Tim Etchells foi o artista na cidade, em Lisboa, no ano de 2014; para além de espectáculos e conferências, Etchells mostrou igualmente trabalho na área mais específica das artes visuais, nomeadamente em intervenções públicas – frases em néon e pintadas em várias paredes e muros da cidade. Com esta estratégia, Tim Etchells pareceu querer dirigir-se ao público português e lisboeta de uma forma mais directa, sem o intermédio do dispositivo da sala de espectáculos (embora, um pouco paradoxalmente, estas frases públicas aparecessem em língua inglesa) [1].
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É comum pensar os grafitis e murais como manifestações com particular potencial político devido ao contacto directo, não com um público mas com os cidadãos (fica para outra oportunidade fazer a crítica da diferença entre espectador e cidadão). Muitas vezes, esta leitura política do mural e do grafiti resulta de um equívoco muito comum – confundir a política com imagens de política. Por exemplo, o retrato de Salgueiro Maia pintado na fachada de uma faculdade como a de Ciências Sociais e Humans da Universidade Nova não fará dele uma obra política; será um pouco como a ubíqua t-shirt do Che Guevara. Aliás, como parece acontecer neste caso específico, muitas intervenções urbanas deste tipo estão para a arte (política) como a decoração de interiores está para a arquitectura; tal sucede com pinturas murais, grafitis, com os retratos esburacados de Vhils, que repete ad aeternum a sua técnica maneirista, ou com frases de denúncia, de incentivo à acção, de incitamento à libertação, inscritas amiúde pela cidade adentro.
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Por exemplo, como entender algo dirigido à comunidade – escrita aberta numa parede –, tal como «Liberta-te», ou «Desobedece»? São imperativos, uma espécie de ordem. Quando se increve na parede pública algo como «Desobedece», quer-se então que se lhe obedeça, que os transeuntes obedeçam a esta ordem, e a partir daí, sim, desobedeçam a todas as outras. Como se percebe, esta estratégia está mais próxima do ditador que do libertador, mais próxima da autocracia que da democracia, mais do um que do comum. É este paradoxo que enferma muitas das tentativas políticas da arte, e que as torna, num certo sentido, ingénuas. Na melhor das hipóteses, trata-se de um certo paternalismo – o artista sabe do que o povo precisa, o artista oferece-lhe o seu conselho e os seus ensinamentos, a sua sabedoria.
«É o explicador que precisa do incapaz e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar qualquer coisa a alguém é, sobretudo, demonstrar-lhe que não a consegue compreender por si próprio. Antes de ser o acto do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido entre espíritos sabedores e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e estúpidos. O papel próprio do explicador consiste neste duplo gesto inaugural. Por um lado, ele decreta o começo absoluto: é apenas agora que irá começar o acto de aprender, este véu de ignorância que ele próprio se encarrega de levar. Até ele, o pequeno homem andou a tactear às cegas, em tentativas de adivinhar. Agora, irá aprender», escreve Jacques Rancière em O Mestre Ignorante.
E o artista diz, «abram os olhos», «(...) eis a realidade escondida que não sabeis ver; deveis tomar consciência dela e agir de acordo com esse conhecimento. Mas não é evidente que o conhecimento de uma situação transporte consigo o desejo de a transformar», escreve Rancière; e continua, «[R]aramente os explorados necessitaram que lhes fossem explicadas as leis de exploração. Porque não é a falta de entendimento do estado das coisas que alimenta a submissão dos oprimidos (...).»
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Uma das frases que no ano passado Tim Etchells distribuiu pela cidade de Lisboa, a qual foi instalada muito significativamente na fachada da Faculdade de Belas Artes, era precisamente, «art that opens eyes».
Fazer abrir os olhos; fazer arte que faça abrir os olhos; ver finalmente a verdade escondida das coisas à luz cristalina da realidade – tomar o comprimido vermelho. Abrir os olhos é fazer nascer, abrir a vida como o faz a mulher grávida. Dar à luz é aquele último gesto que transforma a grávida em mãe, é a dádiva de luz que encandeia o filho à saída da vagina materna após nove meses em amniótica escuridão. Dar à luz, dá-la ao filho, abrir-lhe os olhos, é isto o nascimento.
Depois daquela escuridão extensa e primordial, a mãe ilumina-lhe um mundo todo – a primeira luz arde e encandeia, os olhos lacrimejam, os pulmões enchem-se, a boca grita; um novo corpo manifesta-se, o filho esperneia como um peixe na mesma aflição do ar livre. Fazer abrir os olhos é querer fazer sujeito. Os discursos que pretendem fazer abrir os olhos, pretendem fazer nascer sujeitos – sujeitos conscientes, que consigam ver a verdade escondida («art that spells truth» era outra das frases de Etchells) –, mas constituem-se, paradoxalmente, como estratégias de sujeição, estratégias de sujeição do espectador a um discurso fechado, paternalista, prescritivo, hierarquizado, um discurso do mestre que sabe para o ignorante que não vê.
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Quão ingénua – e perigosa – será uma obra que pretenda fazer nascer um (novo) sujeito, um novo homem?