«- Vou voltar ao Quénia em Dezembro, queres acompanhar-me por duas semanas?»
«- Claro!»
Foi assim o começo. Sem perguntar o quê, onde, como, nem porquê. O importante era partir para África, abandonar uma realidade europeia marcada pela desilusão política e pelo ressentimento, cervejas e cigarros, rastos dos aviões e chemtrails. A oportunidade de pôr à prova algumas hipóteses, viver diferenças, expandir a minha zona de conforto, e tirar imensas fotos. Foi a fotografia que me fez responder sim sem um segundo de hesitação, sem que uma só dúvida me ocorresse. Os preparativos da viagem giravam entre evitar o nascimento de expectativas e diluir as que já tinha. «Concentra-te no aqui e agora: ainda não estás no Quénia, e há imensas coisas que queres fazer antes.» Um resultado desafiador e, claro, imperfeito. Mas o que é a perfeição, e por que há-de ser importante? Manter a concentração fez realçar todos os pormenores, como orquídeas num lago tranquilo.
Uma breve paragem no Dubai para apanhar outro avião e contribuir para uma economia ilusória, e aterrámos no Quénia «moderno». Olho para o céu: nem uma nuvem, nem um rasto de avião. O sol escaldante torna inútil o que vestimos, o trânsito engarrafado conserva-nos na loucura habitual. Respiro fundo um misto de smog, poeira e ar fresco e tolero mais o gosto do que em Itália. Durante o voo conheci um jovem hindu-queniano que me explicou a vantagem de ter carro em Nairobi, mas continuo a achar duas rodas mais do que suficientes para mexer-me num sítio de chuva rara. Estamos na proximidade do equador, onde quase todos os dias do ano duram o mesmo e as estações não estão delimitadas com a nitidez de outrora na Europa. Não se produz energia solar, nem os edifícios estão equipados com painéis para o efeito. O grosso da electricidade vendida aos habitantes da capital provém de uma barragem enorme no lago mais próximo, assim como a água potável. Muito se podia melhorar.
Tivemos sorte por ter feito a viagem na estação das mangas. Ou assim nos parece! Nas duas semanas seguintes, visitaremos cristãos que Christina foi encontrando nos anos que já leva de voluntariado. Alguns dias numa das colinas de Nairobi, outros na vizinhança de um dos bairros de lata, uma semana junto da floresta equatorial e de uma parte mais verde do Quénia, e o regresso a Nairobi por mais uns dias antes da partida para Itália. Toda a gente que encontramos esforça-se por criar um contributo positivo, e fá-lo de maneiras diferentes. Estão a construir uma escola ao lado de um centro médico, o qual constitui a principal fonte de financiamento da obra. Criaram um sistema de fornecimento de água e saneamento básico que distribui água a três municípios. Mães, pais, filhos, almas solitárias, muita gente vai sendo bafejada, conduzida a uma existência cristã.
É notável que quanto mais me aproximava das florestas, mais distante me sentia da selva. Já não a selva que conservamos nas reservas da nossa imaginação, a extensão verde indomada onde temos de ter cuidado para não pisar alguma serpente enorme ou planta perigosa. O que agora devemos observar é a selva «moderna», feita de aço, e pneus, e cimento, e gás, e camiões, e semáforos, e telemóveis, e gente... Gente que diariamente transita do bairro de lata para o centro da cidade, para trabalhar ou arranjar trabalho. Gente à procura de espaço e de reconhecimento. Gente à procura de um objectivo, com ou sem sentido... Caminhando pela auto-estrada, um rio de almas famintas de liberdade.
Ainda tenho de descobrir o que para mim significa moderno, mas enquanto conceito prático não há dúvida sobre as suas contradições inerentes. Das mais evidentes às mais subtis, essas contradições implicam ou até evidenciam um modus operandi a que chamamos «compromisso». Digamo-lo sem rodeios: dizemos uma coisa, fazemos o contrário, e conseguimos um resultado intermédio que em qualquer caso só em parte é satisfatório — ou insatisfatório. Se é nosso objectivo o que dizemos ou fazemos, apenas entrevemos o sabor de cumpri-lo, sem o conseguir totalmente, salvo à custa de outro compromisso, agora connosco mesmos. Dizemos a nós próprios que qualquer coisa é melhor que nada, que é melhor estarem as duas partes um bocadinho contentes do que as duas descontentes. Dizemos a nós próprios que a vida é contraditória, e que por isso é inevitável vivê-la em compromisso. Mentimos. Olhamos para fora quando temos de olhar para dentro. E de novo é o contrário o que fazemos.
Será que a vida é realmente contraditória, ou seremos nós quem vive em contradição? Será a vida contraditória para uma planta, ou um animal? Será contraditória para um átomo? E para um planeta, ou uma estrela?
Para mim, a vida não é contraditória, de todo. Ela só se torna contraditória quando decidimos vivê-la como um compromisso permanente, quando nos submetemos a um jogo de soma zero ao qual, românticos, chamamos desenvolvimento — nos últimos tempos disfarçado de modernização, talvez, ou, por que não, assistência humanitária, mas apenas um jogo onde alguém tem de perder para que outro ganhe. É um jogo sem graça. Assim, vou pensando: será que quero participar neste jogo? E será que sou obrigado?! Pois... NÃO, a verdade é que não sou. Prefiro continuar a jogar com uma câmara — e fui comprar um ukelele.