«Improvisar é uma forma rápida de compor / Compor é uma forma lenta de improvisar.» (Arnold Shoenberg)
improviso #01 – Esta introdução ao meu paper é um improviso; escrevo-a em tempo-real; o que há muito tinha delineado fazer é agora finalmente posto em prática sob a forma de escrita automática; escrever primeiro e pensar depois; são 00:26:35 do dia 28 de Janeiro de 2010; como improviso que é, irá concerteza ter os seus erros; tal é o objecto deste meu artigo: falar do erro e da improvisação; partindo do princípio[1] que tanto a improvisação como o erro são já em si conceitos, que levantam problemas de representação da música; assim, pretendo apenas levantar questões; mais do que dar respostas; irei falar de improvisação; de improvisação total em especial; tentarei classificar e enumerar alguns tipos de erros que penso existirem na música; não hesitarei em usar citações de autores que li em livros ou de músicos que entrevistei via e-mail que reforcem ou contestem o meu ponto de vista sobre esta matéria; como conclusão do paper: deixar questões em vez de dar certezas; e tentarei fazer tudo isto através do ponto de vista da minha experiência pessoal como músico e improvisador que sou.
autocolante #02 – O meu contacto com o erro na improvisação deu-se num concerto que ia realizar no CCB e ao entrar para o palco alguém me deu um autocolante para as mãos, já eu estava quase a entrar em palco. Não tendo bolsos, descolei o papel e colei-o na guitarra. Durante o concerto, olhei para o autocolante e tive a ideia de o retirar lentamente, encostado ao microfone, o que provocou um som interessante, semelhante ao crepitar do fogo numa lareira. Ao outro dia tinha de dar no mesmo sítio outro concerto à mesma hora. Andei todo o dia à procura de um autocolante. Finalmente encontrei-o e contente fui para o local do concerto. Preparei-me e antes de entrar em palco colei o autocolante na guitarra. Durante o concerto comecei a retirar o autocolante perto do microfone. Não produziu qualquer som. O material de que este era feito era diferente. Esta foi uma grande lição para mim sobre o que era improvisar.
lucky luke #03 – Nos últimos 25 anos, a minha relação com a prática musical, tem incluído, com um grau cada vez maior, a improvisação. Cada concerto, ensaio, gravação, tenta ser conceptualmente diferente da anterior, quer a nível técnico, performativo ou das metodologias utilizadas. Factores que determinam essas diferenças, podem ser: o local onde se realizam essas acções; o espaço cénico; condições tecnológicas; estados psicofisiológicos.
Estudar, trabalhar e controlar a improvisação, é um paradoxo: como controlar o que deve ser um desenvolvimento livre de ideias musicais, espontaneamente sugeridos pela imaginação? E a que improvisação me estou a referir? À improvisação como um sistema de sinais? À improvisação total, onde nenhum parâmetro/ notação/ gesto/ acção/ ideia, é previamente definido? À improvisação estruturada (onde apenas um mínimo de informação serve de estrutura à acção musical)? À improvisação jazzística, na qual após a exposição de um tema pré-determinado, o improvisador tem a liberdade de agir numa tonalidade/escala ou modo definido)?
Para Derek Bailey, no seu livro Improvisation, existem duas formas principais de improvisação: a improvisação idiomática e a improvisação não-idiomática. A improvisação idiomática (que é a mais vulgar encontrarmos em toda a parte do globo) refere-se à expressão de um idioma, tal como o Barroco, o Jazz ou o Flamenco e retira desses a sua identidade e motivação desse idioma. A improvisação não-idiomática – embora seja altamente «estilizada» – tem outras preocupações e não está ligada a nenhuma identidade idiomática.
De todas estas formas de improvisação, a que mais me fascina/apaixona, a que verdadeiramente me eleva a graus de prazer excepcionalmente misteriosos e extraordinários, é a improvisação total não-idiomática.
Derek Bailey escreve sobre a improvisação, «...And as regards method, the improviser employs the oldest in music-making... Mankind’s first musical performance couldn’t have been anything other than a free improvisation…». E sobre a improvisação total refere que «Free improvisation, in addition to being a highly skilled musical craft, is open to use by almost anyone – beginners, children, and non-musicians…».
Uma vez que a essência da improvisação é a espontaneidade, a intuição musical, é tanto maior quanto maior for o input informacional do improvisador. Nesse sentido, dirigi o meu trabalho ao estudo e recolha sobre diferentes aspectos ligados ao acto improvisatório: a aleatoriedade, a indeterminação, o acaso, a música intuitiva, o caos.
A introdução de jogos/sistemas aleatórios, levam o improvisador a momentos improvisatórios de excepção, se tivermos em conta que o que está em «causa» implicitamente nessas situações musicais são: a surpresa, o «risco», o espantar constante, imediato e em tempo-real – o improvisador tem que ser um pouco como o Lucky Luke: mais rápido que a própria sombra....
A indeterminação é uma situação musical, mais comummente associada à noção compositor/intérprete ou ao próprio método escolhido pelo compositor no acto criativo, tentando introduzir através do acaso paisagens-musicais não determinadas, muitas vezes mutantes em cada processo criativo.
Com o caos, representado por irregularidades e alterações repentinas de sobrepostas acções musicais, invertemos a inclinação da música dirigida para um reducionismo (a análise dos sistemas musicais em termos das suas partes constituintes: escalas, ritmos, melodias), leva-nos a contemplar o todo musical.
Diferenças mínimas no input musical (efeitos de phasing, distorções, delays), podem tornar-se em diferenças enormes no output musical. Uma espécie de efeito borboleta musical. O micro interfere com o macro!
erro #04 - Ultimamente vivo «obcecadamente» tentando incluir aquele que considero ser o maior, verdadeiro e mais puro acto improvisatório: o erro. Não será o erro, o momento musical mais próximo do «surpreender-nos a nós próprios»?
«An error may be only an unintentional rightness... Do not get too fussy about how every part of the thing sounds. Go ahead. All processes are at first awkward and clumsy and funny. Do not be afraid of being wrong; just be afraid of being uninteresting». (T. Carl Whitmer).
O erro na música é visto por certas civilizações (a Ocidental especialmente) como algo negativo, depreciativo e indesejável. Mas sei também que a História da Ciência está repleta de casos de descobertas importantíssimas que se originaram de erros ou de acidentes: Fleming descobriu a penicilina graças ao fungo que contaminou uma lâmina de cultura; Roentgen descobriu os raios X graças a um descuido no manuseio de uma placa fotográfica. É conhecido o princípio do jiu-jítsu: usar os golpes do adversário e a energia que deles vem, para desviá-los em nosso proveito. Joe Pass, guitarrista de jazz, diz que «If you hit a wrong note, then make it right by what you play afterwards». Já o compositor John Cage diz que «The idea of a mistake is beside the point, for once anything happens it authentically is».
Como é que nascem as pérolas? Um grão de areia deposita-se acidentalmente na concha de uma ostra; a ostra passa a segregar um muco espesso e homogéneo, que se solidifica em camadas microscópicas, até se transformar numa pedra dura, perfeitamente esférica e lisa, de lírica beleza.
Quando andamos na escola, no nosso trabalho, a aprender um desporto ou uma Arte, somos «ensinados» a temer, ou evitar os erros. Mas na realidade os erros são de um enorme valor. Se não se errar, provavelmente não faremos nada verdadeiramente original e criativo.
Os erros podem ser assim, grãos de areia que se travestisam em pérolas. Freud mostrou-nos a maneira fascinante como os lapsos de linguagem revelam o material inconsciente. Ora, o inconsciente é o verdadeiro pão do artista, de forma que «os erros e lapsos devem ser valorizados como informações inestimáveis do nosso interior».
O improvisador português Ernesto Rodrigues tem esta opinião sobre o erro na improvisação: «Quando improviso, sirvo-me de argumentos ligados à prática, à gestualidade, ao espaço envolvente, à interacção, aos estímulos – é tudo muito pragmático e imprevisível. Os factores risco e erro estão sempre presentes e inter-relacionados com esta situação. Na improvisação, o erro é assumido e transmuta-se para planos em que pode ganhar contornos tão ou mais importantes do que a ausência desse mesmo erro. Pode até assumir o papel preponderante de fio condutor da improvisação em causa. A dada altura podes encará-lo como mais um motivo e, dependendo da perícia do improvisador, pode ser levado para níveis ou caminhos nunca antes intuídos ou codificados». Já o saxofonista de jazz João Martins, é de opinião que «Para mim, na qualidade de improvisador, é perigoso difundir como inequívoca a ideia de que na improvisação (total ou não) não existe ‘erro’. A possibilidade do ‘erro’ existe sempre, pode é ser valorizada e contextualizada de forma diferente. Mas, se considerarmos o erro como um desfasamento entre acção e intenção, então essa possibilidade existe em toda a música interpretada por humanos». Antoine Pimentel, percussionista de rock, acha que «Na improvisação não existe erro em absoluto, seria um contrasenso. Na improvisação, o potencial de liberdade é total, logo não há certo ou errado, há, isso sim, acontecimentos musicais que, no seu presente, servem a continuação do discurso, de uma forma orgânica. A improvisação alimenta-se de uma sucessão constante de erros certos».
Ora, sabendo eu da importância que o erro tem ou pode ter na música e em especial na improvisação, comecei inicialmente por distinguir diferentes tipos de erros:
— erro ocasional (provocado por diversos factores: distracção momentânea, amnésia, fadiga, dislexia, etc.);
— erro por excesso (quando por exemplo um pintor não sabe terminar o seu quadro na altura certa);
— erro por ignorância (causado por desconhecimento de como proceder);
— erro virtuosístico (que advém de o improvisador levar ao limite máximo determinada situação musical complexa, e tentar uma espécie de «overdose» técnica tal, que a determinada altura, o «erro» ocorre);
— erro tecnológico (causado por uso indevido de certa tecnologia, ou pelo contrário: usar essa tecnologia para recriar o erro). O compositor e improvisador Pedro Rebelo fala-nos sobre o erro no uso da tecnologia digital na improvisação: «Acho que o meu interesse em relação às tecnologias tem muito a ver com a improvisação, especialmente no que estávamos a falar há pouco em relação ao perigo. Há demasiados artistas que usam novas tecnologias como uma forma de realizar sonhos e realizar imaginações, e uma parte importante das tecnologias é o erro. Depois, ou o erro que acontece na improvisação passa a fazer parte da música ou então vai dar lugar a uma situação permanentemente frustrante. As novas tecnologias têm um sistema de erro que pode ser interessante – quando se cria uma situação de improvisação que inclui músicos a tocar um instrumento acústico, por exemplo, e uma parte de computador que seja mais ou menos interactiva, que responda a determinadas estruturas ou parâmetros que um músico possa fazer. Acho que é importante que o computador também tenha a possibilidade de erro. Em termos de programar um computador para fazer determinadas funções, é possível programá-lo para fazer coisas deterministas, mas também é possível programá-lo para fazer coisas totalmente aleatórias – nenhuma destas hipóteses é muito interessante, mas antes o que está no meio. Ou seja, o que acho mais interessante é saber mais ou menos o que é que pode acontecer mas dar a possibilidade ao que se pode chamar um erro».
Mas como provocar o erro? O erro provocado intencionalmente não é erro! O erro quer-se aqui, num estado puro (erráticamente natural), não-intencional. Thelonious Monk, descontente com uma improvisação que acabava de executar, saiu-se com esta extraordinária observação: «I have made the wrong mistakes»!
Se ordem no caos é um aforismo, também o é provocar o erro certo. O erro que eu pretendo tem que ser instável, desordenado em todas as escalas, movimento tornado aleatório, pequenos remoínhos dentro de remoínhos, enfim, turbulência.
O erro, como possibilidade musical, tinha que ser concebido como um sistema simbólico formal capaz de trazer novas possibilidades à improvisação: caos com feedback. Da mesma maneira que a simplicidade gera a complexidade, o erro tem que gerar o erro.
Encarar o erro como uma realidade musical, é como uma espécie de «Alegoria da Caverna», em que as «sombras» são a «realidade». Se a Música é uma criatividade governada por regras, poderá o erro ser uma criatividade governada por regras?
Para lidar com o erro, tinha que «desaprender» o que era «certo». Tinha que sair fora-do-sistema. Para Douglas Hofstadter, sair-se de um sistema era o que distinguia o ser humano da máquina; e dava como exemplo o pegarmos numa calculadora e somarmos ao número 1, 1 e depois +I e +I e depois +1 e +1 e +1 e +1 e repetirmos isto durante várias horas; a máquina nunca aprenderá a antecipar-nos, enquanto que qualquer pessoa encontraria imediatamente um padrão repetitivo. Conclui Hofstadter, que «é possível para uma máquina agir sem observar, é impossível ao homem agir sem observar».Como sair então fora-do-sistema? Se estiver a ler um livro ou a escrever este texto e me sentir cansado, posso sempre parar de ler ou escrever e retomar mais logo: isto é sair-do-sistema. Se o sistema normal de um músico é o de não-errar, como inverter o «jogo» e direccionar o seu acto musical para o erro, sem o provocar intencionalmente?
Através de um modo mecânico, que nos leve a trabalhar dentro do sistema e esperando obter o erromodo inteligente, isto é, nada nos diz que estando sempre dentro do sistema nos vai trazer o erro e assim sai-se fora-do-sistema, tentando modificar constantemente as regras deste, trabalhando às avessas? Ou através de uma espécie de não modo, uma maneira zen de esperar que o erro apareça por si? Reflectindo sobre estes três modos de proceder para «provocar» naturalmente o erro, lembrei-me que quando me aparece uma coisa que não percebo no computador e passo horas e horas a tentar resolver o problema (erro) muitas vezes não o descubro: isto é o modo mecânico; depois desisto, vou-me deitar (saio do sistema) e de manhã, acordo, ligo o computador e descubro imediatamente a solução: isto é o modo inteligente; ou então, sem qualquer razão aparente, o problema resolve-se por si próprio: o não modo. Passei então a considerar o erro, como um sistema formal, uma espécie de puzzle: «como produzir erro?». Para resolver este puzzle é necessário estabelecer uma regra: «não se pode errar propositadamente»; deve-se errar «naturalmente», sem consciência de que se vai errar. A solução do puzzle é a de que esse erro assim obtido, deixa de ser erro, porque é o que se pretende obter: «a sombra torna-se realidade», chegando-se assim a um paradoxo, ou melhor, aquilo que Hofstadter chamou de strange loop (estranho anel):
«A FRASE SEGUINTE É FALSA A FRASE ANTERIOR É VERDADEIRA»
O «erro que não é erro», é um estranho anel, difícil de alcançar, mas pelo qual um improvisador deve lutar!
Bibliografia:
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Footnotes
^ Tal como me foi sugerido pela Professora São José Côrte-Real.