— O fantasma do Marighela voltou a rondar entre nós, vergonha de ser brasileiro.
— Prefere os fantasmas do Artur da Costa e Silva e do Médici?
— Melhor seria o milésimo gol do rei.
— Hein?
— Pelé, o milésimo gol no Maracanã! Cavou a falta na área, pênalti. Bateu no canto direito e...
— Esquerdo!
— Direito dele, esquerdo do goleiro. Vinte e nove anos, mil gols, Maraca lotado.
— É Rei!
— Se é para lembrar de 69, vamos lembrar dos Reis.
— Saudades da monarquia?
— Santos contra o Vasco da Gama, inesquecível.
— Mas o juiz roubou.
— O Sérgio Moro, né?
— Era nordestino, cê sabe.
— Oi?
— O juiz, pernambucano. Apitou o pênalti, mas o Rei se jogou.
— Gente, o Marighela foi assassinado por agentes do DOPS, rajadas de metralhadora...
— Aff, que saco, vamos falar de futebol que é melhor.
— Ok, cê sabe que no momento do assassinato estava acontecendo o jogo do time do seu Rei?
— E quem ganhou?
— Santos e Corinthians, no Pacaembu.
— Deu empate?
— O assassinato foi anunciado pelos alto-falantes no estádio e a torcida gritou energicamente comemorando a morte de uma pessoa.
— Uma pessoa, não! De um assassino. Ele era comunista, nordestino, raça que precisa ser exterminada.
Daí em diante não consegui mais esperar a estação de meu destino. Ouvi, sem outra opção - dada a altura que falavam - a conversa deste grupo. Saltei antes, faltavam três paradas, mas era impossível permanecer no mesmo vagão. Os ânimos acirrados dos desconhecidos fizeram-me hesitar qualquer tentativa de diálogo.
Desnorteado por ter descido em uma região que não conhecia e, sobretudo, por ter permanecido calado diante daquela discussão, demorei a me situar.
Ainda um pouco sem rumo, deparei-me com uma pequena tasca, um fado vadio, uma mulher a cantar: «...abre as asas passarinho que eu quero voar …»
Reconheci de imediato a composição de Tuzé de Abreu e conectei-me com outras duas mulheres: Suely Rolnik canta Gal Costa.
Há quase 10 anos foi publicado um dossiê a partir do pensamento do Gilles Deleuze em uma revista brasileira. Nesse dossiê consta um texto de Suely Rolnik que, entre outras coisas, narra um encontro entre ela e a Gal Costa. Ou, se quisermos, um encontro com um timbre na invenção de um corpo. Era final dos anos 1970 e, exilada em Paris, Suely passa a habitar a língua francesa como, também, estratégia de proteção diante do trauma da ditadura no Brasil. A língua francesa, como ela afirma, tornou-se um «abrigo clandestino», quiçá um ninho. A decisão, até então jamais cogitada, de retornar ao Brasil surgiu ao cantar tal canção.
Muito aplaudida, a cantora do fado vadio é solicitada a continuar.
Sem titubear, ela segue:
«...fundarão o seu reinado
dos ossos de Brasília
das últimas paisagens
depois do fim do mundo...»
Era a Gal, não mais do Índia, mas do lisérgico Gal de 1969. Mesmo com toda a censura, naquele ano foram lançados uma quantidade de discos singulares no Brasil. Para mim, um dos mais viscerais é este. Um mundo jorrando pelos poros da Gal. A psicodélica capa, as letras, a forma e a força, os efeitos, a guitarra. Penso, sem a nostalgia romântica de um tempo que não vivi, na urgência e na radicalidade de muitas das produções, na música, no cinema, nas artes visuais, no teatro, na dança... na vida que, apesar de tudo, resiste.
«...depois do fim do mundo...» a cantora de fado enfatiza.
Em 2019, o Brasil em chamas, outras armas e estratégias, muitos mundos para serem inventados, outros extinguidos. Não há conquista definitiva.
Depois do fim de um mundo.
Perdido, resolvo pegar um táxi:
— Boa tarde, para onde vamos?
Na rádio toca Elza Soares:
«...Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim...»