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Nos perguntou Elton Panamby ao ver a obra Sepultura, no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC Dragão / Brasil), em Dezembro de 2019. Como cortar o mundo com delicadeza? Nos perguntamos, Isadora Ravena e Lucas Dilacerda, ao enviarmos ao Museu uma cadeira com 700 lâminas de barbear, sobre um amontoado de algodão, rodeada por 7 túmulos de areia.
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Questionar como cortar o mundo com delicadeza é questionar como descolonizar falando a língua que nos coloniza. A língua que nos mutila e nos mata, nos doméstica e nos aprisiona. Como cortar a língua do colonizador com a navalha de nossas existências? Precisamos de uma língua afiada como a língua de uma serpente. Afiada e bifurcada. A língua se transforma em lâmina, cortante e cirúrgica. Na ponta da língua há um veneno que contamina e prolifera o ácido que corrói o concreto gramatical. Como descolonizar escrevendo na língua que nos mata? Como descolonizar pensando com a língua que nos coloniza? É entre o dente e a mandíbula que se esconde a lâmina, nos ensinaram as travestis brasileiras desde a segunda metade do século XX. Perguntamos agora: Como cortar o mundo com delicadeza?
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O mundo é um grande refletor de luz que nos cega com sua a luminosidade. É preciso mais do que nunca fechar os olhos para as luzes cegantes do mundo e aprender a abrir os olhos para o escuro invisível da terra. Sonhar de olhos abertos é saber driblar as luzes do mundo para captar o escuro da terra incógnita por vir.
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As serpentes não têm pálpebras. As serpentes não piscam os olhos. Os olhos das serpentes são cobertos por uma fina escama. Uma delicada escama. Arrancamos os nossos olhos para enxergar o escuro invisível da terra. Estouramos os nossos ouvidos para ouvir a onda silenciosa do mar. Rasgamos a nossa pele para sentir a carne pulsante do corpo. Mordermos a nossa língua para provar o gosto ácido da vida. Eu me corto e o corte me corta.
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Não é um «eu corta» mas um «corta eu». Me corta e me transmuta. Os nossos olhos ficam vermelhos. Os nossos tímpanos ouvem zumbidos. A nossa respiração para. A nossa boca seca. A nossa pele transpira. Eu me derreto a ponto de não sobrar mais um «eu». Já não é mais possível conjugar nenhum verbo porque já não existem mais sujeitos. Todos os problemas iniciam quando nos ensinam a falar «eu». E para que eu corte o «eu» e seja eu cortada é preciso saber: Como cortar o mundo com delicadeza?
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O mundo é uma ferida sobre a Terra. O mundo nos ensina que cortar é impossível. Ele sussurrou em nossos ouvidos. Se o mundo é uma ferida sobre a Terra, o que estamos nós a dizer? Que é com o corte que curaremos a ferida. Precisaremos perguntar: Como cortar o mundo com delicadeza? Com uma flecha, com uma seringa, com uma dose de testosterona, com um pump de estradiol, com um amontoado de algodão, com uma palavra, com um banho, com uma lâmina de barbear. Se o mundo é uma ferida na superfície da terra, precisaremos rastejar sobre um terreno loteado pela norma. Pela norma e pela linguagem que nos aprisiona. As serpentes rastejam sobre o próprio ventre. Um movimento delicado, a iminência do bote. Como cortar o mundo com delicadeza?
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Com quais palavras temos nos aliado? Se as palavras nos dão o mundo, que mundo é esse que nos foi dado a conhecer? Quais palavras precisamos esquecer para que outras novas nasçam? Como cortar o léxico gramatical? Esburacar, ruir, corroer, bifurcar, desmoronar a língua. Eu sou uma gota de sol na terra. Eu sou uma luz de lua na penumbra. Eu sou uma onda de tempestade no mar. Eu sou um trovão de chuva no oceano. Eu sou um diamante de lava na montanha. Eu sou o veneno de espinho na flor. Eu sou a língua afiada da resposta. Eu sou a lâmina cortante e delicada do mundo. Eu não sou. Como cortar o mundo com delicadeza?