Partindo dessa competição entre pintores da Grécia antiga, onde o que estava em causa era saber qual dos dois, Parrásio ou Zêuxis, seria capaz de imitar melhor a realidade de modo a enganar o olhar do outro, Hernâni Reis Baptista constrói uma ficção acerca da alteridade no mundo contemporâneo.
Através de um dispositivo que tem tanto de «passerelle» como de cenário de fim de festa, o artista propõe uma série de obras atravessada por questões relacionadas com os ideais de beleza, a ruína, a morte da pintura e a camuflagem.
Há também neste conjunto uma relevante componente biográfica. A esses trabalhos, somam-se referências mais íntimas, que passam quer por amizades, quer pela família mais próxima. A opção por deixar em aberto, como se de uma adivinha se tratasse, a razão da escolha de alguns tópicos, como os relacionados com a sexualidade, a identidade e o género, prende-se com a tentativa de deslocar para um outro plano esses debates fundamentais nos nossos dias. Trata-se aqui tão só de abrir um campo de possibilidades, propor um diálogo, iniciar, uma vez mais, a discussão.
Essa resistência à norma, à normalização, tem por intenção o fortalecimento do território da intimidade, no qual a produção das subjectividades tem necessariamente de se confrontar com o crescente aparato conceptual apropriado pelo mercado das ideias. Assim, em vez de uma afirmação panfletária, directa, de uma qualquer identidade, Hernâni Reis Baptista propõe antes uma liberdade de escolha, poética, sensível, em que o outro coexiste consigo, na diferença, no desejo, na vontade de se ser todos os dias uma possibilidade em aberto. Talvez por essa razão, o pó de make-up que cai ora sobre uma máscara, ora sobre fragmentos do corpo (um pé, um joelho), se aproxime tanto do choro, pois a tarefa de atingir essa dimensão do ser, aquela onde nos apercebemos que, afinal, somos nada – e sendo nada, somos tudo, todos –, é sem dúvida a mais difícil e extrema de todas.
Se, então, os trabalhos revelavam uma face mais directamente relacionada com a natureza – na qual se pode observar um conjunto de animais, plantas e minerais cujo principal atributo é a capacidade de se confundirem com o meio envolvente, quer enquanto estratégia de defesa, quer como forma de preparar um ataque –, agora exibem também uma outra dimensão: a da pintura.
Ao prestar um pouco mais de atenção, podemos chegar à conclusão que as diferenças entre um e o outro lado não são assim tão grandes: ambos mimetizam peles, superfícies marmóreas, fragmentos de corpos. Contudo, nesta nova apresentação, existe um elemento que se destaca, a abstracção pictórica, que de uma forma surpreendente adquire qualidades próprias da camuflagem, como se estes trabalhos, tão vivos nas suas cores, revelassem o seu disfarce: por baixo da superfície, podemos imaginar cadáveres, preparados para o velório, ou para o enterro, através de uma cuidada aplicação de maquilhagem. Tudo serve para falsear o real.
Por outro lado, existe uma vida inextinguível nestes objectos, pois recordam-nos ainda essa outra verdade: há uma realidade para além de nós e das espécies que desaparecem todos os dias. São assim pedaços de uma dança, estes recortes de um impossível puzzle, pois apesar de muitos elementos se terem perdido pelo caminho, naqueles que até nós chegaram, através da arte de Hernâni Reis Baptista, persiste o desejo de resistir com o mundo, mesmo recorrendo a estratégias de sobrevivência que passam pela criação de uma ficção, seja ela uma fábula ou um manifesto.
Apresentadas do avesso, estas obras, também pinturas abstractas, peles manchadas por uma nódoa, uma queimadura ou um desejo, participam dessa vontade de celebrar a diferença das formas, das cores, das espécies. O caranguejo é a begónia. O leopardo é o polvo. Todos são todos. Do outro lado, o invisível já está diante de nós.
O que antes podia ser lido como uma passerelle ou um cenário de fim de festa passa também a ser um «filme de terror»: os membros decepados, transformados em pinturas abstractas – nalgumas é mesmo possível detectar nódoas e outras marcas corporais –, surgem ladeados por fragmentos de órgãos humanos – um joelho, um pé –, obras que procuram simular a pele, casacos que prolongam o vermelho de uma alcatifa, camuflados… De repente, estamos perante uma verdadeira carnificina, exposta aos nossos olhos sob a forma de arte.
Será esta uma reflexão ainda relevante depois de termos visto, ali, diante de nós, o fim de um mundo?