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A dimensão colectiva nas obras de arte pode operar a um nível mais abstracto do que as acções colectivas directas que os grupos podem levar a cabo. Tal como a noção de inter-textualidade na literatura se refere às inter-relações complexas presentes na formação e no sentido de uma nova obra literária, a noção de inter-medialidade pode ser usada no campo artístico visual para definir a interconexão entre várias obras de arte visuais no processo de criação da obra. Porque a arte é por definição feita de interdependências, cada obra de arte é «um mosaico de referências e de citações que perderam as suas origens» (que é a definição de inter-textualidade dada por J. Kristeva). Em certos casos, as referências e as citações não estão perdidas, mas são feitas de um componente visual da obra de arte, algo sendo explicitamente absorvido, exposto e nomeado. A dimensão colectiva é um constituinte activo de qualquer comunidade artística e semiótica. Está viva.
Em 1988, John Carpenter realizou o icónico filme de série B They Live, uma obra de «ficção científica» filosófica, ao qual preferia fazer referência como tratando-se de um «documentário». O filme baseava-se em questões de realidade e percepção, verdade e ilusão, e também nas ramificações alastrando-se das estratégias do poder para manter o status quo. Por trás do grotesco de uma invasão de alienígenas extra-terrestres – uma espécie de metáfora humorística de criaturas corruptas e inumanas – tinha por intuito falar da engenharia social das massas, da manipulação e do controlo mental, do conformismo, da alienação profunda e da alteração de uma capacidade de pensamento independente e crítico pelo uso sistemático de técnicas de hipnose como a publicidade, os programas televisivos e os media mainstream dispostos em todo o lado, na vida e no ambiente de toda a gente. Tinha por intuito falar sobre o poder e a servidão, sobre a hipocrisia e a duplicidade, sobre o contraste entre o cenário aparentemente asséptico e as incomensuráveis aberrações psicológicas que se escondem na sociedade americana. Alfred Hitchcock, John Frankenheimer, Stanley Kubrick e David Lynch são alguns dos grandes mestres deste tema de reflexão. They live também falava sobre o contraste extraordinário entre os poucos que possuem o saber sobre o que está realmente a acontecer por trás dos cenários, e o resto, que vive num estado de cegueira, descanso e ignorância totais, apesar da sua crença ilusória no seu apoderamento e na sua autonomia através de um consumo material básico. Uma década antes de Matrix, Carpenter estava a tocar exactamente na consciência social a que dão forma a política e o marketing, as grandes empresas e os slogans que têm por fito reduzir a diversidade e o potencial humanos a um sistema comportamental mentecapto e minimalista que anda às voltas em círculos que vão da obediência e do consumo à reprodução e ao conformismo.
A imagem culto do retrato «alienígena», um rosto esfolado com carne em decomposição, que se assemelha a uma espécie de robô, regressou, mais actual do que nunca, sob a forma de um indesejado placard publicitário gigante. Criado pelo ilustrador pop «lowbrow» Mitch O’Connell, e apoiado por crowd funding, o painel viu recusada a autorização da sua exposição e nenhuma companhia nos Estados-Unidos aceitou montá-lo. Mitch O’Connell contactou o seu amigo argentino, o artista gráfico Jorge Alderete, que vive e trabalha no México, e foi assim que o placard viajou até à Cidade de México e foi instalado com sucesso por um mês (em Julho de 2017), por cima de uma auto-estrada. Alderete replicou a máscara «alienígena» e fez algumas fotografias para guardar exemplares artísticos do evento.
O resultado está muito em sintonia com a sua série fotográfica de máscaras, mesmo que o contexto e a iconografia das máscaras sejam completamente diferentes. O que é que as fotografias escolhidas para este número da Wrong Wrong têm em comum? Será o anonimato dos sujeitos? Será o efeito de estranheza peculiar e a fascinação que produzem? Será o contraste que é encenado entre as situações banais do dia a dia e a emergência destes rostos inesperados surgindo sabe-se lá de onde?
As máscaras referem-se a outras dimensões que abrem uma brecha, uma falha na vida asséptica do dia-a-dia. Esta brecha é como que a irrupção de um conhecimento inconsciente profundo, que revela mais do que esconde. Em They live, as caras hediondas revelam-se ser os rostos verdadeiros escondidos por trás dos rostos humanos comuns. Ver os intrusos como eles são, como uma espécie de estranhos à raça humana, supõe um acto de lucidez e um salto para fora do dispositivo ilusório bem montado. Se replicarmos o conceito, tanto as máscaras «sagradas» Moai como as mexicanas que aparecem em circunstâncias familiares urbanas poderiam também ser apreendidas como os verdadeiros rostos desta gente comum. De pé na sua sala de estar, frente ao café do bairro, junto a outras obras de arte ou ao saírem de um museu, algo maior, indescritível e afortunado está a ter lugar. As máscaras operam uma espécie de truque de magia. De repente, quem as usa é posto em relação com extravagantes e misteriosos rituais de «morte e vida» simbólicos e mitológicos. A presença das máscaras abre uma estranha continuidade entre contextos que não têm absolutamente nada em comum. É encenada a metamorfose do ordinário e do banal em algo de ambíguo e de semelhante a um sonho.
O procedimento lembra o conceito warburgiano de Nachleben, cujo intuito era o de assinalar o fenómeno de emergência das imagens e motivos em novos espaços e tempos que não estão ligados aos mais antigos em que eram previamente activos e significantes. À medida que reaparecem numa pós-vida ou num impulso de sobrevivência, o seu sentido muda. Desta forma a ambiguidade e o efeito de estranheza das cenas fotográficas de Jorge Alderete vem do facto de as máscaras, longe dos seus contextos de celebração e transe extáticos nos quais muitas vezes personificam entidades invisíveis, induzindo estados mentais extra-corporais, aparecem como completamente assimilados e digeridos pelo conformismo da vida quotidiana e pela complacência para com os critérios convencionais envolventes. As próprias máscaras são saneadas, embelecidas, excessivamente estetizadas. Na verdade, a criatividade subterrânea e marginalizada acaba sempre por ser negociada, massivamente publicitada e mercantilizada.
O que talvez seja mostrado em Make América Great Again e nas outras fotos é a forma como o capitalismo estabelecido triunfa sobre os movimentos de rebelião sãos tanto como sobre as mais remotas e genuínas tradições. Mas a experiência irredutível e singular do Ganz Andere[1]– a que é sagrada – ameaça sempre manifestar-se e explodir em qualquer contexto, em qualquer altura, mesmo nos mais extintos e corruptos. Como o processo que consiste em passar da ignorância e da submissão cega ao conhecimento profundo é a experiência sagrada de resistência que o filme de série B de Carpenter mostra, o despertar libertador para o múltiplo e a alteridade podem jorrar da lhaneza paralisada e pavorosa da uniformidade e do conformismo, como nos mostra Alderete.
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Traduzido do inglês por Nuno Miguel Proença.
Footnotes