar que, em conjunto com os fracassos, constitui o continuum da linha do tempo. A marca no horizonte dos velhos espelhos sonoros de Dungeness persiste na reevocação desse impulso construtivo ou tectónico. A solenidade com que resistem à corrosão do tempo relembra-nos que a nossa existência depende das realizações e do que delas conseguimos reter, mesmo quando falharam. De outra forma, bloquearíamos no intervalo da suspensão ou dissolver-nos-íamos na linha do tempo[15]. O fazer, mesmo com a possibilidade de falhar, é o derradeiro gesto na luta contra esse abismo da dissolução no tempo ou contra a hipótese, talvez insuportável, de que se o presente tivesse limite certamente estaria dissociado do passado.
Footnotes