Depois de séculos em que foram acompanhados pelo silêncio, as décadas mais recentes da vida de um grande número de peças pré-colombianas estão cheias de palavras – palavras que se referem a um campo semântico, mas que também abrem as portas para uma miríade de perspectivas divergentes e, às vezes, opostas. Por exemplo, o que as peças eram para aqueles que as fizeram (sobre quem sabemos algumas coisas, mas não o suficiente para falar com certeza) é um exercício de especulação. Científico, mas a ciência também é, em parte, especulativa. O que aconteceu com eles depois do desaparecimento daqueles que os fizeram, para propósitos que só podemos imaginar, é também objecto de especulação: enterrado, transferido, deslocado, destruído, encontrado, desenterrado, vendido, comprado, resgatado, desapropriado, recomposto, estudado, venerado, exibido, celebrado, observado…
Horamen de Adrián Balseca, o terceiro projecto em Zarigüeya/Alabado Contemporâneo, conta parte desta história: a parte que se refere a essas mudanças de valor nos últimos tempos, o momento em que algo não é mais apreciado como material e é valorizado como materialização, isto é, por causa de sua forma específica. Uma mudança que pode ser entendida como um afastamento de um interesse focado na «substância» para outro concentrado em «acidentes». Sem implicar aqui que os acidentes são menos essenciais que a substância, antes assumindo que a matéria e os acidentes estão sempre presentes, mas que alguns deles, numa materialização específica, são privilegiados em função da perspectiva do momento e do lugar.
Horamen toma como seu elemento central uma ferramenta de transformação: cadinhos, recipientes feitos de argila e grafite e, portanto, resistentes a altas temperaturas e à acção química do metal quente, presentes em culturas ancestrais no território equatoriano há milhares de anos. Cadinhos nos quais uma substância muda de forma (ganhando e perdendo acidentes), de modo a circular em novos contextos. Cadinhos que Balseca usa como partes dentro de uma nova articulação, transformando-as em constelações conectadas por peças de metal que denotam uma dupla cartografia. O metal como matéria em transformação, sem agência aparente, e ao mesmo tempo como um assunto que articula, dá sentido, conduz.
Cartografia dupla, primeiro geográfica: do território da cultura La Tolita ou Tumaco, na costa que vai de Esmeralda no Equador a Tumaco na Colômbia, entre 600 a.C. e 400 d.C., uma cultura reconhecida pela excelência de seu trabalho em cerâmica e ourivesaria. La Tolita recebeu este nome por causa dos tolas, montes em que aqueles que faziam parte dessa cultura viveram e que usaram como espaços abertos para práticas religiosas, e como locais de sepultamento. Nas palavras de Frei Juan de Santa Gertrudis, no século XVIII: «Eles chamam a essa aldeia La Tola, porque está cheia de tolas, ou montes de terra, e foi isso que eu vi, como direi. Esses tolas são locais de sepultamento para os antigos índios e, como foram enterrados com tudo o que tinham, em alguns deles muitas riquezas foram encontradas»[1].
Uma cartografia que também é política e económica: a do extractivismo, que começou quase três séculos antes da escrita de Frei Juan de Santa Gertrudis com a chegada da coroa espanhola, e que continua até hoje em formas às vezes diferentes, e que às vezes parecem não ter mudado. A compreensão do que a terra oferece (e, por extensão, daqueles que a habitam) como recurso que está disponível para a exploração, por aqueles que asseguram para si mesmos uma situação de poder. A Terra é transformada no que pode ser obtido a partir dela – agricultura, matérias-primas ou materiais preciosos, abundantes ou escassos – da mesma forma que os corpos se tornam ferramentas de produção. Prata em Potosí, borracha no Acre, ouro, entre outros lugares, em La Tolita, todos engolidos por um buraco negro (um sol ao contrário) no qual até a paisagem desaparece.
O ouro é o metal mais maleável e dúctil, o que permite a produção de chapas extremamente finas. É também o mais pesado, com uma densidade entre 15,6 e 18,3 gramas por centímetro cúbico. É macio, derrete a 1.063 graus centígrados, é também um excelente condutor de calor e de electricidade e, o que talvez seja o mais importante, é incorruptível: não reage aos ácidos ou ao oxigénio e não enferruja nem perde o brilho.
Tais características são «acidentes» privilegiados pela lógica dos recursos. Uma lógica na qual a mineração é compatível com o método mais primitivo (ou mais imperfeitamente produtivo) dos garimpeiros. Mas também, e talvez surpreendentemente, do ponto de vista do actual sistema de valores, com os huáqueros: houve um tempo em que as peças feitas com metais preciosos que eram encontrados em escavações «informais» valeram mais como substância (como material) do que como peças com acidentes que permitiam usos rituais, políticos, simbólicos, comunicacionais e de conexão. Desta forma, o cadinho, através do qual passaram num processo inicial de transformação, infligiu uma nova transformação na qual perderam a sua materialização específica para se tornarem, simplesmente, ouro, prata, platina – circulando novamente para sustentar e reforçar a lógica da exploração colonial. Já não um objecto específico, singular, imerso na lógica cultural local, mas uma materialização abstracta, instrumento que garantiu a circulação do capital a uma escala global.
Mas o processo de transformação não acaba aqui. A prata de Potosí não só possibilitou o financiamento da ocupação colonial pela coroa espanhola, como também as suas guerras territoriais na Europa. Permitiu também, como objecto simbólico, uma colonização espiritual: a imposição de uma religião, uma cultura, um sistema de valores estrangeiros, muitas vezes incompatíveis com os preexistentes. A imagem da veneração católica, materializada em metais «preciosos», colonizou os espíritos ao mesmo tempo que os aparatos administrativos e militares, financiados pelos mesmos metais, colonizavam os corpos.
Quando o Sol Dourado de La Tolita se tornou o logótipo do Banco Central do Equador em 1976, passou por um processo similar, no qual o seu carácter como imagem e símbolo – não apenas como ouro, como ferramenta de troca, mas também como parte de um cultura – é privilegiada. O metal precioso, a riqueza que ele denota, é agora acompanhado por outra riqueza: um legado cultural e político que vai além da história colonial e é a base de um processo de construção da nação. E assim o Sol Dourado é impresso nos Sucres, até que estes sejam substituídos pelo dólar.
Mas o retorno de um objecto ancestral, mesmo que seja ao seu lugar de origem, é cheio de dificuldades, de riscos. O retorno do Sol Dourado, uma folha de ouro de 284,4 gramas e 21 quilates, é um caminho cheio de conflitos. Conflito comercial, adquirido pelo Banco pelo comerciante e coleccionador suíço Max Konanz em 1960, que ele próprio comprou em 1940. Conflito científico (especulativo), reclamado como um trabalho da cultura Cañari com base nas informações fornecidas pelos vendedores originais , informações que são contestadas pelas análises laboratoriais que a identificam como Tolita – a versão oficial do Banco Central.
Não mais em perigo de perder a materialidade adquirida há aproximadamente 2.000 anos, o Sol Dourado é um símbolo nacional, objecto de veneração, exposto num vitrina para poder ser visto. Arte, legado, património, com um valor que já não é quantificável, que agora já é não afectado pelos processos de troca. E também um símbolo das peças pré-colombianas como um todo: protegidas por leis patrimoniais, à vista em museus ou em colecções particulares, exibindo um esplendor que às vezes é só formal e respondendo a novos usos, sem perspectivas de futuras circulações e acompanhado de palavras que propõem histórias, mas que esquecem sempre, necessariamente, outras narrativas possíveis.
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«VALUES», cortesia da Casa del Alabado Museum of Pre-Columbian Art & Zarigüeya/Alabado Contemporáneo. www.zarigueyaenelalabado.org
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Tradução do inglês por N. Miguel Proença e Katherine Sirois