Em 1995, o Real Arquivo de Filmes Belga (posteriormente chamado Cinematek) planeou organizar um concerto celebrando o centésimo aniversário do cinema no Teatro Luna de Bruxelas. Pediram a seis compositores que escolhessem um filme por entre as muitas curtas metragens mudas a preto e branco que tinham restaurado.
Tivemos o privilégio de passar duas tardes a visionar uma larga variedade delas antes de fazermos a nossa escolha. A maior parte eram narrativas de vários géneros, cómico, expressionista, histórias de detectives, romance, etc. Mas eu senti-me atraído pelas mais experimentais, que mostravam uma maior ligação ao meu trabalho e que me ofereceriam mais liberdade artística. Como aquelas em que eu estava interessado eram especialmente curtas, foi-me permitido escolher duas delas, Jeux des Reflets et la Vitesse de Henri Chomette e Back to Reason de Man Ray.
Na altura eu estava a desenvolver algoritmos de síntese granular multicanais, usando a estação de trabalho de processamento de som do IRCAM, na Faculdade Técnica de Mons, na Bélgica. Algumas das novas técnicas que eu tinha desenvolvido pareciam particularmente apropriadas para a composição da música daqueles filmes. E, na minha opinião, ressoam com o tema desta revista.
O princípio da síntese granular consiste em gerar fragmentos muito pequenos de som, os grãos, e a controlar largas quantidades deles, usando vários parâmetros globais, de modo a esculpir o som resultante. Pode fazer-se uma analogia muito rápida com átomos, uma analogia que esteve na origem da ideia que se encontra por trás desta síntese técnica: em função da forma como são combinados, podem produzir-se materiais e estruturas muito diferentes usando unicamente uma pequena variedade de átomos.
Contrariamente aos outros algoritmos disponíveis naquela altura, eu desenvolvi métodos para controlar os parâmetros de síntese com potenciómetros, transformando os meus algoritmos num instrumento virtual que eu podia realmente tocar. Permitiu-me explorar expressivamente um espaço timbrico muito rico, indo de drones a estruturas rítmicas, dos sons electrónicos às texturas orgânicas, apesar de usar somente alguns segundos de «som de fonte», i.e. o som do qual pequenos fragmentos são extraídos para gerar cada grão individual. Para além de acrescentarem uma exploração mais fina e ampla do material sonoro, este controlo gestual foi a chave da criação de perfis de som envolvente e a geração de estruturas que mudam dinamicamente em relação com as imagens.
Jeux des reflets et de la vitesse (Henri Chomette, 1925), 7’20
Henri Chomette, o irmão mais velho de René Clair, realizou alguns filmes experimentais mudos. A sua edição original de Jeu des reflets et de la vitesse foi infelizmente perdida e este filme foi feito com fragmentos recuperados. Celebra Paris como cidade em perpétuo movimento. O filme começa com reflexões caleidoscópicas em constante alteração e com corpos em rotação, passando posteriormente a uma longa travessia de Paris de comboio e barco.
Paul Virilio escreveu acerca daquilo a que ele deu o nome de visão dromoscópica, aquela de que se faz a experiência por trás do pára brisas de um carro conduzido a grande velocidade ou ao ver a paisagem desenrolar-se à janela de um comboio. O espectador pode perder as suas referências na ilusão do movimento, entrar num estado de consciência modificado, e até experienciar uma transformação radical da percepção. Os efeitos induzidos por estas situações, semelhantes à vertigem, às tonturas ou à hipnose, foram aumentadas usando as possibilidades das síntese granular, incluindo os algoritmos especialmente desenvolvidos para o controlo da localização espacial de cada grão, para a geração de texturas de som rítmicas e hexafónicas que envolvem a audiência. Criando tanto movimentos giratórios como uma espécie de «traking shot» musical imersivo de modo a acentuar a impressão de velocidade dada pelo filme. O ritmo dromoscópico incita a sensação kinestésica a juntar-se ao movimento. Passar por túneis e por baixo de pontes torna-se quase uma experiência física...
Back to Reason (Man Ray, 1923), 2’48
Para este filme, para além da síntese granular, usei um instrumento virtual baseado na equação matemática que descreve o movimento de um pêndulo de modo a criar uma ligação hipnótica com os corpos oscilantes que aparecem no filme. Os parâmetros do movimento puderam ser tocados com potenciómetros e os sons foram desencadeados de acordo com a posição e a velocidade do pêndulo, criando sequências pseudo-repetitivas.
Não foram aplicados quase mais nenhuns efeitos adicionais ao som de modo a ir ao encontro da natureza das imagens, indo de texturas granuladas a um corpo de mulher nu, com muitos cortes abruptos inesperados. Quis transpor este uso constante de imagens aparentemente não relacionadas e salientar a impressão de um «non-sense» vertiginoso presente em todo este filme Dadaísta.
Uma nota sobre a vertigem
A evocação de Vertigo traz-me imediatamente de volta a emoção da primeira visão irreal e misteriosa de Kim Novak, naquela sala verde. Mas, como tema, é mais geralmente característico da sensação que tenho naqueles momentos mágicos em que uma porta se abre repentinamente para novos territórios desconhecidos. No processo de composição, a vertigem acontece quando a percepção é inesperadamente deslocada, transformada, quando sentimos arrepios, estando subjugados pela força de um som, de uma estrutura, de uma atmosfera que parece transcender a obra. A vertigem é, portanto, possivelmente um sinal pelo qual o nosso inconsciente nos está revelando direcções férteis que têm o potencial de tocar o público, da mesma forma. Um tema muito rico, de facto.
Infelizmente, a vertigem também descreve o que sinto ao contemplar o nosso mundo enlouquecido num ritmo acelerado. Voltar à razão?
Ambos os trabalhos foram compostos com a ajuda da Communauté française de Belgique – Direction générale de Culture.
Tradução de Nuno Miguel Proença