Há uma brincadeira de crianças que em inglês ganhou o nome de broken telephone. Numa sala de aula, por exemplo, o primeiro aluno diz uma frase ao segundo, o segundo ao terceiro e assim por diante até ao último, na outra ponta da sala. A frase final será completamente diferente da original. As palavras foram-se contorcendo entre as pequenas gargantas e tímpanos envolvidos; a continuação vai sendo interrompida pelos sucessivos abanões de cada ouvinte-falante, não deixando que a comunicação reordene o rumo, desviando-se para sempre do original e do previsto; a linguagem ganha vida própria, foge das clausuras do dicionário, da lógica, do sentido, da ordem; a cada intervalo, uma entorse inesperada; entre escutar e segredar, acrescenta-se um ponto. Assim, parece descobrir-se o que permanecia escondido na aparente transparência da frase original, o que esta retinha sob a textura do texto, sob a língua que fala, sublingual como o comprimido para aflição coronária, de efeito rápido.
7.
O que se descobre, na verdade, são as possibilidades da frase original e de todas as outras subsequentes que apareceram sob a forma de tentativas de repetição do que se ouviu; o que acontece, na verdade, é que a cada transição cada criança vai falhando, melhor ou pior.
Esta brincadeira parece fazer descobrir – destapar, desvendar, descortinar – as possibilidades de cada frase dita, que cada frase carrega em si, a potência que se encerra no interior de tudo o que se diz. Trata-se, neste sentido, de uma estratégia, um dispositivo poético. É a palavra poética que desorganiza e estica a frase e a palavra comum, é ela que interrompe a sonolência da palavra transparente; a palavra transparente, ao contrário, é aquela outra que atravessa o espaço, sem ruído nem interrupção nem desvio, entre uma garganta e um tímpano. Poesia é contrapor à palavra instante a duração; ou, poesia é contrapor à linha o plano.
Broken telephone desdobra o presente único da frase original numa série de presentes possíveis que vão sendo sucessivamente transmitidos pelas gargantas infantes. Todas as frases falhadas desenham o plano de possibilidade da frase original.
8.
Inscrito neste plano de possibilidades está também a possibilidade do verso, o verso das coisas. Por exemplo, alguma poesia é constituída por versos, isto é, por coisas do outro lado (como na frente e verso); a poesia, o verso, é dizer – ver – as coisas de um outro lado; não é ver – ou dizer – o lado escondido das coisas, nem a sua verdade, mas apenas dizê-las ou vê-las de um outro lado, do lado do verso. Poder-se-á dizer que o verso atravessa ou faz atravessar a frente das coisas; como dizer que a luz vista pelo verso tem algo de azul [luz a], e, justificadamente, vice-versa. Ora, neste sentido, pensando no sentido do verso, ou como o verso das coisas é outra forma de as conhecer, um outro acesso ou abertura, diremos: “A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra” (Carlos de Oliveira), ou, o mar, que é superfície para o homem – enganadora superfície, como escreveu Michaux –, para a baleia é tecto, como se lê numa kenningar lida por Borges; na verdade, todo o mar é submarino, porque em submarino subentende-se tudo o que está para lá daquela superfície plana das águas calmas; a mesma superfície plana – a tensão superficial – que permite ao alfaiate sapatear sem furar a pele da água. Ver o verso das coisas, desordenar o comum, reconhecer num elemento do staff a possibilidade da personagem boémia, reconhecer em quem serve aquele que só é servido [Inappropriate Shirt #1] – explorar o plano de possibilidades das coisas, interromper o presente único.
9.
Como nos explicou Bergson, o tempo – o presente – é o factor que impede que tudo (o que é possível) aconteça ao mesmo tempo. O tempo – o presente, o agora – é o factor que impede a simultaneidade, e à volta da sua linha funâmbula desenvolvem-se todas as outras linhas de possibilidade.
Este plano de possibilidades, o reino dos possíveis, tem um nome próprio – a política. A política é onde os possíveis se jogam – ou se criam –, quer dizer, é o reino da simultaneidade; os possíveis só o são verdadeiramente quando o são ao mesmo tempo. A política é o reino dos possíveis porque não se restringe àquela linha única do presente, porque em cada agora vislumbra os possíveis paralelos, porque percebe cada agora como dúbio, múltiplo, cada instante como uma série de instantes simultâneos. Quando as lógicas da sucessividade e da sequencialidade são interrompidas pela eclosão do simultâneo, é aí que a política acontece, é nesse momento que a política se torna possível. O verdadeiro acontecimento político é o reconhecimento de uma simultaneidade (e não o momento subsequente da decisão).
10.
Muitas vezes se tomam como políticas certas obras que impõem uma leitura a priori, que querem transportar uma mensagem – uma crítica, uma denúncia, uma renúncia, um anúncio –, tentando coreografar, prescrever, a experiência do espectador, quer dizer, pretendem desenhar uma linha em vez de disponibilizar um plano, como o cano da espingarda, que serve para instruir a bala na direcção desejada; um protocolo para o espectador. Esta é, como se percebe, uma lógica contrária a tudo o que atrás se disse sobre poesia e simultaneidade, sobre a linha do presente e o plano de possibilidades, contrária a um certo entendimento do que pode ser a política.