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s
para Antonía Berg e Lucrezia Costa
19 de Junho de 2021
Milos, Grécia
«– escrevo iluminada pela luz de Vénus. Entre mim e a escrita pesa uma confiança indizível, total. A escrita, como outros desenhos, é fundada nos céus, nasce sob o signo das estrelas.
Em Sagitário, há um ponto que me evoca 𝝿, como se dele emanasse esta forma, uma luz, um ponto.
Tudo é profundamente comunicante.
É de noite e estou deitada na colina do antigo teatro. A minha cabeça assente sobre o peito de quem amo, a minha cabeça assente sobre as primitivas. O ritmo do coração é tão alto quanto o resto da natureza quando nos encontramos nesta posição.»
os olhos levantaram-se do papel
disse
infelizmente só sei escrever cartas de amor
os olhos mantiveram-se fixos no papel
disse lentamente
Sabes que há escrita que só se encaixa forjada atrás de grandes pedras onde
se escondiam do vento.
Há trilhos em montanhas que estão carregados de palavras
repetidas
palavras
sussurradas
para quem está longe
para si mesmo
muitas vezes para o céu.
Repetidas
palavras procuram verticalidade.
Todo o caminho é comunicante.
Se um pedaço de calcário
se despegasse do lado direito de uma colina
talvez fosse tempo de voltar para trás
se o caminho fosse cruzado
pelo voo de um falcão
seria necessário caminhar mais rapidamente.
Há caminhos que mesmo em silêncio carregam preces e agradecimentos.
Entre montanhas, há lugares que nunca seriam cruzados a não ser
pela extrema necessidade de
carregar objectos de um lugar para outro
ou pela extrema necessidade de
fugir
para encaixar em algum outro lugar.
Lugares inóspitos à presença do ser humano, eram tidos como sagrados nos tempos em que nós não construíamos observatórios espaciais nos seus cumes.
um pequeno silêncio foi quase uma vírgula mas as palavras
naquele dia de calor caminhava pela rua 28 Oktovriou
e entrei no Museu Nacional de Arqueologia de Atenas
para me abrigar
para encontrar atrás de um vidro
o que se encontrou debaixo do solo
tudo o que carrega preces
preces que carregam palavras
Entrei para testemunhar o impossível. Que testemunha era essa?
O que está velado?
Há razão para se encontrar hoje no ocidente uma quantidade de artistas de várias disciplinas que trabalham em conjunto com montanhas – ou com esse desconhecido inclassificável chamado paisagem – e contudo há razões para lhe atribuirmos pensamentos e práticas muito diversas da Land Art – intrinsecamente ligada a gestos monumentais, materiais de construção, movimento que encontra inspiração e por isso provocação nas linhas infinitas de alcatrão que cruzam desertos no sudoeste dos Estados Unidos a que se chamou de Routes e não Roots. O gesto que procuro encaixar aqui é mais pequeno, por vezes microscópico e, contudo, não parece minimalista. É na maioria das vezes um gesto que procura a subtração do indivíduo face ao ambiente, que tende a sublinhar comportamentos de ecossistemas pré-existentes ao invés de criar outros sobre eles. Este movimento sem necessidade de palavra encontra inspiração e provocação na possibilidade não apenas de ressignificar, mas mesmo de descartar e colocar em processo de compostagem as ideias que temos vindo a acumular sobre individualidade e propriedade e, por isso, é inevitavelmente uma busca very-human além de more-than-human.
Há muitas razões para se encontrar hoje uma necessidade maior em olhar o comportamento da vida além da dos humanos, reconhecendo outras existências, (o espaço que ocupam) e relembrar-se a si mesmo de que continuamos a ser uma cápsula de processos biológicos desconhecidos.
O enjoo que a nossa própria espécie nos cria parece atingir novos limites, incapacidade incapacitante de poesia.
Hoje, seria uma palavra de Jano se ele tivesse mais que duas faces opostas. A história de arte (como a da violência), é anacrónica. Podemos então desenhar – qualquer coisa que não uma linha – entre este gesto sem nome e a montanha de Saint Victoire na carinhosa repetição de Cézanne – pintor que sabia, por outras palavras, o que disse Robert Smithson nos anos 60
«there is nothing ‘natural’ about a Museum of Natural History. ‘Nature’ is simply another 18th and 19th century fiction.»
O que é trabalhar
quando um compromisso artístico parece tantas vezes tropeçar numa procura que não encaixa na ideologia do trabalho
O que são montanhas
quando os próprios olhos demoram tanto a entender a imensidade dos vales
E o que é a facilidade
já alguém experienciou verdadeira facilidade?
E sobreviveu para contar?
E porque parece a facilidade algo que deve ser olhado com desconfiança?
Não poderia por vezes o prazer sem esforço ser tão digno quanto tudo o que toma tempo, suor e sofrimento?
Existe facilidade com tempo e suor, e existirá com certeza sofrimento em viver na facilidade que é seguir o seu próprio prazer
sem culpa.
Montanhas (e quem trabalha com elas) raramente cabem num museu porque não encontram aí os seus espectadores e um museu precisa quase sempre de um nome. Um – oito – seis – sete, são demasiados caracteres, e quando se dá a uma montanha a legitimidade de autoria, torna-se muito difícil de vender, de encaixar num mercado.
Torna-se muito difícil trabalhar facilmente com montanhas porque, entre outras coisas, nenhum ser humano parece saber ao certo o que é uma montanha.
Houve tempos em que se faziam objectos com, em e para montanhas
a que damos o nome de arte pré-histórica, de autores sem nome. São vasos
pratos
copos
pequenas esculturas de cerâmica
que se encontram em montanhas
enterradas
com mortos sem nome.
Especulamos e talvez com razão que se tratem de oferendas aos mortos.
disse
Maria Zambrano disse
«todo o deter-se é uma oferenda à morte. E tudo o que vamos fazendo não passa de oferendas à morte.»
e
nesse momento
os lábios moveram-se de forma certa para dizer-lhe
Há na sala 5 do Museu Nacional de Arqueologia de Atenas objectos desses.
No museu as perguntas: que testemunha sou eu? «terei eu olhos?» Que encontro se dá entre um homo sapiens sapiens num museu estatal europeu e um objecto micénico encontrado num sarcófago?
e
os lábios soltaram estranho
quando
a língua escapou o tempo
e
disse estranho
disse o tempo
O museu levanta a dúvida sobre a sua função cada vez que
separa, coloca,
ilumina
mistura ou divide.
Uma convenção com seres vivos dentro dele, sem nome para os encaixar.
Quantos nomes existem dentro de Φειδίας?
Eu gostava de saber
disse
Organizador. Um banco, um arquivo.
No museu eu pago
eu ando
eu paro
eu leio
eu olho
olho muito
espanto-me
escrevo
e até tiro fotos
eu guardo
disse
Cada vez que um objecto é colocado atrás de um vidro e com certa luz, ele parte para um novo estágio objectual.
Caminhei por objectos, bustos
e os seus olhares empedernidos só para sentir
que não sou
ainda eu
quem podem olhar
Na sala 5 dedicada ao começo e ao meio da linha cronológica denominada idade do bronze há objectos feitos para oferecer aos mortos. Mesmo as cerâmicas que parecem utensílios quotidianos, foram transformadas em ofertas a outros que não nos dizem respeito
mas vão.
Sei que vejo agora o que não devia ver
e o que estava debaixo da terra
está
iluminado com uma luz led
desenraizado
sobre um papel de parede que imita a terra da sepultura onde foi
encontrado
e há
entre mim e a peça
um vidro
há
entre mim e ela
desencaixe
e há
um encontro de complexos sistemas que não é de todo imaginário ou
abstracto mas é contudo
coisa rara
um encontro
Um encontro tende a reforçar o posicionamento dos elementos nas perguntas
Onde estou
O que vejo
e de onde vejo
e desejo
uma celebração
um entrelace construtivo
e momentos depois
as respostas a
Onde
O que
e de onde
serão já outras
porquê?
porque o desencaixe
disse
é a natureza mais honesta do ser
mas muito pode um encontro
sabes quantas vezes fui ao Museu Nacional de Arqueologia de Atenas? Cinco e meia
Na última vez entrei só para comprar um livro e acabei a passar por baixo do separador para ver os frescos minóicos. Eles trouxeram mesmo as paredes debaixo da cinza vulcânica de Thera para as encaixar no primeiro andar do museu, tudo isso só para serem danificadas pelo terremoto de Atenas em 1999 e levá-las de volta de ba...
Disse-me
porque me escreves?
desejo tocar-te
mas não dessa forma
disse-lhe
há um som por detrás de todo o barulho
disse como se carregasse um acumulado de palavras
que não encontram encaixe no mundo
carrego mundos que não encaixam em palavras
e escreveu num papel rasgado
Olhou-se demoradamente para a mão que rasgava o papel, para a caneta e para a forma como os dedos a seguravam, numa dança onde o olhar ia descodificando sílaba a sílaba até ao sorriso.
O meu amor não é desses que deixa um sabor amargo na boca
As imagens acima são referentes à pesquisa e ao processo alquímico de Antonía Berg com argila glaciar e os consequentes objectos expostos em Nuutoqaq Katersugaasivik, Nuuk, Gronelândia, 2020.
Durante os últimos dez anos, Antonía tem viajado por glaciares na Islândia e na Gronelândia à procura de argila glaciar. Sendo este um material site-specific, Antonía investiga a composição única de cada argila, os materiais que a rodeiam e as alterações metamórficas que sofrem. Os glaciares, são umas das mais poderosas forças de erosão, aceleram a decomposição e o movimento das matérias-primas, onde o tempo e a compressão são movimentos determinantes.
Os cientistas chamam-lhe lama glaciar devido à diferença na composição dos cristais, embora o seu processo de formação ainda não seja totalmente compreendido, embora contenha as mesmas propriedades que outras cerâmicas de baixo-fogo. Este material, que não encontra encaixe no domínio científico, é o que restará na Islândia, na Nova Zelândia e na Argentina quando os glaciares recuarem na totalidade.
Antonía disse
depois de ter passado pelo fogo
testemunho como um material muda de espírito e de direção
Lucrezia Costa enterra a sua recente escultura To whom it may concern em solo islandês em Fevereiro de 2023.
Lucrezia
nada
disse
respirou