(...)it seems that, in order to be authentic, a picture needs to be pixelated or partly pixelated. Pixelating – or blurring has taken over the role of authenticity. A pixelated picture must surely be authentic if it has unacceptable áreas which are concealed. Thomas Hirschhorn
A interrogação sobre a verdade e a falsidade das imagens é histórica como é também a questão do seu uso, poder e eficácia. Sobretudo quando estão em causa as representações visuais da guerra e da violência. O que mostrar? Que realidades são aceitáveis de mostrar e de denunciar como imagem? Será ético confrontar o espectador através de fotografias de situações intoleráveis? Será útil representar e tornar visíveis a dor e a morte, acontecimentos monstruosos e massacres?
Walter Benjamim, Bertolt Brecht, Susan Sontag, Georges Didi-Huberman e Jacques Rancière são alguns dos autores que em diferentes épocas reflectiram sobre a condição comunicativa da imagem, sobre a sua capacidade de representar a realidade e sobre a sua força para a criticar. Ou seja, sobre o seu poder operativo relativamente à percepção e às consciências. Interrogações como «Qual o poder e a capacidade política das imagens?» ou «Que podem elas?» estão associadas a questões éticas e políticas que foram igualmente equacionadas por gerações de artistas, da Antiguidade aos vanguardistas, com passagem turbulenta pelos dadaístas; por contemporâneos como Marta Rosler, Alfredo Jarr ou Omer Fast; e continuam a ser o centro de muitas reflexões, como as que se inscrevem na edição Que peut une image?, de 2014, dos Carnets du Bal. Refiro-me sobretudo a esta colectânea, porque nela se insere um texto de Thomas Hirschhorn – «Pourquoi est-il important, aujourd’hui, de montrer et regarder des images de corps humains détruits?» –, em que através de oito pontos o artista explica as razões que o levaram a inserir imagens de corpos dilacerados em alguns dos seus trabalhos, nomeadamente Superficial Engagement (2006), Concretion (2006), The Incommensurable Banner (2007), Ur-Collage (2008), Das Auge (2008), Crystal of Resistance (2011), Touching Reality (2012), Collage-Truth (2012) e o mais recente conjunto de colagens, Pixel-Collage, apresentado na galeria Chantal Crousel, em Paris, que se faz acompanhar do mesmo texto.
É precisamente nesta última exposição individual que Thomas Hirschhorn questiona, com uma nova série de colagens, um aspecto destas problemáticas, o que chama estética do «sem rosto»: especialmente o uso cada vez mais comum que os media fazem de píxeis, cobrindo e censurando partes da imagem de modo a ocultar a mutilação dos corpos em cenários de guerra.
São em geral fotos realizadas por anónimos, com cenas de extrema violência depositadas na internet por testemunhas, activistas, socorristas, agentes de segurança e da polícia, e pelos próprios combatentes. Hirschhorn apropria-se delas para as ampliar até uma escala próxima dos cartazes de publicidade, procedendo a um trabalho de colagem de zonas abstractas, correspondentes ao efeito de pixelização sobre partes da informação fotográfica original. Em muitas delas, o horror é deixado a descoberto, sendo apenas pixelizadas partes da colagem de fotografias de moda. O uso crescente desse filtro interessa-lhe porque a pixelização e a desfocagem assumem-se hoje como uma garantia de autenticidade. Como se, para serem autênticas, certas imagens precisassem ser parcialmente pixelizadas.
Neste trabalho, para além da pixelização e da criação de zonas abstractas na imagem, Hirschhorn satiriza a ideia de protecção implícita a essa prática, destacando em cada uma das suas colagens artesanais a cobertura de uma folha de plástico transparente. Contudo, nem a proveniência das imagens é clara ou segura, nem a preocupação que leva à sua pixelização nos media, a pretexto de proteger-nos, poupar susceptibilidades ou aproveitar o voyeurismo, é verdadeira. Segundo Hirschhorn, a rarefacção de imagens de corpos destroçados, a sua invisibilidade e manipulação nos jornais e na televisão, é uma tendência iniciada após o 11 de Setembro por motivos propagandísticos, visando não desmoralizar o esforço de guerra.
Não desculpando os argumentos da hipersensibilidade, o artista afirma que por essa mesma razão, ver essas imagens de corpos mortos é importante, pois significa um compromisso de afirmação contra a guerra. Exemplo da não visibilidade da guerra e do terror, representados apenas por momentos icónicos e abstractos, é a fotografia que o artista mostra numa das vitrines da exposição: a Sala de Situações de Emergência da Casa Branca, com o presidente Barack Obama e integrantes do seu gabinete reunidos a assistir ao desenrolar da operação de assassinato de Osama Bin Laden, conduzida por um grupo de operações especiais da Marinha dos Estados Unidos em 2011. Por ela nada vemos do drama que então decorria no Paquistão.
No momento em que se assinala em Paris a passagem de um ano após os ataques ao Charlie Hebdo e ao Hypercacher, Hirschhorn não se privou de colocar na mesma vitrine, a par da imagem norte-americana, a fotografia manipulada de Charb segurando a edição do Charlie Hebdo, com o cartoon de Maomé, Intouchables, ironicamente «pixelizado». É uma proclamação de lucidez: a comunicação contemporânea, acossada pela autocensura e pela hipersensibilidade de um público cada vez mais atomizado em facções incompatíveis, já não consegue ler a actualidade em completa liberdade. Que seja um processo específico da fotografia e do vídeo a recordá-lo aos cartoonistas, transmitindo-se com humor para outro medium, faz todo o sentido: no que respeita à representação do real não é só a fotografia que passa por uma grave crise ontológica. Intouchables são, cada vez mais, as próprias sociedades, na sua percepção do nosso tempo.