1.
Tenho dois trabalhos impossíveis. E mais: uma espécie de bissexualidade profissional: no meio psicanalítico algumas pessoas vêem-me como editor. No meio editorial outras vêem-me como psicanalista. O que é mais ou menos assim: «Oh! Com que então o Senhor é persa! Mas que coisa extraordinária! Como se pode ser persa?»
Editei Lautréamont, Raymond Roussel, Artaud, Henri Michaux, Jean-Marie Gustave Le Clézio. E J-B. Pontalis que é um dos psicanalistas com quem mais me identifico e que foi, também, editor na Gallimard. Por associação livre lembrei-me então de evocar um pouco Louis Wolfson (que tristemente não editei).
Em 1963 Pontalis recebeu um manuscrito com o título: Le Schizo et les langues ou La Phonétique chez le psychotique e um subtítulo: Esquisses d’un étudiant de langues schizofrénique de autoria de Louis Wolfson, nova-iorquino, mas escrito em francês.
O livro acaba – depois de muitas peripécias – por ser publicado na colecção «Conaissance de l’inconscient» da Gallimard, dirigida por Pontalis. O prefácio é de Gilles Deleuze e intitula-se Schizologie . Deleuze foi o primeiro a interessar-se por Wolfson e, depois da pré-publicação de oitenta páginas na revista Temps Modernes, escreve na revista Critique (1968) um artigo «Le Schizophrène et le mot», consagrado a Artaud e a Lewis Carroll, mas fazendo referência a Wolfson.
Aquando da sua edição Alain Rey escreve, também na Critique: «não só o texto de Wolfson representa para o psicólogo o equivalente às célebres Memórias do Presidente Schreber mas constitui uma referência indispensável – e perigosa – para o trabalho respeitante à Palavra, sobre o mais privilegiado dos sinais».
A este propósito Le Clézio interroga-se como poderemos ler o livro de Wolfson de outra forma que não como documento médico?
E a sua resposta é admirável: «O que é inquietante não é o caso psicológico ou patológico. Nada mais tranquilizador que a doença mental ou a doença social: elas são curáveis. Mas aqui todas as leis do equilíbrio são rompidas. Nós sabemos imediatamente que não há nenhuma diferença qualitativa entre nós e o famoso jovem ‘ome’ esquizofrénico».
E acrescenta: «o que nos lança vertiginosamente no livro de Wolfson é que ele evoca um drama que nós conhecemos bem e que gostaríamos de esquecer: o drama da passagem, ou caminho, da linguagem».
Teremos então duas literaturas: a dos homens que sabem falar e a dos homens que não aprenderam a falar.
2.
E é aqui que, evocando Pontalis, queria dizer algo conexo com a Psicanálise. A fala de um psicanalista situa-se no «entre-dois», isto é, na fenda: «entre os que alimentam o seu pensamento» – e mais do que autores são antes do mais os seus pacientes – «e o que pode emanar do seu fundo próprio: entre a teoria e o fantasma, entre o saber e a ignorância.»
Na imagem do analista herdada de Freud parece combinar-se a de um descodificador, a de um detective e de a um arqueólogo. Isto é: o analista como o grande senhor do significante.
A psicanálise seria pois uma arqueologia conceptual explorando e precisando o estatuto do fantasma, da sua origem, e o que assegura a sua ligação electiva com a sexualidade e o complexo de Édipo.
É no campo da fala, como ensinou Lacan, que a experiência analítica se desenrola e, no interior desse campo, aquilo que vem à luz é uma outra linguagem, dissociada da linguagem comum e que se oferece para decifrar através desses efeitos de sentido.
A psicanálise é, assim, uma filosofia do desejo inconsciente.
Mas poderemos falar de uma outra perspectiva, aquela que se interessa pelo tempo em que fomos infantes e não falávamos ainda. Um paraíso perdido de pré-concepções. É um tempo sem tempo, um mundo outro, o do silêncio. E como se faz a passagem para a linguagem, passagem irreversível da qual nada sabemos e da qual jamais podemos regressar?
Uma psicanálise assim exige uma visão multifocal, uma capacidade de ser continente, paciência, e conter o saber e o não-saber, intuição, isto é, olhar para dentro, escutar não só as palavras e os sons mas também a música.
Le Clézio (ainda a propósito de Wolfson e da fenda que separa a palavra do silêncio) afirma «à nossa volta existe esse mundo mudo e nós reconhecemos a sua presença: o dos objectos, dos animais e dos infantes. Somos continuadamente tocados pelos seus sinais, intimados a responder-lhe.
Mas não compreendemos nada desses sinais uma vez que é pela palavra que têm significado e não por eles mesmos».
Uma psicanálise assim exige, pois, como a literatura, uma declaração de guerra às limitações da linguagem.
Assim o poema de Eugenio Montale, A Forma do Mundo:
«Se o mundo tem a estrutura da linguagem
e a linguagem a forma da mente
a mente com os seus cheios e os seus vazios
é nada ou quase e não nos tranquiliza.
Assim falou Papirio. Estava já escuro
e chovia. Vamos para um sítio seguro
disse e apressou o passo sem se aperceber
que falava a linguagem do delírio».
A psicanálise é uma arqueologia, sim, mas uma arqueologia feita no presente.
—
Referências Bibilográficas:
J-B. Pontalis. (2009). Dossier Wolfson ou L’Affaire Du Schizo et Les Langues. Paris: Gallimard.
J-B. Pontalis. (1999). Entre o Sonho e a Dor. Lisboa: Fenda.
Montesquieu. (1991). Cartas Persas. S. Paulo: Paulicéia.
Gilles Deleuze. (2000). Crítica e Clínica, Lisboa: Século XXI.
Sousa Dias. (1984). Questão de Estilo, Arte e Filosofia. Coimbra: Pé de Página.
Paul Ricoeur. (s/d). O Conflito das Interpretações. Porto: Rés.
Eugénio Montale. (2004). Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim.