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A alegria da solidão na Tentativa de esgotamento de Daniel Blaufuks
Katherine Sirois
Em que abertura caem os olhos ao olhar através de uma janela, ao olhar para ela? A série Tentativa de esgotamento de Daniel Blaufuks incita a uma contemplação silenciosa já que as vistas reflexivas das janelas «brilham sobre aquele olho interior, que é a alegria da solidão», como escreveu William Wordsworth.
A janela na sala do artista é o tema principal desta série em curso, iniciada em 2009. O ponto focal da lente e do olhar do espectador são deslocados de um exterior para a superfície interior da janela, a sua luz ténue variável e a sua envolvente imediata: uma mesa e objectos familiares tais como pratos, toalhas e talheres, frutas e flores, jornais e livros, mapas e brinquedos. O seu ir e voltar e o seu arranjo variam de dia para dia, de momento a momento, enquanto sinais emergentes da presença do artista, indícios das acções simples da sua vida quotidiana. «Recolhendo-me do mundo exterior, transformei aos poucos a minha cozinha num refúgio, num abrigo, num lugar para a introspecção e o apaziguamento»[1].
A jornada através do olhar da curiosidade e do encanto é reduzida a um interior, à sua essência e calma. Por isso, a experiência vai do espectacular ao íntimo, da esfera da luta e da acção à lembrança e à meditação. A vista do espectador é mantida e se o velho vidro fosco da janela que se vê em Tentativa de esgotamento deixa entrar a luz, não deixa realmente que o olhar saia. O «mais» exterior torna-se no «menos» interior à medida que o menos exterior se torna num mais interior.
Será que o espaço privado isola? Por trás da janela, o mundo exterior pode permanecer acessível, mas a sua manifestação é atenuada, imaginada, reduzida à sua dimensão visual intangível. Na sua proximidade, permanece distante. Também se pode tornar numa presença aurática. Luz que atravessa as paredes de vidro faz a ligação entre o interior e o exterior, como o ar que circula. A janela, com a sua permeabilidade visual e o seu «efeito de fronteira» é em simultâneo separação e união. É uma superfície relacional, tal como o é a pele.
Interior, interioridade. A fruição das coisas e dos acontecimentos do mundo é suspendida e deixada para um futuro incerto. Mas em pedaços, continua a interferir, evoca e é evocada, invoca e é invocada, e perdura no seu eterno som e fúria. É um poder interior focarmo-nos no presente, no que se mantém e ocorre directamente à nossa frente e em nosso redor, no que os nossos sentidos nos dão a ver, sentir, ouvir, tocar, naquilo que se passa em nós. Mas o presente também se torna no vaso da memória, de lugares e de pessoas amados, de momentos passados. Dentro e fora. Dentro é fora. Tal como as imagens das janelas nos dizem, o exterior é interiorizado e o interior é exteriorizado, e ambos fundem-se numa eterna repetição. Porque, «quem quer que sejamos e onde quer que estejamos, o mundo está permanentemente a passar através de nós», como Michel Lussault escreveu no desenrolar da sua reflexão sobre a espacialidade e a habitação. A alteridade que nos assombra leva-nos à janela, leva-nos a entender que nada poderá jamais separar-nos do exterior, da sua inquietação, da sua instabilidade e da sua transformação imparável, mesmo que o tentemos.
As molduras, as da pintura, as das fotos, as das janelas, também são discontinuidades de planos. As fotografias criam imobilidade a partir do permanente devir, tal como as janelas recortam as superfícies contínuas das paredes, criando movimento e variabilidade. Abrem para outros tempos e para outros lugares, abrem para o (im)possível.
A potencialidade emocional desencadeia o intangível e móvel Pensamento. Torna-se interior, amplifica um interior. Tal interioridade, que nós alucinamos naquilo que é dado como exterior, através da janela ou na profundidade de um espelho, está permanentemente entrançado com uma multiplicidade de micro-percepções, de desejos em movimento, de intensidades afectivas e atmosféricas. Tudo isto dá forma à nossa visão, no limite indefinido que a separa do mundo (exterior). Expectativa e nostalgia, tal como a memória e a antecipação, a esperança que gera horizontes ou a imaginação que captura e desenvolve as virtualidades daquilo que é percepcionado, parecem surgir da janela, da imagem, do simulacro e da repetição. Será que o experienciar da nossa própria presença em frente de uma imagem enigmática ou de uma translúcida janela desencadeia uma descida a si própria, às suas sombras e formas de vida invisíveis que estão na origem de todas as representações visuais, de todos os processos de transformação? Será que estas imagens «still-life»de uma janela, de objectos do dia-a-dia, de paisagens silenciosas, estes vislumbres dos vastos exteriores internos, podem ser meios de descrever o acto de reconduzir o olhar ao ponto da sua vista, ao movimento e à visão do olho de dentro que apreende o mundo e a sua infinita diferenciação?
Na repetição de dias e noites, o movimento subtil das pequenas coisas envolventes de um espaço íntimo revela a contínua transformação impalpável do Ser e um sentido de Devir. Tal como a luz e as ressonâncias cromáticas permanentemente em mudança, os objectos tangíveis encontram-se numa dança de combinações sempre diferindo, que geram virtualmente composições infinitas. «Nada se move, e no entanto tudo se move. Centenas de fotos revelam somente o mais breve intervalo de tempo no tempo: um fragmento microscópico, insignificante no contexto do seu fluxo constante»[2].
Tentar esgotar as flutuações infindáveis da vida em imagens capturadas, mesmo no seu compasso lento e nas suas manifestações mais ténues, é um gesto inesgotável, um trabalho sem fim progredindo algures, num quarto que é de alguém, para fazer o retrato do artista enquanto recluso livre e satisfeito. Vivendo um momento de cada vez, encontrando milagres no que é trivial, «com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada»[3].
Tradução do inglês por NMP.
Imagens da série Tentativa de esgotamento foram anteriormente publicadas sob forma de livro por Akio Nagasawa Publishing (2017).