PRÓLOGO
— Acerca do distanciamento da Natureza em relação ao Homem —
A VOCAÇÃO DO ARBUSTO
Havia um arbusto de frutos fértil nascido para dar, aos pássaros e aos humanos, os sucos que fabricava a partir das coisas que dia e noite puxava da terra. O Mundo castigava-o na sua vocação, porque os mais doces frutos desconhecidos caíam no chão depois da sua gloriosa doçura, da pele tesa por conter tanto sumo.
Depois de muitos anos de frutos perdidos o arbusto chorou lágrimas de sal que, aos poucos, lhe queimariam as raízes. Nunca mais haveria frutos doces, porque ninguém os veio (nunca) buscar.
PAISAGEM NEGRA
No primeiro dia após o Fim da Humanidade, a Terra esteve mergulhada em trevas. O tempo que assim permaneceu é desconhecido. Apesar de estar um céu limpo de nuvens, sabe-se que era impossível avistar estrelas ou luar e que, com o desaparecer da Lua, cessaram as marés. A paisagem era de penumbra absoluta. O breu distinguia-se em cambiantes de preto, em vez de cambiantes de maior ou menor luminosidade, como se esperaria. Os tipos de negrume seriam a raíz de qualquer contraste.
O mar era crude, as árvores eram carvão, o céu perdera a atmosfera que retinha o antigo azul cerúleo e oxigénio, mostrando o Infinito Abismo. As anteriores estrelas nocturnas talvez tivessem sido sugadas por enormes espirais espaciais, sedentas de luz. (…)
Tudo isto deixaria em êxtase, qualquer olho excepcionalmente fornecido com células para visão sem fonte de luz, pois tudo o que existia estava sob um céu de Vazio, e por isso, insondável na sua real profundidade.
Apesar disso, em recantos intocados desta paisagem, havia muitos pares de olhos fechados (…).
CAPÍTULO ÚNICO
Os restantes habitantes terrestres não manifestaram inquietação ou temor no desaparecimento dos humanos. Mergulharam numa hibernação, de que viriam a acordar quando o breu foi interrompido, por uma luz outonal brilhante, fresca e doirada.
O suíno-nº508 acordou sem perturbação, com o sol incidindo nos olhos pequenos, vindo da minúscula janela do curral. Hoje a mãe não viera entregar-lhe alimento. A mãe era de todos os outros suínos e também dos bovinos, dos ovinos e de todos os animais que conhecia desde pequeno.
Era a mãe que o alimentava depois da amamentação da porca-mãe, que sustentou o suíno-nº508, bem como alguns dos irmãos: os que eram também suínos. (…) a porca-mãe só alimentava alguns dos suínos: os pequenos esfomeados, de acordo com o que o seu grande corpo conseguia suportar, para os satisfazer. Fê-lo, até ao dia em que fora levada pela mãe-de-todos e nunca mais voltou. Algum mal lhe terá acontecido, porque dentro do curral ouviram-na gritar com medo, até um desesperante silêncio se instalar. (…) Sentiu o cheiro da mãe-porca na mãe-de-todos muito tempo, e isso, causava-lhe sempre uma falta difícil de definir, falta de um aconchego quente perdido. A atenção ao curral dada diariamente pela mãe-de-todos fez com que lhe ganhasse afeição e confiança. Só por isso, ele e todos os outros suportavam as visitas do veterinário (…). Nunca nenhum suíno voltava.
O suíno-nº508 nunca chegou a saber para onde iam todos os suínos que saíam, porque a mãe-de-todos ia levá-lo, no dia do Apocalipse: a data em que ela e todos os humanos deixaram de se fazer ouvir lá fora. (…)
Agora acordado, depois de uma noite tão longa, quis ver onde estava a mãe. Acordou com muita fome e fuçou o chão, sem encontrar qualquer cheiro humano. A mãe não voltara e não havia alimento. (…) Ao alcançar o exterior, deu com um sol quente demais para a sua pele. O mundo tinha lindas côres e uma paz imperturbável (…)
O céu era de um côr-de-rosa, como nunca tinha visto antes, da minúscula janela do curral. Voltou atrás para chamar os irmãos-porcos e, surpreendido, patos, vacas, ovelhas lá fora também olharam para ele. Falava, de outra forma reconhecível, sabia falar como a mãe-de-todos. Todos o compreendiam e então pensou: «A mãe não se foi embora, está dentro de mim».
Quando os irmãos-porcos acordaram, todos falavam dessa maneira, cheia de significados: patos, ovelhas, vacas castanhas e as vacas pálidas musculadas. Os humanos tinham deixado de existir e Eles passaram a ter voz.