O homem que esteve quase perdido nas notas de rodapé
mas foi resgatado a tempo de ser incluído na bibliografia.
Para uma Edição Revista e Aumentada
O que carrega um nómada? Deparo-me com esta pergunta enquanto simultaneamente constato que tenho, por aqui, uma quantidade de notas, observações, textos, citações, epígrafes, imagens — conteúdos avulsos, de improvável ou impossível relação, com naturezas díspares, dissonantes. Mas para quê tudo isto? Se fossem objectos fariam com que esta sala, onde agora escrevo, não fosse suficiente. Se fossem pessoas, acercaríamos, mais uma vez, o final trágico da Torre de Babel. É diante deste monte informe que decido escrever este texto antes de começar a série de publicações enquanto autora residente da revista Wrong Wrong — como estratégia de manutenção da rectidão do processo. Ignoro/duvido (precisamente agora) que este venha a ter as melhores consequências.
A expressão «Edição Revista e Aumentada» define o programa desta residência. Edição Revista e Aumentada (ERA) parte da apropriação do jargão da edição tradicional e coloca-se como hipótese à compreensão das práticas editoriais contemporâneas que entendem a publicação, em todas as suas fases, como um espaço de escrita, como processo que nunca se demite da criatividade e da crítica. Transcrevo as unidades tópicas que constroem a sua declaração de intenções.
a) ERA expande, não porque aumenta, mas acima de tudo porque abre um espaço «entre».
b) Não segue os caminhos da especialização. Amadora, recolhe a ciência dos outros, para formar a sua não-ciência.
É uma variante não-científica da topologia, ciência que trata das superfícies elásticas, dos objectos pelas relações que têm entre si, independentemente das suas dimensões; também conhecida pela ciência que «colhe para além do lugar». Para a topologia, geometria sem escala, um cubo é igual a uma esfera e ambos são diferentes de uma chávena. Para a edição-topológica um texto é igual a uma imagem, mas ambos são diferentes de um cachecol (agasalham, mas não da mesma forma).
Podemos dizer que adopta (outra) geometria da edição: prefere os discursos paralelos ou equidistantes; contudo, admite a edição como prova dos teoremas não-euclidianos que nos dizem que duas rectas paralelas se encontram sempre no infinito.
Adere à topografia, a arte de representar no papel a configuração de um terreno com todos os acidentes que este tem à superfície. O seu «texto», fragmentado em unidades tópicas é permeável aos incidentes que o espaço da página, enquanto unidade topográfica, lhe sugere.
De tempos em tempos prefere a arqueologia: da hard-drive, da biblioteca, das memórias, do que se vai ouvindo quando o outro fala, para onde se vai quando o outro fala, de palavras-chave em Excel e dos infindáveis copy-paste, dos livros que chegam pelo correio, de olhares oblíquos, vagabundos pela geografia da cidade e da página.
Do que se recorda dos estudos da flora, resgata a enxertia; da composição sonora, o sampling, a remistura. Do cinema, adopta a «montagem de atracções» ou a «montagem como conflito» de Eisenstein e acredita no «Efeito Kulechov» quando levado às últimas consequências (tem uma preferência por «ficar a leste», portanto). Na sua duvidosa cientificidade segue a «hypotheses non fingo» de Newton, a suposição científica como um «fazer ficção».
c) Recupera o instinto — de comportamento domesticado a reacção selvagem.
d) Tem por musa o intervalo ou qualquer outro momento de suspensão da significação. Preza a lacuna, aquilo que está marcado em vazio. Está entre o dito e não dito. Descontextualiza para localizar e situa-se perante o engano ou engodo do fragmento.
e) ERA é determinada mas não determinista. Tem por missão transportar a edição para uma «terra de ninguém». O trilho de página a página descobre a potência da anti-sequência, gerida pela improvisação, justaposição, indução. Estimula a guerrilha entre pensamento contínuo e pensamento aforístico. Proclama a associação livre de ideias que permite que a narrativa editorial «dispare» para momentos inesperados. «Uma ‘tendência para uma forma’ deu lugar a outra».
f) Procura, em simultâneo, pontos de ancoragem e de naufrágio entre conteúdos e promove a edição como tensão de opostos: concordância/dissonância, fidelidade/infidelidade, memória/esquecimento, estranheza/familiaridade, teoria/prática, documento/ficção.
g) Não é eficiente nem é funcional. Prefere a procrastinação: o processo editorial aprendeu a lidar com a culpa de uma procura infindável, que não sabe para onde se dirige e que apenas parece evitar que se comece finalmente a editar, a definir a grelha, a tipografia, a paginação, a revisão (e todas as acções que antecedem ou seguem estas). É um elogio ao desnecessário.
h) Faz do mote de Paul Valéry a sua metodologia: «Atento aos acasos entre os quais haverá de escolher o seu alimento». Não gosta dos trilhos únicos e rapidamente junta a esta, uma outra máxima: «O poético significa a colecta» (Heiner Müller).
i) É advogada do diabo na contenda territorial entre os espaços autónomos da escrita, da edição e da leitura. Prefere as ambiguidades destes gestos, às exaltações da autoria, à autoridade do editor ou à soberania do leitor. No fundo, esta edição escreve-se como quem lê. A edição «lê» um «texto» posicionando-o e avaliando-o sobre uma rede de outros «textos». Como construção polimórfica e polifónica de escrita e de leitura, este «texto» é a origem de outras possíveis estruturas que apenas se concretizam mediante o caminho do leitor.
j) ERA leu que a arte da edição passa por constituir e manter uma ordem; deduz: pode construir-se uma ordem que desoriente as convenções da edição.
k) Assina por baixo a petição da edição como género artístico ou como «género intranquilo». Reconhece-se como o resto do empreendimento da ciência da edição.
l) Alimenta as dúvidas existenciais entre forma da edição ou edição como forma. A paginação é o seu agent provocateur para uma retórica editorial que se expande naturalmente às estruturas formais da publicação. Coloca a hipótese de uma escrita que age com e não sobre a página; de uma leitura que lê a página e não através desta, que parte obviamente do que se lê, mas também do modo como se lê; que atenta ao «segundo texto» que a página impõe.
m) Situa-se ou na monumentalidade do Plano Geral ou na introspeção do Plano de Pormenor. O meio termo não lhe serve como modo de organização do mundo e não o encontrará nas suas páginas. Do mesmo modo, cola found-footage com material original (entre leituras pessoais, apropriações lentas e escrita dos outros). Perante a voracidade do novo, encontra na apropriação a possibilidade do eterno retorno, método eficaz que contraria a proliferação de novas publicações — como reação a tudo o que já foi publicado, como recuperação dos discursos de vanguarda, como revivalismo operativo, como forma de manipulação das ordens naturais e culturais.
n) Estimula os braços de ferro. Admira as notas de rodapé que afrontam o texto principal ou as imagens que exigem a releitura do texto, que corrompem a sua primazia.
o) Faz uso da natural migração das ideias. Reconhece a mistura improvável como a mistura explosiva. Entende a publicação como um conglomerado que situa a produção artística, não pelo desenho da sua biografia ou zona de influência(s), mas por uma fictícia genealogia das ideias. Entende a edição como espaço de afecto ou de encontro, de diálogos geograficamente ou historicamente impossíveis, de autores que não se conhecem, que se contestam, que não falam a mesma língua.
Em suma, Edição Revista e Aumentada agarra em tudo o que lhe permita deslocar os conteúdos da sua origem. Encontra para estes, novos territórios, aliciando-os a um estado nómada, dotando-os de novos argumentos para a sua disseminação e da possibilidade de prescindirmos de um «sentido único» para o texto ou para a obra.
NOTA
O presente texto é uma edição revista e aumentada de um ensaio anteriormente publicado no livro Laboratório de Curadoria (2013). Publicadas pela primeira vez, as imagens contribuem em grande medida para a noção de «aumentado» e antecipam o modus operandi das publicações seguintes, sob o mote «Elogio à hard drive: edição com objetos vagamente esquecidos». Todas as imagens utilizadas são objetos esquecidos da hard drive de Sofia Gonçalves:
fig. 1) Fotografia de Aby Warburg e um índio Pueblo (1895);
fig. 2) Fotogramas dos filmes The Fountainhead (King Vidor, 1949) e Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni, 1970);
fig. 3) Imagem em Cahier du Cinema 300 (1979);
fig. 4) «The Structure of Boredom» em The Structure of Awareness (Thomas C. Oden, 1969).