A Nova Crítica de Frederico Morais ou Por uma erótica da crítica
Cristiana Tejo
A 13 de Dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional 5 (AI-5) que endureceu a ditadura civil-militar brasileira, iniciada em 1964. O ano de 1969 inaugurava-se cinzento, desesperançado, opaco. Nas palavras do crítico de arte Frederico Morais houve «dois tempos: 68/alegria alegria – divino maravilhoso; 69/ tristeza tristeza – repressão e tortura. Dois espaços: o da arte – explosão criativa, arte-actividade, arte-vida – e o da política – a superação das ideologias» [1]. Este seria o ano do boicote internacional à Bienal de Arte de São Paulo decorrente da censura à mostra montada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com a representação brasileira escolhida para a Bienal de Paris e do Salão da Bússola, acontecido na mesma instituição, em Novembro de 1969. Este certame que acabou por lançar, involuntariamente, o que ficou conhecida como «geração tranca-ruas», ou geração AI-5 (uma safra de artistas marcadamente conceituais e políticos), tinha como seu coordenador o supracitado Frederico Morais, um crítico que estava totalmente comprometido com a renovação da arte brasileira e da crítica de arte.
Jornal «Diário de Notícias», 2° Caderno, 23/07/1970
A passagem do efusivo 68 para o tristonho 1969 apressou a gestação d’A Nova Crítica, uma revisão radical da prática crítica engendrada por Morais. Tratava-se de comentar criticamente um trabalho ou uma exposição de um(a) artista com outro trabalho feito pelo crítico usando a mesma linguagem artística e preferencialmente usando os mesmos materiais, suportes e locais escolhidos pelos artistas. Ou seja, ao invés de usar a linguagem escrita, algo pertencente directamente ao universo da literatura, Morais propunha-se a utilizar o próprio vocabulário artístico, algo que não fosse externo à própria arte. A experiência ocorreu durante todo o ano de 1970 e pavimentou seus novos caminhos de experimentação crítica e curatorial nos cinco anos seguintes.
Público na abertura da exposição «A Nova Crítica», em 18/07/1970, uma resposta à mostra de Thereza Simões (Arquivo Frederico Morais)
As bases para a nova crítica começam a ser explicitadas por Frederico Morais em seu texto Contra a Arte Afluente – o corpo é o motor da obra, publicado em Janeiro de 1970, na Revista de Cultura Vozes, uma homenagem a Décio Pignatari que tinha escrito a «Teoria da Guerrilha Artística», em Junho de 1968, e inspirado também no pensamento contra-cultural de Marcuse. Partindo das premissas de Pignatari, Morais elabora uma espécie de manifesto e grito de guerra, em que fica mais explícito o seu posicionamento favorável a uma arte de guerrilha, que não apenas responde ao clima autoritário do Brasil e ao momento contra-cultural do mundo, mas enterra de vez o conceito de obra de arte e outras crenças que fundamentaram a história da arte até então. O artista guerrilheiro seria o protagonista de uma contra-história da arte, baseada não mais em obras dadas à contemplação, mas em situações e/ou proposições que devem ser vividas e experimentadas. E nesta guerra da arte, como em todas as guerras, as estruturas e posicionamentos são desestabilizados, baralhando-se lugares e funções. Na frente da guerra de assentamento da arte contemporânea, o crítico de arte também torna-se proponente.
Frederico Morais diante do cartaz da mostra «Agnus Dei», de Cildo Meireles, Thereza Simões e Guilherme Vaz. Julho de 1970 (Arquivo Frederico Morais)
O questionamento de seu papel como crítico vai ganhando forma nos projectos de exposição que Frederico Morais vai organizando. Em 1966, ele faz a curadoria de Vanguarda Brasileira, um apanhado de trabalhos experimentais de artistas cariocas que representavam a nova arte. Com a impossibilidade de montar seu trabalho, Oiticica pediu para que montassem por ele. Morais, Rubens Gerchman e Pedro Escosteguy seguindo as instruções do artista construíram os Bólides, caixas com materiais elementares da terra (pigmentos coloridos, pedras, carvão). Esta acção de fazer o trabalho pelo artista traduzia a singularidade da arte contemporânea e a relação do crítico com este tipo de obra e despertou em Morais um novo processo de pensamento sobre possibilidades de sua própria actuação.
O projecto Do Corpo à Terra, pensado nas últimas semanas de 1969 e materializado em Abril de 1970, é um campo de concretização dos experimentos de Frederico Morais. Tratou-se na realidade de dois eventos simultâneos e integrados: a mostra Objecto e Participação, instalada no recém-inaugurado Palácio das Artes de Belo Horizonte e aberta no dia 17 de Abril de 1970, e a manifestação Do Corpo à Terra, ocorrida no Parque Municipal da cidade, logo atrás do Palácio das Artes, entre 17 e 21 de Abril, marcando as comemorações de Tiradentes[2]. O projecto foi a contra-proposta feita por Frederico Morais ao convite de Mari’Stella Tristão para que ele assumisse a organização do Salão de Ouro Preto daquela edição, que ocorria excepcionalmente no Palácio das Artes e não na cidade histórica mineira. Com carta branca de Tristão, Morais fez algumas modificações para tornar o evento mais contemporâneo. Alterou a categoria de escultura para o de objecto e incluiu o Parque Municipal como área de actuação dos artistas.
Diferentemente de mostras organizadas por artistas, em que o produtor da obra também é curador, em Do Corpo à Terra e Objecto e Participação, Morais coloca em marcha seu processo de realização de trabalhos de arte, ou sua atitude dialógica entre palavra e imagem, entre quem escreve e quem produz, baralhando classificações. Quinze Lições sobre Arte e História da Arte – Apropriações, Homenagens e Equações era composto de 15 fotografias P&B legendadas e como o próprio título afirma, trata-se de interligar imagens e conceitos com artistas, pensadores e estilos artísticos. Estampou a capa do jornal do VII Festival de Ouro Preto.
Nos quadrados azuis encontravam-se uma citação, «Jan Dibberts: ‘A obra de arte é a foto do trabalho’» e um texto instrução: «O corpo é o motor da obra – Percorra a 'exposição' a pé. Após ver, bolir e imaginar as obras, pare por alguns instantes em qualquer lugar do parque, ou sente-se ou deite-se sobre a grama. Respire profundamente. Escute as batidas do coração, tome o pulso, sinta o suor e o cansaço no seu corpo. A obra está pronta e terminada». As imagens eram fotografias de Maurício Andrés Ribeiro, muitas delas feitas no próprio parque. Morais conta em vários depoimentos que ele conhecia o Parque Municipal muito bem porque na pré-adolescência vendia doces lá, havia uma ligação biográfica e afectiva com aquele espaço. Historiador da arte autodidacta, elabora sua primeira obra criando uma nova história da arte que se interliga com a sua própria trajectória pessoal.
Não houve catálogo de ambos os projectos, apenas o Manifesto do Corpo à Terra escrito e assinado por Frederico Morais e que foi distribuído na abertura, além de ser publicado nos jornais da época. Dividido em nove partes, em um de seus trechos dizia: «A arte de hoje reflete uma nostalgia do corpo. O corpo e seu carácter ecuménico, sua relação com os ritmos fundamentais da própria vida. Ritmos naturais e orgânicos. O corpo como um pulmão da existência. Sístole e diástole – respirar e transpirar. O sangue como elemento de comunicação de todos os homens. Como o suor. O corpo – cabeça, tronco e membros. Todos os sentidos e não apenas a visão. Um código táctil-olfactivo. Uma gramática gustativa. Uma linguagem acústica. Os demais sentidos determinam espaços circulares, por isso mesmo dinâmicos. A mão que apalpa, o corpo que anda, olfacto – imaginar. E participar».
Frederico Morais na montagem da sua resposta ao trabalho de Cildo Meireles, Julho de 1970 (Arquivo Frederico Morais)
Três meses depois a experiência de fazer a curadoria de Objecto e Participação e Do Corpo à Terra, e, principalmente, de ter produzido Quinze Lições sobre Arte e História da Arte – Apropriações, Homenagens e Equações, Frederico Morais estreia A Nova Crítica, na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, como crítica à série de exposições Agnus Dei, de Thereza Simões, Cildo Meireles e Guilherme Vaz. A primeira mostra foi a de Simões e reunia telas em branco mas com títulos que descreviam situações. Meireles foi o segundo artista a expor e apresentou fotos que registavam seu trabalho apresentado na manifestação Do Corpo à Terra e o poste em que sacrificou as galinhas, além de três garrafas de Coca-Cola, do projecto Inserções em Circuitos Ideológicos. A mostra que encerrou o ciclo foi a de Vaz, e compreendia um aviso na entrada da galeria de «desapropriação» de todos os visitantes.
A resposta crítica de Frederico Morais à Agnus Dei, nos termos de A Nova Crítica, foi a sua exposição homónima ocorrida em 18 de Julho de 1970. Nela, respondeu a Thereza Simões com a apresentação dos despojos de telas originalmente brancas colocadas em mictórios de bares localizados na Tijuca e Ipanema (a primeira semidestruída depois do primeiro palavrão escrito, e a segunda, com contundentes críticas ao governo Médici). Sobre os trabalhos de Cildo Meireles, comentou com 15 mil garrafas vazias do refrigerante, «gentilmente cedidas e transportadas por Coca-Cola Refrescos S.A», além de fotos de um monge se auto-imolando no Vietname, legendados por textos bíblicos dos Génese e Êxodo (MORAIS, 1995). O diálogo com o trabalho de Guilherme Vaz foi a substituição de seu documento que ele denominara «Projecto de exposição para assassinatos colectivos em alta escala» por um outro, expropriando o primeiro, numa clara ironia sobre o gesto simbólico dos agentes institucionalizados. Numa das paredes, Morais colocou um painel com uma espécie de introdução à acção da Nova Crítica com trechos de artigos e ensaios que ele anotou desde 1958. A exposição-crítica durou apenas algumas horas, tendo sido fechada sob ameaça de invasão da galeria pela polícia.
O segundo comentário que Morais fez nos termos de A Nova Crítica foi na forma de um audiovisual, em que eram confrontadas imagens (slides) dos trabalhos apresentados pelos artistas paulistas José Resende, Luiz Paulo Baravelli, Carlos Fajardo e Frederico Nasser, no MAM-RJ, com imagens de canteiros de obras da cidade, chamando a atenção do espectador para o que ele denominou de «arqueologia do urbano», já ensaiado em sua apresentação de Do Corpo à Terra. As imagens eram complementadas com uma espécie de memória sonora da cidade: sons de martelos hidráulicos, oficinas, sinos, água escorrendo, imagens que fluíam juntamente com textos de Bachelard, Molles e Langer. Este foi o momento em que ele buscou recursos audiovisuais para seu comentário crítico.
Capa do catálogo da exposição «Audiovisuais», no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1973, primeira mostra individual de Frederico Morais como artista
Em Novembro de 1970, Frederico Morais fez outro audiovisual comentando um trabalho de Artur Barrio, O Pão e o Sangue de cada um. Os dois audiovisuais e um terceiro, Cantares, foram premiados no II Salão Nacional de Arte Contemporânea de Belo Horizonte. Esta foi a primeira vez em que um salão brasileiro reconhecia o audiovisual como expressão da arte actual, abrindo um campo ilimitado para os artistas, o da imagem projectada. Na realidade, a Nova Crítica encerra-se com Cantares. A partir dele, os audiovisuais ganharam autonomia como trabalhos de arte, talvez pela dificuldade em manter um ritmo dinâmico de críticas a partir de exposições ou pelo próprio processo ter se tornado artístico em si para Frederico Morais.
No decorrer do último ano da década de 1960, ainda seria publicado o texto Crítica e Críticos[3], mais uma plataforma para a enunciação do contexto e dos preceitos d’A Nova Crítica. O artigo tece um alinhamento entre a crise sentida num Brasil amordaçado pela ditadura e pela disputa de sentido sobre a arte de ponta e as discussões teóricas que ocorriam sobre esta questão em outras partes do mundo. Apresenta o embate entre o esforço de profissionalização da crítica, como a estruturação de tabela de honorários, a obrigatoriedade de críticos nos júris de arte e a tomada de consciência da precariedade ou mesmo inutilidade do julgamento estético: «Trata-se, na verdade, de uma questão mais profunda e antiga de fundo filosófico, trata-se do julgamento. Questão agravada particularmente na época actual na qual se verifica a falência total dos ismos, géneros, valores plásticos, seguida de aberturas ilimitadas». E sintetiza: «O panorama actual parece ser o seguinte: de um lado temos a crítica judicativa, firmando critérios, de um outro, a nova crítica, abrindo o processo, buscando fazer da crítica um ato criador».
«Quinze Lições sobre Arte e História da Arte», lição número 1 – Arqueologia do Urbano: Escavar o Futuro. Abril de 1970 (Arquivo Frederico Morais)
Em contraposição ao positivismo crítico ou à figura do crítico como juiz, mencionadas em textos de Lionelo Venturi, Eduardo Portela e John Dewey, Morais faz defesa da crítica como criação baseando-se no pensamento de Roland Barthes sobre a escrita, entendida como exercício da liberdade e fruto de condicionamento histórico. Em suas palavras: «Ora, se a crítica não é julgamento (condenar a criação) ela é criação (que exclui julgamento). Pode-se aceitar isso? Não em termos absolutos, pois o julgamento não exclui rigorosamente a participação que deve ser entendida como criação, da mesma forma como a crítica criadora não exclui o julgamento. O que se recusa é a crítica autoritária, opressora, que em nome de uma hierarquia de valores submete a obra de arte a critérios absolutos e imodificáveis. […] Quanto menos judicativa e parcial mais criadora é a crítica de arte. […] a crítica assim exercida é, na verdade, uma actividade transformadora, criadora de simulacros, uma 'actividade estrutural', no dizer de Barthes… Toda crítica da obra é crítica de si mesma. […] Criar um novo texto. O crítico passa à condição de artista. Na verdade não existe mais separação entre crítica e arte, só existe o que a propósito da literatura, Barthes chama de 'écriture', dizendo que nesta nova situação 'de crise geral do comentário', o crítico torna-se por seu turno escritor»[4].
Vinte anos depois[5], Frederico Morais acrescentaria o amor e a eroticidade como componentes seminais para seu entendimento do exercício da crítica e da teorização da arte. Afirma que uma de suas maiores fantasias era escrever uma espécie de história afectiva da arte, em que a afectividade da forma seria discutida, assim como a relação apaixonada do crítico com a obra seria a mais aconselhável via de compreensão do significado da criação artística. Além disso, desejava «mostrar como as relações afectivas entre os produtores de arte ou entre os criadores e seu mundo privado repercutem, às vezes decisivamente, na criação artística». Arremata seu raciocínio com a afirmação: «Creio numa crítica amorosa, envolvente e envolvida. Como Susan Sontag, me proponho a substituir a hermenêutica por uma erótica da crítica, o discurso chato e pedante por um discurso amoroso. […] Para ser justa, isto é, para ter sua razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada e poética, isto é, feita com um ponto de vista exclusivo, um ponto de vista que abra horizontes»[6].
Passados 50 anos de sua emergência, talvez o grande legado deixado pela Nova Crítica é este chamamento para aproximarmo-nos e entendermos a arte com o corpo inteiro, com todos os seus sentidos e potencialidades. Surgida no Année Érotique e no pulsar de uma das mais opressoras fases da história brasileira, a proposição de Frederico Morais é ainda uma das tentativas mais potentes de minimizar a primazia da racionalidade, ao apontar a sua limitação, e gerar uma interacção criativa, afectuosa, inteligente além do estabelecido, do reconhecido. Possivelmente, no momento actual do mundo seja importante retornarmos a este clamor pela eroticidade, por uma erótica da arte, da vida, da crítica.
Footnotes
^ Frederico Morais, «Como será você, geração 90?», In: Crônicas de Amor à Arte, Rio de Janeiro: Revan, 1995. Publicado originalmente como Artes Plásticas, texto no catálogo exposição 68x88 no Balanço dos Anos, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, 1988.
^ Joaquim José da Silva Xavier, conhecido por Tiradentes é símbolo da Inconfidência Mineira, movimento separatista brasileiro ocorrido no final do Século XVIII, em Minas Gerais, Brasil. Desde a República, a data da sua execução, 21 de abril, é feriado nacional.
^ Revista GAM, Rio de Janeiro, número 23, 1970, pp. 30-32.
^ Frederico Morais, Revista GAM, Rio de Janeiro, número 23, 1970, p. 32.
^ Frederico Morais, Por uma Crítica criativa – a curadoria de exposições como criação. 2o encontro da ANPAP, São Paulo. 1989.