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Carlos Nogueira: A imagem da escultura e a matéria da imagem
«A Natureza é um templo onde vivos pilares
Pronunciam por vezes palavras ambíguas;
O homem passa por ela entre bosques de símbolos
Que o vão observando em íntimos olhares.
Em prolongados ecos, confusos, ao longe,
Numa só tenebrosa e profunda unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Correspondem-se as cores, os aromas e os sons.»[1]
fotografias de trabalho. e outros desenhos é a primeira exposição fotográfica de Carlos Nogueira. Depois de várias presenças pontuais noutras exposições, esta é a primeira vez que a fotografia se apresenta como elemento central da exposição. Mas nem tal centralidade faz desta uma simples exposição de fotografia nem muitas das imagens mostradas são desconhecidas; o que a fotografia revela nesta exposição é uma nova paisagem de correspondências entre processo e produto, entre objecto e imagem, entre produção e reprodução, na obra de Carlos Nogueira.
Estas correspondências são por vezes literalmente correspondência, correio, comunicação, como as paisagem(s) de (man)dar (1980) [2], produzidas através de colagens de cartões-postais. Estas paisagem(s) de (man)dar revelam a amplitude de um campo de trabalho que recusa tanto a linearidade das relações entre processo e produto como a redução da obra à sua imagem final. Na fotografia de Nogueira nem os objectos são transparentes nem as imagens resultados. As obras têm uma infinidade de imagens que se estendem na natureza e as imagens conduzem ao encontro de outros objectos. Produzidas a partir de imagens encontradas, estas paisagem(s) de (man)dar são uma chave de leitura para as produtivas inter-relações que o trabalho do escultor estabelece com a fotografia. Como é que postais de água, terra e ar, adquiridos diversos exemplares e montados segundo uma sequência repetitiva, desmontam a percepção da fotografia enquanto captura mecânica, tecnicamente reprodutível? Carlos Nogueira parte de uma imagem múltipla, produzida em série, com um formato pré-estabelecido, sujeita-a a um processo de montagem linear e repetitivo, e produz cartões-postais outros, agora ainda a mesma paisagem e já também obra e olhar de autor. A paisagem é apresentada enquanto objecto transformado. E é ao incorporar um mecanismo de reprodução e repetição que, ao contrário do que seria expectável, estas imagens se tornam únicas. Ou seja, é transformado em original um objecto tecnicamente reproduzido, ainda que a sua recombinada imagem em nada modifique o formato do postal: objecto vulgar e industrializado, enviado a qualquer pessoa, mas cuja existência específica se verifica a partir do momento em que comunica individual e singularmente; é ao ter um para quem que o postal comunica individualmente. O gesto conceptual de Carlos Nogueira recombina imagens, objectos e conceitos, aparentemente transparentes e consensuais, incorporando-os no processo e percurso singularizado do seu trabalho. Não é a imagem em si que se dá, mas a apropriação e a recombinação que esse acto comunica, que se celebra com um destinatário, de forma singularizada. Enviada, integrada em exposições ou metamorfoseada noutros objectos, a obra de Carlos Nogueira existe enquanto exercício de deslocação. Evoca a irreprodutibilidade do gesto, ao mesmo tempo que estabelece uma rede de afinidades. A imagem-paisagem é transformada em objecto comunicante.
O acervo fotográfico de Carlos Nogueira contém registos avulsos de objectos recombinados e pluritemporais, que o autor encontra casualmente, e documentos fotográficos que remetem para as suas obras, apesar de não as substituírem enquanto imagem final. Imagens de paisagens anonimamente humanizadas e de objectos/ruínas que lhes sobrevivem, a par de imagens que remetem directamente para uma autoria singular, num local e data precisos. As reproduções fotográficas de obras de arte não deixam dúvidas quanto à sua identificação e existência – a sua primeira função é documentar a obra de Carlos Nogueira –, mas é o paradoxal trabalho destas imagens que permite pensar a dobra libertadora do título fotografias de trabalho. A fotografia é captada em trânsito e o seu valor é igualmente transitivo. Carlos Nogueira não desloca os objectos que encontramos nas suas fotografias para o espaço expositivos (não trabalha com ready-mades) nem transforma as reproduções fotográficas das suas obras em campo pictórico (contemplativo). As fotografias são apresentadas como parte integrante do processo de trabalho, sem começo nem fim na obra de arte. Uma fotografia não substitui o objecto a que se refere, nem se limita a ser o seu referente directo.
Em 1859 Charles Baudelaire criticava o entendimento da fotografia enquanto arte, porque a sua noção de realismo não correspondia à imagem de um espelho físico, mas sim a um reflexo mental pertencente ao campo do imaginário[3]. Carlos Nogueira procura também esta estranha correspondência, para usar o termo quase cinestésico de Baudelaire, entre objecto e experiência, sem a reduzir a uma imagem fotográfica entendida como espelho automático do mundo físico. As fotografias de Carlos Nogueira transportam a imaginação e questionam o visível.
As fotografias de trabalho. e outros desenhos são simultaneamente registo documental e campo sensorial, funcionando enquanto chave de leitura de objectos que não referenciam literalmente, mas também enquanto mecanismo acumulador de experiências e de significados. Umas fotografias apresentam um recolector atento à transformação da paisagem, outras um agente transformador. Umas não se revelam sem as outras. Esse falso reflexo entre objecto e imagem encontra-se representado no título da exposição, pela impossibilidade de fixar o seu próprio campo. É um jogo de espelhos que se manifesta na complexa articulação entre as novas provas fotográficas e a forma como a exposição se apresenta: uma construção tridimensional, desenhada por Carlos Nogueira, que primeiro surge como um objecto escultórico, para depois se revelar suporte da fotografia. O dispositivo total produz um objecto-veículo, conferindo um corpo a imagens que teimam em não se apresentar como «trabalho em si».
O título associa ainda a fotografia à importância que o desenho manifesta na obra de Carlos Nogueira. Entre projecto e representação, o sentido do seu desenho é igualmente impossível de revelar por completo. Imagem, objecto e ideia expressam-se de sobrepostas maneiras e dificilmente são apresentados de forma estável e reconhecível. Os desígnios da complexa matéria destas obras são revelados por títulos como «desenhos», com que Carlos Nogueira refere uma série de pequenos objectos tridimensionais recuperados da disfunção a que foram abandonados (antigos cortantes que já transformavam a superfície bidimensional do cartão em volume, recorte em recipiente). Também as fotografias evidenciam esse aparente desajuste funcional através do qual o quotidiano se torna indiferenciado, com o claro intuito de resgatar da invisibilidade a pluritemporalidade que o mundo contemporâneo lhe permite conferir. Carlos Nogueira procura, desloca, recupera, transfere, transforma a condição material dos objectos, num processo que implica espaço, tempo e memória, para depois devolver a experiência neles encontrada. Os seus objectos representam uma materialização poética. Para além da refinada materialidade dos seus elementos e do rigor técnico da execução, as suas obras conduzem sobretudo a encontros improváveis entre a imaginação e a imagem. Apesar de a fotografia ser o único meio aparentemente capaz de reproduzir a percepção visual de um objecto, as fotografias de trabalho procuram, paradoxalmente, verificar as perturbações que a imagem fotográfica introduz nas relações entre objecto, imagem e ideia. Ao contrário do conceptualismo de autores como Joseph Kosuth, que procurou evidenciar a experiência enquanto consenso cognitivo, visual e material, Carlos Nogueira trabalha com a improbabilidade, a estranheza e a singularidade que efectivamente resultam da historiografia dos objectos, da sua recombinação espácio-temporal e da sua interpretação: é a inflexão possível entre ideia-forma ou entre o projecto-objecto, que diferenciam o seu trabalho.
A exposição fotografias de trabalho. e outros desenhos torna mais evidente o sistema de significações produzido pelo conflito entre a racionalidade a que estão condenados os objectos e a irracionalidade das necessidades que os justificam[4]. Esta dupla determinação é visível quando Carlos Nogueira fixa a sombra que percorre os objectos em desenhos que atravessam as suas esculturas ou quando vira do avesso os muros que transporta para dentro da galeria. A condição poética do trabalho de Carlos Nogueira emerge nestes momentos; nestas pontes que solidificam os trânsitos entre a fotografia e a escultura mais do que as reflectem uma na outra como se de um espelho se tratasse.
fotografias de trabalho. e outros desenhos confunde as imagens dos objectos que Carlos Nogueira capta em viagem com as fotografias das obras com que constrói o seu percurso. As primeiras sem uma identidade definida, as segundas perfeitamente identificáveis. De um lado a degeneração dos objectos que se emanciparam da sua função primordial, do outro o rigor de construções libertas da condição de serem objectos funcionais. A relação evidente entre ambos é o processo de trabalho. Neste contexto, importa retomar os desenhos preparatórios das paisagem(s) de man(dar)... folhas que não são brancas mas apresentam a indefinição de qualquer espaço que se torna disponível, onde surgem regras proporcionais e traçados geométricas que convocam um processo de trabalho. Também é possível confundir os desenhos preparatórios das paisagens de mandar com linhas de assentamento das esculturas que Carlos Nogueira documenta fotograficamente. Estes desenhos preparatórios condicionam o resultado final dos trabalhos, mas não o antecipam. Pelo contrário, a relação do desenho preparatório com o seu resultado final ou a sua interpretação, é sempre surpreendente e inesperada. Este contraste, que resulta de uma leitura recíproca, ou de um trânsito contínuo entre o antes e o depois, aparece nos postais em que o recorte irregular de um relvado é interrompido pelo corte horizontal da linha de céu. A linha que tanto define a rigidez do vinco geométrico como revela a irregularidade do recorte orgânico, é constantemente retratada nas fotografias e existe fisicamente nas obras de Carlos Nogueira. Essa mesma linha pode ver-se no perfil das placas de mosaico hidráulico de construção com chão branco a partir de dentro (1998), depois de recortado a golpes de cinzel. Numa das fotografias Carlos Nogueira apreende o gesto que interrompe a tensão horizontal de uma linha, introduzindo-lhe um desvio. É uma linha que se transforma em corpo, a partir do momento em que se transforma em zona de contacto. A fotografia tem a capacidade de representar, como nenhum outro meio, a tensão entre o rigor reprodutivo da sua condição mecânica e a revelação de algo que não voltará a deixar-se fixar.
A deliberada transformação dos objectos apropriados desvincula-os da sua condição conceptualmente designada por objectiva. As fotografias que Carlos Nogueira tem vindo a registar desde os anos setenta reflectem uma afinidade pela apropriação, pela transformação e pela recombinação dos objectos e dos seus significados. Embora comuns, os objectos captados fotograficamente por Carlos Nogueira perderam a sua inquestionável definição, sendo o mecanismo de estranhamento a que foram sujeitos o que tornou tão apetecível a sua reapropriação. É esta disponibilidade dos objectos para serem recombinados que aproxima os documentos fotográficos de Carlos Nogueira do seu trabalho de autor. O mesmo processo de estranhamento acontece em performances como gosto muito de ti (1980), uma acção de rua em que o artista compõe 100 ramos de flores para deliberadamente os perder no caminho entre Oeiras e Lisboa; libertando-os para um sem-número de encontros imaginários e improváveis, que não se podem reduzir a um objecto (ramo) ou a uma imagem (desenho do projecto). As fotografias de Carlos Nogueira não demonstram um estatuto definido ou definitivo, sugerindo antes histórias para além do que podem ou deixam ver.
Recentemente, em palavras. e outras construções com tempo (Galeria Diferença, 2017), Carlos Nogueira expôs num dos compartimentos da estante metálica que compunha a obra, entre outros objectos, uma série de caixas de papel fotográfico empilhadas umas sobre as outras. Inscrições nas respectivas lombadas enumeravam os seus conteúdos: projectos, páginas, desenhos, postais, fotocópias, cartas, catálogos, guardanapos, traduções, documentos, fotografias, etc...., organizados por temas que sugeriam múltiplas memórias e imagens incorporadas numa só obra. Esta construção dá corpo a uma multiplicidade de memórias, evocadas pela acumulação dos títulos de alguns dos seus trabalhos. fotografias de trabalho. e outros desenhos inverte este processo de sugestão, permitindo talvez percorrer visualmente as ampliações fotográficas apenas convocadas na outra obra. Apesar do formato uniforme e da estrutura pensada especificamente para o presente contexto as fotografias não se singularizam; continuam a existir enquanto processo plural e cumulativo. Nem as imagens fotográficas têm uma só valência, nem existe uma diferenciação de valor entre elas. As imagens desta exposição acumulam-se como num painel, em que podiam ser reproduções de pinturas, ou recortes de jornal, ou desenhos, ou postais ou escritos, tornadas linguagem comum e reflexo da experiência de quem as agrega. Utilizadas com esta amplitude, como capazes de sobreporem diferentes meios e aglomerarem experiências díspares, as fotografias questionam expectativas em relação à arte e ao espaço do museu, ou são no seu conjunto um mapa de alguns territórios possíveis.
A vontade transversal de desdobrar a função dos objectos nas várias possibilidades de encontro com eles aparece numa das primeiras performances de Carlos Nogueira: o pombal. 99 pombas de brincar para outros tantos usadores (1978). Já aí, objectos feitos em série incorporavam o que os «usadores» fizessem deles. Também em os dias cinzentos/lápis de pintar dias cinzentos (1979), numa das primeiras exposições em que apresenta fotografias – dois slides de céus que se fundem numa só projecção – reflecte uma infinidade de possibilidades, semelhantes mas sempre diferentes. A manipulação das possibilidades de encontro entre as coisas e com as coisas, ou do seu processo de construção ou acumulação, são factores determinantes mesmo nos objectos que Carlos Nogueira desloca para a galeria de arte. Esta performatividade é reforçada pela reversibilidade dos materiais que utiliza para construir as obras, que as torna mais acontecimentos que permanências, e abertos a recombinações e mudanças.
Logo a seguir a ter realizado as paisagem(s) de (man)dar, Carlos Nogueira intervencionou-as. Cobriu a textura visual de dois pares de postais com pastel de óleo – branco e preto – transformando-as em superfícies plenas de matéria. Juntos dois a dois, e marcados pela horizontalidade das linhas de colagem de um dos postais e a verticalidade das linhas de colagem do outro. Funcionam como um falso reflexo, uma fusão de opostos. Se de alguma forma os postais nunca deixaram de ser imagens do mar, da terra ou do ar, por mais abstractos que as montagens tenham procurado tornar os seus referentes visuais, foi ao dar corpo à textura já visualmente sugerida que estes objectos deixaram de ter um referente visual e se materializaram. A deslocação que permite perceber a acumulação de intervenções tornou invisíveis as paisagens dos postais. Descritas pelo autor como a noite e branco, as paisagem(s) de (man)dar intervencionadas deslocam a experiência da paisagem para a experiência da luz e do tempo, deslocando o referente do longínquo da contemplação para uma proximidade quase epidérmica.
Algumas das imagens expostas são ampliações das pontas queimadas pela luz dos rolos fotográficos. Estas imagens impossíveis tanto devolvem uma qualidade visual à matéria como são evidências materiais do apagamento do espaço visual, ou dos limites da experiencia fotográfica. Esta sobreposição difícil de estabilizar revela-se na acumulação de reflexos nas placas de vidro assentes em cantoneiras de ferro de beyond the very edge of the earth (1998). Tal como acontece nos postais-paisagem, a geometria e sobreposição dos vidros inclinados contra a parede recorta as imagens de um entorno. Mas estas montagens de paisagens fazem desaparecer a paradoxal materialidade transparente do vidro, mostrando apenas as imagens do seu trabalho de reflexão. A fotografia permite fixar essa zona de contacto em constante transformação, reveladora da transitoriedade entre imagem e matéria, que não se deixa fixar numa forma definitiva. Esta acumulação de reflexos é sinal de uma obra que se desdobra sem um limite, existindo num vórtice de apropriações, construções, ofertas e transformações apenas possível de captar através do salto imersivo na sua complexidade e multiplicidade.
Paula Pinto
Notas