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Fragmentos de texto para um narrador homodiegético e omnisciente [rasurados]
Fragmento # 1: a caixa
A câmara, vinda do mar, aproxima-se lentamente da caixa, até quase esbarrar contra ela. Estamos num barco ou será que estamos no céu?
Foi necessária uma única vez para esta caixa se transformar em algo que não era. Uma ida à ilha seria suficiente para me aproximar dela e aí meter coisas que não estavam lá. À quarta vez na ilha, encontrei o pensamento ideal para aí meter dentro e esse era a ruína. Aí a imaginei, o seu interior, o seu rebordo, a visão de longe, de perto e o todo.
Todos os planos são poucos para contornar a caixa… Esta espécie de cubo. Quanto mais me desvio dele, mais ela se instala. O desejo passa a memória, a memória a pensamento atroz. A distância apela-me a fazer um plano nocturno, um plano em que tentamos vê-la, olhá-la de frente, tirar-lhe as medidas, pensar no que é, no que não é, pensar se é natural, se é imposta… A sua ruína é sólida que nem um rochedo, mas este rochedo não parece natural. A câmara choca com a caixa e, pois que é de noite, chocamos nós também. Como confrontá-lo? As vagas surgem para o massacrar, para o destruir, e fazem-no sempre, embora nunca de repente, a olhos vistos. Culpa e desejo também estão ali instalados e, ao mesmo tempo, difusos. Ali estão também a confusão do mar, o pico do chamamento e a lava da exaustão e da absolvição.
Ainda do outro lado, antes da ilha, antes da caixa, pensava se realmente eu estaria adormecida ou, por outro lado, extinta. Olhando agora a caixa, talvez também eu me arruíne se, por um acaso, me puser a pensar...
Fragmento # 5: o mapa e as casas de Deus
Na minha primeira subida ao Pico, ainda existia um mapa.
Chegámos tarde, antes mesmo de ter de descer de novo. Aterrámos acima das nuvens, por meia hora. Meia hora de ilusão, pois que estávamos no lugar dos deuses. Ainda não a conhecia, a caixa, não precisei de procurá-la no horizonte. Não a procurei. Com as nuvens na minha face, não a veria tão pouco. Descemos a tempo de apanhar o barco. A cada passo, perdíamo-nos. A cada passo, achávamo-nos. Como tantos outros caminhantes, pois que abaixo das nuvens se havia instalado um nevoeiro cerrado. Devíamos seguir as pisadas um do outro, um marco atrás do outro, esse um e esse outro em relação.
Desta ilha só se sai de barco ou de avião. Lembro-me, entretanto, do Mont Saint-Michel, na Normandia, onde aliás nunca fui. Chamava-se antes Mont Saint-Michel au péril de la mer (sob perigo do mar?) e, antes disso, Mont Tombe («tombe» quer dizer, entre outras coisas, sepultura). Há uma ponte, mas não deixa de ser uma ilha. Antes de a água ter cercado esse lugar, ele não teria o mesmo poder de chamamento, digo-o com segurança. Ainda não percebo bem porquê, mas a relação entre estes dois sítios toma corpo de forma imprópria neste filme, embora me pareça ainda prematuro desviar-me dela. Saint-Michel tem, no seu centro, um mosteiro, a casa onde podemos encontrar Deus, se tivermos muita vontade de o encontrar… Fora das suas paredes, nas margens em que a água insiste, estão os homens de verdade. Ou será que não? Questiono-me sobre como é possível que se deixem inundar por uma lava imensa de fé estes bem-aventurados que, na maré baixa, podem caminhar pelo seu pé para fora daquele lugar, até à terra mãe.
Nunca acreditei em homens demasiado crentes. Devo, então, retomar o objecto de contemplação e recolhimento desta outra ilha, mas ocorre-me repetidamente um pensamento: o que será da minha equipa, de todas as vezes que o bom tempo os deixar atravessar o canal? Terão vontade de fugir deste lugar, se lhes disser que ele nos interroga e perturba como uma casa de Deus e que alguma coisa teremos de procurar ali? Não fosse este narrador também uma «espécie de iconoclasta» e talvez se encontrasse consolo na pantomina que este filme arrisca ser.
Não me parece que o sentimento da ruína possa ser assim partilhado e dividido e sempre convivi mal com esse género de algoritmos, não porque tivesse dificuldade em compreendê-los – pois que a matemática das coisas está aí para ser tida e achada –, mas porque não cheguei a encontrar um que me explicasse como é que a ruína pode deixar de ocupar os metros quadrados, e também os cúbicos, das casas de Deus.
Continuava ainda sem imaginar a caixa e o Pico no horizonte, por trás dela. Talvez ela nem estivesse aí ainda, talvez nunca viesse a estar. Teria de me inteirar da data da viagem para sabê-lo com rigor, mas não me parece que o rigor seja assim tão importante, neste momento. Por certo, compreendem. A primeira vez nas ilhas, a primeira vez naquela ilha picada, contra-picada. Descemos depressa demais. Perdemo-nos. «Para o mar!» Para o mar é o caminho que não se perde. Lá apanhámos o barco. Grandes estavam as vagas, pois que por vezes são próprias do nevoeiro.
Fragmento # 8: Paladin, Corbusier, cinema e lava
O objecto deste filme, a Central, funciona desde 1999 como unidade piloto de produção de energia através das ondas. O lugar onde está situada é o Porto de Cachorro. Cachorro é o nome que se dá a um cão pequeno e à sandes com salsicha que comia, com mostarda Paladin, nas visitas a Lisboa, em criança, no restaurante do Cinema Império. Uma festa. Felicidade condensada em papo-seco. O cinema é, há bastantes anos, um lugar de culto da Igreja do Reino de Deus. Cada vez que aí passo agora, finjo não conhecer o outro género de sonhos e ilusões que ali foram projectados e tento, tristemente, apaziguar-me com os idealismos. O Corbusier dizia que a casa é uma máquina de habitar («Une maison est une machine-à-habiter»). A infância da Paladin foi também povoada por este senhor do betão, de que me falaram, durante 20 anos, como algo sempre novo. Tínhamos 2 livros só sobre ele. Na última vez que estive em Paris, para um curso de 16mm, afaguei uma Bolex e as suas entranhas. Entre o aeroporto e a cidade, passámos por um conjunto de prédios de habitação social engendrados pelo Sr. Corbusier. Não tinham nada de simpático e não foram feitos para albergar pessoas… Ou imagens. Perguntei-me se a máquina teria prazer em afagar a película, quando esta passava nos seus rolamentos. Terei de encontrar uma forma de habitar aquele cubo. Por certo, é também uma máquina, o que instrumentaliza, de imediato, o que se pode tirar dela.
Disse à equipa: «vou perder o juízo com estas cagarras». Parecem bébes a chorar. Aparecem do nada. Não as vemos ao longe. Aparecem de noite, o que é ainda mais perturbador. Rebolo na lava, tapo os ouvidos. Quero que se foda o que pensam do não querer ouvir. Na noite em que me arruinei e esqueci, por momentos, as personagens que tinham subido à montanha, no início desta história, tentei arduamente explicar porque poderia ensandecer com aquele som. Vá lá o coração de um homem perceber os ouvidos de uma mulher. O desejo de entrada na ruína viu-se, no entanto, barrado por uma lua cheia mas rodeada de nuvens dançantes. Parei a olhar, deitada na areia vulcânica. Como as matérias me transtornam mais do que as pessoas é coisa que tentarei perceber no decurso, se não deste filme, pelo menos desta vida. Deixo de ver o outro, fica invisível. Enquanto o objecto do desejo ganhava o seu espaço, eu só conseguia pensar naquela lua encoberta, que falava comigo cuspindo lava requentada para a minha cara. «Estou requentada», pensei. Requentar é aquecer de novo o que já tinha sido aquecido. Não sabe ao mesmo, convenhamos. O mar e a caixa comem-se. Tem graça. Quem engole o quê. Engolir? Não engolir? Sempre achei ridícula esta interrogação. O que importa? Engolimos o outro de tantas outras formas, bem mais espectaculares do que essa. E engolimos tantas coisas que não equacionávamos engolir. Queria colocar-me no caminho daquelas vagas, presa à caixa com uma corda, claro, que eu sou pelo viver. A espuma filtra a cisma de como seria.
Devo concentrar-me no funcionamento da caixa. A parede lateral está manifestamente degradada, em quase colapso, «desgastada», dizem os técnicos. Enquanto penso nisso, vejo e revejo Rossellinis, a Bergman e a Magnani e parece pulsar uma luz de autoconsciência, que incide sobre aquela estrutura de cimento, uma luz maior que a projectada. Seremos capazes de editar com fulgor as imagens deste morto-vivo? O cimento não grita, somos nós que gritamos. Tal como o cinema não grita, somos nós que o fazemos gritar. Liberto o operador de som, para ir explorar as redondezas. É bom que não se afogue, penso... Que ridículo o pensamento da catástrofe.
Fragmento # 13: das ondas e do coração
Os quadros de alguns impressionistas, que gostava de ter conhecido pessoalmente, tornam significantes as diferentes alturas e as diferentes texturas das ondas. Assistimos, de manhãzinha, ao seu prenúncio. Para efeitos de condensação da nossa atenção e de eficácia na toma das imagens do mar, queremos que, em alguns momentos, elas se tornem vorazes. Poderemos meter-nos aí, nesse campo sem terra, pois que elevado é o risco de sermos engolidos? Quem nos salvaria de nós mesmos? Afinal, quem se atreve a olhar assim, tão de frente, o mar? É altura de recuar e chamar a nós a teleobjectiva, em jeito de providência divina. Se não tivéssemos as portas da frente já completamente escancaradas, por certo nos inibiríamos de falar aqui dos nossos recursos semi-estéticos. Avante, avante!
Que bem que sabe este rol de interjeições, agora que já estamos todos sintonizados. A linha do horizonte só serve mesmo é para pensar.
O coração bate o seu bater fulgurante, enquanto entramos na água mais profunda. É inevitável fazer este percurso sonoro, pois é evidente que aqui nos ligamos pelo coração. Conheci corações com batimentos atípicos e já me revelaram, cripticamente, «sinto o meu coração». O que se responde a isto? «Ainda bem»? A vida pulsa nos que nos rodeiam de uma forma desmesurada, mesmo quando pensamos que em nós não pulsa já nada. E se captássemos os batimentos cardíacos dos entrevistados? Meçam-se devidamente as diferentes pulsações, por favor, que eu não consigo continuar a olhar para esta caixa sem análises comparativas. É isto que da engenharia se percebe na felicidade? «Bate, bate, bate». O mar avança sobre a estrutura, ao ritmo das ondas. Queres falar connosco, mar? Queres dizer alguma coisa, para além de bater? Queres que eu cante o canto da sereia ? Podemos falar aqui nos mortos que tens guardados, se quiseres. Tens sorte de não estarmos nesse mediterrâneo. Por força, não te sintas obrigado a dar-nos respostas, pois que as perguntas não são feitas por ti. Aqui, fala-se da morte em vida, mas não te iludas, se pensas que não é uma parte da mesmíssima coisa.
De volta à terra, descubro, finalmente, o contentor onde está o transformador de energia (Transformer's Container). Olha que lindo e maravilhoso! Uma caixa de guardar promessas, coisas que se transformam noutras e também devaneios. Até agora, este texto tinha algum sentido, pelo menos para mim... Perde-o enquanto olho o contentor. O que faço com isto? Que coisa difícil de filmar. Não se mexe. Nada se mexe, aparentemente, lá dentro. Só está. Parece-me que nos filmes alguma coisa tem que se mexer, ou tem que se mexer em alguma coisa... Esperemos um momento, dou-lhe uma segunda oportunidade. Plano-fixo-morto; podemos rir.
acidente – força pneumática/força – aerodinâmica/dinâmica – acção /poder activo
Há neste esquema, de alguma forma explicativo da existência do transformador, qualquer coisa de que gosto muito. Estou pouco acostumada a acidentes poderosos, embora me pareçam uma maravilhosa fonte de energia para nos sentirmos vivos. Uma força aparece de onde não parecia estar. No dia-a-dia o incidente e o percalço são insatisfatórios, mas parecem deixar-nos em carne viva, como no filme do Almodovar, afogueados, mais que requentados, aquecidos, verdadeiramente aquecidos. Quando parecia que não tínhamos já pernas para nos erguermos, eis que uns braços nos fazem alcançar o prazer dinâmico, o poder activo que vem do dar e do receber. As labaredas podem agora aparecer no nosso transformador. Não estamos preparados para apagar o fogo, na realidade ele só quer que o toquemos. Venha a água de novo por favor, antes que tudo imploda. Apercebo-me que já só quero voltar para a beira da caixa. Torna-se urgente encontrar outros pontos de vista para os planos gerais.
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Nota: Os fragmentos apresentados fazem parte da actual escrita do texto para o narrador do projecto Central, um documentário sobre a Central de Energia das Ondas, situada na Ilha do Pico, nos Açores, em fase de desenvolvimento. Central fará uma reflexão sobre o estado actual da unidade-piloto através dos elementos que constituem a sua estrutura, da natureza envolvente e das pessoas que estão associadas ao seu funcionamento, reflectindo ao mesmo tempo sobre a ruína e sobre a própria realização cinematográfica enquanto acto criativo.