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Assim, pedem-nos que falemos sobre a fenda. Entendemo-la como um espaço em falta. Uma falha, uma brecha. Mas como nos dedicamos às artes também percebemos que uma fenda pode ser útil, abre caminho, separa o material. Mas, mais importante ainda, uma fenda pode ter o seu próprio espaço, não necessariamente pior que o espaço que separa.
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Imaginem aquela ilusão da taça entre as duas caras. Ou, mais exactamente, um mosaico de Escher, onde fundo e figura mudam rapidamente de função: o ganso funde-se na paisagem que se funde no ganso. Não é realmente uma fenda, pensarão, apenas uma ilusão de óptica.
A dúvida ainda é mais pertinente com o famoso Pato-Coelho de Wittgenstein, que parece estar sempre a oscilar entre dois estados, sem uma transição possível. Parece não haver aqui um intervalo, um momento a meio caminho entre o pato e o coelho. A estas imagens que acumulam diversas – e até opostas – leituras, chamam-se «multiestáveis». Segundo WJT Mitchell:
«(…) são uma característica recorrente nos estudos antropológicos da chamada ‘arte primitiva’. Máscaras, escudos, ornamentos arquitectónicos e objectos rituais apresentam paradoxos visuais juntando formas humanas e animais, perfis e vistas frontais, ou faces e genitais. O [efeito de surpresa] destas imagens é por vezes associado a formas de ‘pensamento selvagem’, ritos de passagem e experiências ‘liminares ou limites’ onde tempo e espaço, figura e fundo, objecto e sujeito jogam um jogo sem fim de balancé.»[1]
Há um cartoon de Paul Noth onde dois exércitos se enfrentam numa guerra. De um lado estão os que adoram o «Deus Coelho» do outro os do «Deus Pato». As suas bandeiras são, como seria de esperar, iguais. A única coisa que os separa é uma interpretação oposta e fixa do puzzle. Cada lado, calcula-se, é levado pela sua cultura, hábitos, leis, tradições, líder, a ver um pato e nunca um coelho e vice-versa. A fenda aqui é política, e determina a percepção de cada um dos exércitos.
Num dos livros de China Mièville, The City & The City, sobe-se a parada. Descreve-se dois países independentes, coincidentes na mesma cidade, com línguas, arquitecturas, costumes, leis e até linguagens corporais distintas, que proíbem os seus cidadãos de se verem entre si. A força policial que assegura esta ordem chama-se Breach, que se poderia traduzir para Brecha ou Fenda. Movimentam-se entre as duas cidades assumindo um vestuário, uma linguagem falada e corporal que se situa a meio caminho entre cada comunidade, invisível portanto. Pode-se imaginar que o emblema deste corpo policial poderia ser uma imagem «multiestável», talvez um Coelho-Pato heráldico.
É um caso extremo mas leva-nos a pensar como muita da exclusão e muita da política começam também elas ao nível do sensível. É essa a tese de Jacques Rancière, aquilo a que ele chama a Partilha do Sensível:
«(…) sistema de factos da percepção sensorial auto-evidentes que simultaneamente revela a existência de algo em comum e as delimitações que definem as partes respectivas e posições dentro dele. A distribuição do sensível estabelece portanto ao mesmo tempo algo comum que é partilhado e partes exclusivas. Este emparcelamento de partes e posições é baseado numa distribuição de espaços, tempos e formas de actividade que determina a própria maneira como algo em comum se presta à participação e de que forma vários indivíduos tomam parte dessa distribuição.»[2]
O título do famoso quadro de Magritte com a imagem do cachimbo cuja legenda assegura não ser um cachimbo é La Trahison des Imagens. «Traição» pode parecer um termo excessivo – é comum legendas e imagens terem relações ambíguas. No filme Lettre de Sibérie (1957), de Chris Marker, a mesma cena é narrada de três modos distintos, pró-soviético, anticomunista e «neutra», sem conclusões excepto que é natural as imagens terem interpretações distintas. O quadro de Magritte simula a ilustração de um livro escolar, sublinhando uma pedagogia oficial, onde se aprende uma certa ordem, uma certa disciplina, que passa também por um relação esperada entre palavras e imagens. É aí nessa relação oficial entre palavra e imagem que se processa essa traição. Como dizia Michel Foucault a propósito desse mesmo quadro:
«Sobre a página de um livro ilustrado, não se tem o hábito de prestar atenção a esse pequeno espaço em branco que corre por cima das palavras e por cima dos desenhos, que lhes serve de fronteira comum para incessantes passagens; pois é ali, sobre esses poucos milímetros de alvura, sobre a calma areia da página, que se atam entre as palavras e as formas, todas as relações de designação, de denominação, de descrição de classificação.»[3]
Um gabinete de Amador é uma novela de George Perec, centrada numa colecção de pintura. Funciona como um catálogo que apresenta detalhes diversos – proveniência, autor, título, valor sobre as obras dessa colecção –, mas mais especificamente fala sobre uma pintura em particular, a que dá o nome ao texto, Um gabinete de Amador, que suscita um fascínio particular no público. Esta pintura é um retrato do colecionador sentado, admirando várias pinturas da sua colecção. Graças a uma encenação inteligente (espelhos representados na pintura), a cena repete-se infinitamente, cada vez mais pequena. Em cada uma das sucessivas reflexões, vão-se introduzindo ligeiras alterações relativamente à sua representação inicial.
Georges Perec apresenta-nos um engodo, ou melhor uma sucessão de engodos que apontam para uma reflexão sobre originalidade e réplica. Ora este engodo é camuflado pelo modo como o autor narra a sua história através de um estilo realista e despretensioso, utilizando elementos de ficção conjuntamente com factos verídicos, relacionando vivamente a palavra – ou o discurso do verbo – e a imagem, numa espécie de mise en abyme que nos provoca uma sensação constante de vertigem entre verdade e mentira. E é neste intervalo ou fenda entre ficção e realidade que se produz o objecto artístico. A fenda é o engodo, uma criação meta-textual, inserida na própria obra.
A experiência visual do mise en abyme é como estar entre dois espelhos e ver a sua própria imagem repetida infinitamente. Este efeito de espelho pode chegar ao ponto de instabilidade, e nesse sentido ser entendido como parte de um processo recursivo. Como técnica literária consiste na inclusão de um ou vários relatos dentro de uma narração principal. A sequência do relato principal interrompe-se para introduzir uma situação distinta, como n’As Mil e Uma noites (Séc. IX) ou no Decameron (1348-1353) de Bocaccio. Numa época em que as narrativas e tradições se transmitiam oralmente e os livros eram recitados, o formato de histórias em cadeia oferecia uma vantagem. Os recitadores podiam seleccionar os relatos que preferiam, ignorar os que menos gostavam, e agregar novas histórias. Frankenstein (1818), de Mary Shelley também oferece um bom exemplo de múltiplas histórias em cadeia: o personagem Robert Walton comenta por carta a sua irmã a história que lhe contou Víctor Frankenstein; e o relato de Frankenstein contém a história da criatura/monstro, que por sua vez contém brevemente a história da sua família. Na crítica literária é paradigma da natureza intertextual da linguagem – no sentido em que a linguagem nunca alcança a fundação da realidade uma vez que se refere, a outro tipo de linguagem, que se refere a outra linguagem, e por aí fora.
O Manifesto Antropofágico, escrito em 1928, foi publicado na Revista de Antropofagia, que Oswald de Andrade – um dos protagonistas principais do Modernismo Brasileiro, fundou com Raul Bopp, e António de Alcântara Machado, definindo com ele o movimento da Antropofagia: «A revista de antropofagia não tem orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago»[4]. Ora o estômago é um órgão aparentemente oco, um receptáculo onde se chega através de uma fenda que é a boca.
Antropofagia significa qualidade ou hábito de pessoa que come carne humana, designa práticas rituais em algumas comunidades indígenas do Brasil, por exemplo, que consistiam na ingestão da carne dos inimigos aprisionados em combate, com o objectivo de se apoderar da sua força e energias. O manifesto modernista fazia parte de uma estratégia criativa com o intuito de questionar as bases culturais, políticas e económicas impostas pelo colonizador Europeu no contexto artístico e intelectual Brasileiro. Metaforicamente a ingestão apresentada pelo Manifesto Antropofágico é o processo através do qual a cultura brasileira tende a assimilar criticamente as influências e os empréstimos advindos dessas culturas dominantes. A cultura brasileira passa a definir-se não por elementos estáveis de composição, mas por uma atitude agressiva, a atitude de deglutição criativa, ideia que se inspira no sentido mágico e ritualístico da antropofagia.
A ideia de um carácter antropófago latente neste movimento cultural teve como referência as leituras dos cronistas quinhentistas, como Hans Staden (1525-1579), alemão que foi prisioneiro dos Indios Tupinambás durante quase nove meses, aguardando a hora de ser devorado. Algumas das ilustrações da Revista de Antropofagia, foram retiradas da sua obra Duas Viagens ao Brasil (1557) e mostram detalhes sobre o ritual antropofágico. Como interpretar estas cenas de canibalismo, dos tempos da colonização, que ocupam tranquilamente o fundo da paisagem? Indígenas, que esquartejam e cozinham homens brancos missionários, enviados especiais para encobrir as superfícies de uma cultura dita primitiva com religião, Barroco e azulejos puros, devolvendo o horror da catequização áspera a que eles próprios estavam sujeitos. A igreja católica teve que inventar a selvajaria dos povos indígenas, para justificar o seu extermínio maciço. No entanto, poucos cristãos civilizados se recordam das bodas de Caná e têm a noção de que, na eucaristia cumprem igualmente um acto de canibalismo – São João relata no seu evangelho, «Quem comer o meu corpo e beber o meu sangue vive unido a mim e eu a ele»[5].
Em português a palavra Barroco tem o sentido de pérola imperfeita, ou jóia falsa. Na Europa o estilo Barroco, nas artes, música e literatura foi contemporâneo do horror provocado pela Inquisição. A tensão de elementos contrários causa no artista Barroco uma profunda angústia pois vive de uma cisão, ou fenda, entre interior e exterior, como uma dobra que repercute de ambos os lados. Severo Sarduy (1937-1993) poeta, escritor e critico cubano no seu texto sobre o Barroco refere-se a uma «Câmara de Ecos, (…) como o espaço onde escutamos ressonâncias sem nos submetermos a uma sequência ou a qualquer noção de causalidade, onde o eco precede, muitas vezes, a voz»[6]. Ele refere-se também à inversão do enredo histórico conhecido a uma narrativa sem datas, realçando a importância, tanto do que é incluído como daquilo que é ocultado, obliterado ou esquecido na construção de um relato.
O espaço vazio dessa «Câmara de Ecos» apresenta a ausência dos indícios que por norma comprovam um facto histórico ou narrativo, abrindo outras possibilidades para imaginar e realizar. Podemos compará-lo com as descontinuidades ou falhas de camadas rochosas que representam um vazio no registo do tempo geológico, e na informação sobre as mudanças que a originaram. Estas peculiaridades geológicas são frequentes e representam hiatos de tempo na história da Terra, como as páginas ausentes de um livro.
O Barroco constituiu-se de uma mistura de diversas tendências, portuguesas, francesas, italianas e espanholas, e o seu foco foi uma arte voltada para as questões espirituais e decorativas. Suprimindo toda a transição entre o claro/escuro – é como se caíssemos de repente num abismo ou fenda, justapondo bruscamente os contrários. A arte passa a estar para além da simples mimesis, comportando-se como um veículo de transmissão de um sentimento interior.
A pintura de Caravaggio (1571-1610), artista maior desta época, apresenta uma das questões centrais do Barroco: o questionamento do pensamento religioso e, por consequência, o questionamento da existência – ou não, de Deus. Em A Incredulidade de São Tomé (1601-1602), Tomé precisa de «ver para crer», assim como o Homem Barroco, que já não aceitava acriticamente as normas católicas. Metaforicamente, a dúvida de Tomé, representa a dúvida do Homem do Renascimento diante do pensamento teológico político em vigor: no Barroco, há uma tensão constituída pela tentativa de unir pontos de vista opostos – o antropocêntrico, herdado do Renascimento, e o teocêntrico, resgatado pela Contra-Reforma, como é evidente na descrença de São Tomé. A obra de Caravaggio espelha a harmonia dissonante da estética Barroca, ao reflectir sobre estes aspectos contraditórios, tais como a luz e a sombra, o sagrado e o profano, o interior e o exterior. O momento retratado é transcendente: Jesus, ressuscitado, assoma entre os seus apóstolos. O dedo que revolve a ferida em fenda aberta assinala a incredulidade humana, o desejo de se certificar antes de aceitar o milagre que parece impossível.
David Greene é um arquitecto britânico e um dos fundadores da revista e do grupo de arquitectura experimental Archigram (1961). O projecto L.A.W.u.N. (1969) de Greene faz parte da sua longa investigação sobre a ideia de invisibilidade em arquitectura e a possibilidade de criar uma «paisagem natural com serviço completo»[7]. O mundo natural mantém a sua aparência, mas é servido por redes invisíveis, as L.A.W.u.N. (Locally Available World unseen Networks). Esta visão de um ambiente tecnológico totalmente integrado parece anunciar a arquitetura invisível de informação actual conhecida como WI-FI. Assim as Rockplugs e os Logplugs seriam réplicas de rochas ou troncos, subtilmente instaladas por todo o lado no mundo natural funcionando como contentores L.A.W.u.N. para uma vida nómada. O viajante poderia localizá-los através de um painel móvel ou um dispositivo doméstico, depois de conectado poderia seleccionar os serviços desejados, pagando-os com um sistema de cartão de crédito anexado. A ideia de transparência e de invisibilidade é uma das características do mundo moderno. As ondas electromagnéticas já tinham começado a ser transmitidas pelo ar e o avanço na tecnologia de rádio, telefone e televisão significava que lugares distantes poderiam ser conectados virtualmente, estabelecendo a possibilidade de um mundo transformado pela comunicação instantânea, invisível e sem fios. O facto do capitalismo avançado tornar o conceito de trocas e valor mais abstracto fez com que o invisível já organizasse o mundo de modo mais fundamental do que o urbanismo ou a arquitectura. O espaço hoje é fabricado pela influência dessas forças invisíveis – parece que falta ou que se esconde. A ideia do nada, do desaparecimento da substância, influencia toda a nossa experiência, onde o «ver para crer» já não comprova nada.
Footnotes